O envelhecer requer um trabalho de luto quase que diário em consequência das perdas vivenciadas cotidianamente. Precisamos nos preparar cognitiva e psiquicamente para o fenômeno do envelhecimento e, claro, para a nossa finitude.
Nazaré Jacobucci (*)
Pobre velho que, no curso de sua longa vida, não tenha se apercebido que deve arredar o medo da morte” (Marco Túlio Cícero)
Estou temporariamente residindo em Lisboa, devido ao meu curso de mestrado em cuidados paliativos, e andando pelo meu bairro, no transporte público e nas dezenas de cafés espalhados por Lisboa, observei que esta é uma cidade com um número considerável de idosos, assim como em Reading, minha cidade na Inglaterra e demais cidades europeias. Portugal e Reino Unido têm hoje aproximadamente mais de 2 milhões e 3 milhões de idosos respectivamente.
Contudo, segundo o Ageing Working Group of the Economic Policy Committee (EPC) e o European Commission’s Directorate-General for Economic and Financial Affairs (DG ECFIN), a Alemanha e a Itália é que possuem a maior percentagem de idosos acima de 65 anos. A União Europeia possui uma projeção de 520 milhões de pessoas idosas em 2070. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de pessoas com idade superior a 65 anos chegará a 2 bilhões até 2050. Isso representará um quinto da população mundial.
O Brasil segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país tinha mais de 30 milhões de idosos em 2017, ou 13,5% do total da população. Em dez anos, chegará a 38,5 milhões. Em 2042, a projeção do IBGE é de que a população brasileira atinja 232,5 milhões de habitantes, sendo 57 milhões de idosos (24,5%) da população estimada.
O envelhecimento populacional é hoje um desafio, econômico e social, para a maioria dos países ao redor do mundo. A população idosa requer cuidados especiais em áreas tais como, saúde pública e mobilidade urbana. Os gastos em sistemas de saúde, cuidados de longo prazo e ambientes propícios mais amplos, necessitarão ser expandidos para garantir o bem estar das pessoas mais velhas. Por exemplo, investimento em cuidado de longo prazo ajudará pessoas com perda significativa de capacidade a manter uma vida com qualidade e dignidade. Neste sentido, as políticas públicas devem ser estruturadas de forma que permitam um maior número de pessoas alcançarem trajetórias positivas durante o processo de envelhecimento.
Contudo, o processo de envelhecimento não é apenas um desafio para os governos. É também para o próprio indivíduo. É uma etapa do ciclo vital muito significativa, em que a pessoa se dá conta de que o corpo físico, e às vezes a mente, mesmo com todos os avanços tecnológicos da medicina e áreas afins, está perdendo a vitalidade e a plasticidade. Para além da questão biológica, a idade avançada frequentemente traz mudanças e uma série de perdas reais e simbólicas. As perdas são sempre difíceis de serem manuseadas porque dizem respeito às histórias de vida dos indivíduos, seus desejos, suas expectativas, suas ansiedades e motivações (Herédia, 2010).
Ao envelhecer o indivíduo indubitavelmente vivenciará perdas que estão relacionadas à morte real de amigos e companheiros(as), à saída dos filhos de casa, ao corpo, a sexualidade, ao fim das relações de trabalho – aposentadoria, ao relacionamento social e familiar. Tais perdas perpassam tanto a dimensão do físico, em sua concretude, como os universos profissional, social e familiar. São vivenciadas, muitas vezes, concomitantemente (Cocentino; Viana, 2011).
Mesmo que o envelhecimento esteja sujeito a fatores como a percepção que o indivíduo e a sociedade detêm sobre o processo, pois hoje se tem a falsa ilusão de que é possível “bloquear” o envelhecer com medicamentos e cirurgias, é certo de que, em muitos casos, com o avanço do tempo, o corpo e a saúde sofrem o impacto das degenerações e envelhece, podendo apresentar maiores suscetibilidades ou vulnerabilidades e tornar-se cada vez mais propenso ao desenvolvimento de doenças e moléstias graves ou crônicas. Essa perda fisiológica do envelhecimento implica luto intenso, pois o corpo doente rompe a ilusão de imortalidade. O adoecimento grave ou crônico implica perda do status de ser saudável, resultando, muitas vezes, na perda de autonomia, no abalo na integridade física e em uma inevitável aproximação com a reflexão acerca da própria finitude (Kreuz; Franco, 2017).
