A arquitetura é o meio de oferecer diferentes modos de morar às pessoas, independente das suas características sociais, econômicas e étnicas. Ao pensarmos no ciclo da vida e nas mudanças naturais ao longo desse processo, podemos perceber o quanto a moradia torna-se um instrumento de bem-estar e, portanto, decidir morar só deveria ser natural, mas no Brasil temos poucas alternativas para idosos independentes, mesmo com mobilidade reduzida.
Maria Luisa Trindade Bestetti (*)
No filme “Um Amor de Estimação” (Inglaterra, 2014), os atores Judi Dench e Dustin Hoffman representam dois vizinhos, moradores de um edifício destinado a idosos com apartamentos compactos para até duas pessoas. No caso deles, moram sós. Ocorre que as amplas sacadas têm finalidades diferentes: ele cultiva plantas em profusão, criando artefatos que facilitam e garantem a manutenção. Ela, mobiliou como um espaço de estar ao ar livre e organizou um espaço para seu animal de estimação, uma tartaruga, de quem espera um crescimento a olhos vistos. As sacadas se alternam com recuos, o que permite que haja uma comunicação visual para contatos diários.
Ao perceber que a vizinha, a quem dedicava olhares interessados em um relacionamento mais íntimo, entristecia-se por não encontrar seu animal maior a cada dia, traça um plano: compra dezenas de outras tartarugas, em tamanhos sutilmente diferentes, e passa a trocá-las, pois cria um sistema para içar a original e repor outra maior, repetindo o procedimento dia após dia. Certamente confere a alegria de sua pretendente, com quem conversa mesmo estando um andar acima. Tímido, não sabe como aproximar-se, e mal percebe que a encontra sempre no elevador, pois a possibilidade de enxergá-lo também deu a ela elementos para saber quando isso poderia acontecer pois, como ele, tinha interesse em conhecê-lo melhor.
Embora a imagem completa do edifício não apareça no filme, a geometria da composição possibilitada pela alternância das sacadas sugere que um projeto com essas características torna o contato mais frequente, estimulando os relacionamentos. Evidentemente há questões de clima e de contexto urbano a serem consideradas em situações reais, mas é inegável que atributos como esse devam compor o conceito de moradias ocupadas por aqueles que permanecem mais tempo em casa, situação natural nesta fase da vida.
É na velhice que há mais tempo livre, o que não significa inutilidade, muito menos falta de interesses amorosos de pessoas idosas. E é com projetos arquitetônicos concebidos com decisões centradas no usuário que são atendidos seus desejos e necessidades, permitindo que se apropriem dos espaços da maneira que melhor reflita seu relacionamento com o mundo. No filme, a delicadeza no carinho que ambos os personagens dedicam entre si apenas demonstra como preencher os vazios da alma e da casa, incluindo plantas, animais e pessoas.
A arquitetura é o meio de oferecer diferentes modos de morar às pessoas, independente das suas características sociais, econômicas e étnicas. Ao pensarmos no ciclo da vida e nas mudanças naturais ao longo desse processo, podemos perceber o quanto a moradia torna-se um instrumento de bem-estar e, portanto, decidir morar só deveria ser natural, mas no Brasil temos poucas alternativas para idosos independentes, mesmo com mobilidade reduzida. Como a arte imita a vida, a experiência dos protagonistas no filme sugere uma interessante alternativa!
(*) Maria Luisa Trindade Bestetti – Arquiteta formada pela UFRGS, com mestrado e doutorado pela FAU USP, MBA em Gestão de Projetos pela FGV. É professora no Curso de Gerontologia da Universidade de São Paulo, com disciplinas de Gestão de Projetos e Empreendedorismo na graduação e Habitação e Cidade para o Envelhecimento Digno no mestrado. Pesquisa sobre modos de morar na velhice, desenvolvendo caminhos para a reflexão sobre o tema utilizando metodologias colaborativas, em especial o Design Thinking. Participa do projeto Bairro Amigo do Idoso Mooca e Brás – São Paulo. Editora do Blog Ser Modular. Texto reproduzido de: https://sermodular.com.br.