Considero ter, com estes pequenos relatos, alcançado o objetivo de levar as idosas a lembrarem de seus pais, como uma singela homenagem à memória familiar
Rita Amaral
Com a chegada do mês de agosto, quando tradicionalmente se comemora o Dias dos Pais, comecei a me questionar sobre quais seriam as lembranças que as idosas com os quais trabalho semanalmente em uma Instituição de Longa Permanência, em São Paulo, há mais de dez anos, teriam sobre seus pais. Estariam vivas essas lembranças em suas memórias? Seriam elas prazerosas ou evocariam algum outro sentimento? Conversando com cada idosa pedi a elas uma ou algumas frases que descrevessem fisicamente seus pais ou contassem sobre alguma característica especial que tivesse marcado sua convivência.
A partir dos encontros autobiográficos, que com elas desenvolvo habitualmente, fui ouvindo os relatos que, embora pouco elaborados, surpreenderam, pois a maior parte das residentes tem comprometimento cognitivo ou psiquiátrico. Trabalho a partir do relato oral na recomposição da história pessoal, que desvela o percurso autobiográfico – quando, pela palavra, se reflete, organiza e narra para si mesmo e depois para o outro a própria história.
Na sociedade contemporânea de comunicação, simultaneamente, livre e rápida, mas, muitas vezes, cifrada, os relatos orais foram, gradualmente, perdendo espaço e significância – e as vozes antigas foram se perdendo, em meio ao “ruído” crescente, até se calarem. Neste contexto buscamos refazer os laços de significados encontrados nas histórias vividas por velhos cidadãos comuns – asilados e calados – por meio dos relatos orais em grupo ou individualmente e, posteriormente, na escrita, documentação e divulgação dos fatos narrados (AMARAL, CABRAL e BRANDÃO, 2012)
Os encontros têm por objetivo criar um espaço de inclusão social e valorização do ser humano em processo de envelhecimento, mesmo considerando algumas perdas e dar significado às experiências pessoais através da reflexão sobre a trajetória pessoal. Seguem algumas frases colhidas:
O nome dele era Norberto. Papai era querido por todos. Ele era brilhante, gostava de aprender coisas novas. Herdei dele a vontade de conhecer coisas novas. Tania, 81 anos.
Lembro dele quando estávamos no navio. Eu estava com uma pulseira cheia de pedras e caiu no mar e meu pai começou a rir e a me acalmar. Ele tinha me dado aquela pulseira de presente. O nome dele era Jair. Nair, 71 anos.
Meu pai se chamava Eugenio. Ele era muito bonito, olhos verdes, cabelo liso. Foi um pai maravilhoso. Sofri muito quando ele morreu. Era amoroso. Cobria os filhos com cobertas quando estava frio. Idalina, 76 anos.
Perdi meu pai muito cedo. Ele se chamava Saulo. Falavam que ele era uma pessoa muito boa. Fui criada pelos meus avós. Meu avô foi um pai para mim, ele era uma pessoa ótima, paciente e calmo. Meu avô também se chamava Saulo. Amélia, 83 anos.
Meu pai se chamava Alberto. Ele ficou doente e eu cuidava dele, ajudava-o no serviço de casa e também com as plantas. Arrumávamos as plantas, trocava a terra do quintal. Tínhamos antúrios de todas as cores, trocávamos os vasos grandes. Ele ia na feira e comprava as coisas que eu gostava. Fui muito mimada por ele. Sonia, 84 anos.
Dentre as pessoas que estão na Instituição, que só atende mulheres, destaca-se uma idosa que tem Alzheimer em estado avançado e recebe todas as tardes a visita do marido. Ela olha para ele e sorri, não consegue mais se comunicar a não ser pelo olhar e o sorriso, e ficam sentados abraçados o tempo todo. Segue o que ele se lembra do sogro, pai de Cândida, 82 anos:
O pai dela se chamava Altair. A Cândida era muito agarrada com ele. Ela era o xodó do pai. Ele gostava de ver o jogo de bocha no Mooca onde eles moravam.
Outra moradora lembra:
Ele era bom, perfeito, não enchia a paciência. Só me fez casar aos 15 anos. Naquela época se obedecia aos pais. Quando ele olhava para mim eu entendia o que ele queria dizer. Seu nome era Arnaldo. Catarina, 85 anos.
Uma idosa que tem sequelas de um AVC, lúcida, aprisionada na impossibilidade de se comunicar, com muita dificuldade assim se expressou: O nome dele era Silvio. Mais ou menos calmo, pouco bravo. Carinhoso com certeza. Isabel, 74 anos. Ao término, sorriu. Conseguiu proferir a frase que tinha em mente, mesmo com dificuldade.
A prática no convivio com idosos aponta que o processo oferecido nos encontros autobiográficos favorece o reconhecimento da trajetória, destacando, valorizando e possibilitando a integração das experiências no processo de conhecimento e aprendizagem – de si e do outro. Pude observar que mesmo em idade avançada, e com problemas derivados de quadros neuro-psíquicos, algumas lembranças mais antigas permanecem, especialmente aquelas relacionadas à infância e às figuras parentais.
Considero ter, com estes pequenos relatos, alcançado o objetivo de levar as idosas a lembrarem de seus pais, como uma singela homenagem à memória familiar.
Todos os relatos foram digitalizados e fixados no mural da Instituição, para que os familiares, colaboradores, visitantes e as próprias moradoras pudessem ler seus depoimentos.
Referências
AMARAL, R; CABRAL, P; BRANDÃO, V. Escritas de si. Em nossas mãos… Revista Portal de Divulgação. n. 19, março 2012. Disponível em: https://www.portaldoenvelhecimento.com/revista-nova/index.php/revistaportal/article/view/531/569
Rita Duarte do Amaral – Pedagoga, especialista em Gerontologia. Associada fundadora do OLHE – Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento. Coordenadora e executora dos projetos da Oficina Memória Viva. www.oficinamemoriaviva.com.br. E-mail: [email protected]
Foto de Liv Bruce