Aqui está um ponto importante a ser refletido. A sociedade moderna, principalmente a ocidental, não prepara o homem para a morte e consequentemente não o faz pensar sobre as questões que permeiam o envelhecer e o morrer. Elisabeth Kübler-Ross (1998), defende que a morte é frequentemente imaginada como um acontecimento medonho e pavoroso na sociedade, constituindo um temor compartilhado por todos. Assim, os homens parecem se esquivar da morte ou até mesmo ignorá-la, de forma que o homem parece negar a própria condição de ser mortal. Como consequência, não conversamos sobre morte com nossos pais e avós.
Outro ponto que carece um olhar mais atento é no que tange ao preparo dos filhos para a finitude dos pais. Segundo Cocentino e Viana (2011), a concepção de mortalidade dos pais costuma, também, ser negada e abstraída com frequência pelos filhos, uma vez que pode gerar sentimentos de desamparo e fraqueza nos mesmos. Igualmente, o declínio das funções orgânicas advindo com o envelhecimento é negado e evitado com frequência pelos filhos por estar associado à finitude da vida. Neste sentido, nem sempre os familiares compreendem as perdas, reais e simbólicas, que os idosos enfrentam. Muitas dessas perdas afetam diretamente a dinâmica familiar, modificando os papeis, as responsabilidades e as atitudes. Por isso, a importância que o filho(a) mantenha um diálogo franco com os pais sobre o quão todas essas perdas podem estar sendo difíceis para eles experenciarem. Conversar com os pais sobre as dificuldades enfrentadas na velhice e o morrer não é imoral; é um ato de amor.
Como pudemos perceber, o processo de envelhecimento abarca uma série de questões objetivas e/ou subjetivas que estão muito além dos sinais aparentes na face. O envelhecer requer um trabalho de luto quase que diário em consequência das perdas vivenciadas cotidianamente. Nesse sentido, precisamos nos preparar cognitiva e psiquicamente para o fenômeno do envelhecimento e, claro, isso implica nos preparamos para a nossa finitude.
(*)Nazaré Jacobucci – Mestranda em Cuidados Paliativos na Fac. de Medicina da Universidade de Lisboa. Psicóloga Especialista em Luto. Especialista em Psicologia Hospitalar. Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC). Site: http://www.perdaseluto.com
Nota: Para a escrita deste post eu tive a colaboração de dois colegas admiráveis que me cederam algumas fontes de informação: Dinis Oliveira – Enfermeiro da Casa de Saúde da Idanha de Sintra/Portugal, e Erika Pallottino – Psicóloga clínica, Sócia fundadora do Instituto Entrelaços http://www.institutoentrelacos.com/
Referências
Cocentino, J.M.B.; Viana, T.C. A Velhice e a Morte: reflexões sobre o processo de luto. Rev. Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, nr. 14(3), 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbgg/v14n3/v14n3a18.pdf
Herédia, V. O Sentimento de Perdas no Envelhecimento e a Condição de Finitude [PDF]. Memorialidades – Revista do Núcleo de Estudos do Envelhecimento da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, nr. 13, jan./jul. 2010.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [online]. Disponível em:https://www.ibge.gov.br/
Kreuz, G.; Franco, M.H.P. O luto do idoso diante das perdas da doença e do envelhecimento – Revisão Sistemática de Literatura. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro , v. 69, n. 2, p. 168-186, 2017 . Disponível emhttp://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672017000200012&lng=pt&nrm=iso
Kubler-Ross E. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e a seus próprios parentes. São Paulo: Martins Fontes; 1998.
Office for National Statistics. Overview of the UK population: November 2018 [online]. Disponível em: https://www.ons.gov.uk/
Organização Mundial da Saúde. Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde [online]. Disponível em:http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/186468/WHO_FWC_ALC_15.01_por.pdf;jsessionid=C5A72781A6C02AB50BF2A5AE06E4C903?sequence=6
Paradella, R. Número de idosos cresce 18% em 5 anos e ultrapassa 30 milhões em 2017. Agência IBGE Notícias [online]. 26 abr. 2018. Disponível em:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017
Pordata Base de Dados Portugal Contemporâneo [online]. Disponível em:https://www.pordata.pt/Home
SilverEco The International Silver Economy Portal [online]. 2018 Ageing Report: Europe’s population is getting older. 11 jun. 2018. Disponível em:http://www.silvereco.org/en/2018-ageing-report-europes-population-is-getting-older/
Vettorazzo, Lucas. Cada vez mais velha, população brasileira chega a 208 milhões. Folha de São Paulo [online]. 25 jul. 2018. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/07/com-populacao-cada-vez-mais-velha-brasil-atinge-208-milhoes-de-pessoas.shtml
Este texto foi publicado inicialmente em: https://perdaseluto.com/2019/01/23/envelhecimento-reflexoes-sobre-o-processo-de-luto-e-perdas-da-pessoa-idosa/.