Prescrevendo conversas sobre o fim da vida

Cuidados no fim de vida nos Estados Unidos está errado em todos os níveis. Precisam ser totalmente reformulados. Médico que atua em um dos melhores hospitais da Terra viu pacientes morrerem de formas prolongadas, desumanas, e muito mais dolorosas do que precisavam ser, porque se entende a morte de um jeito tão errado.

Angelo E. Volandes *

 

prescrevendo-conversas-sobre-o-fim-da-vidaOs médicos não conseguem ter discussões significativas com os pacientes e suas famílias sobre como viver o capítulo final da vida. Salvar a vida de um paciente terminal nem sempre é o melhor remédio.

Como a maioria dos médicos, eu era um jovem residente de medicina quando tive a minha primeira experiência com o jeito americano de maltratar os moribundos.

Taras Skripchenko era um homem de 78 anos de idade, acamado, frágil, com câncer de pulmão inoperável, admitido no meu serviço durante meu primeiro ano de treinamento de residência. Ele estava confuso demais para ter uma conversa lúcida e não estava com a família que pudesse orientá-lo na sua tomada de decisão. Seus oncologistas não tinham lhe falado sobre o curso da sua doença, sobre o que seria importante para ele quando chegasse a este momento. Então, ele era um “código completo”. Não tinha a ordem “não ressuscitar” no arquivo. Em suma, nós estávamos prontos para fazer tudo que era possível para mantê-lo vivo.

Soou o alarme do protocolo Código Azul(*)

A enfermeira tinha verificado seu pulso apenas para perceber que ele não tinha batimento. Corri para o quarto e encontrei a equipe já realizando o ressuscitamento. Eu, desajeitadamente, coloquei minhas mãos em um par de luvas de látex e me juntei ao ritual, aliviando uma das enfermeiras que faziam as compressões torácicas, que é muito mais exigente fisicamente e brutal do que é retratado na televisão. Minhas mãos unidas, fortemente pressionavam contra o peito frágil de Skripchenko, e tudo que eu podia ouvir e sentir era a quebra de suas costelas com praticamente cada compressão. O bombeamento rítmico estranhamente emitiu um grosseiro som parecido com velcro.

O coração de Skripchenko foi finalmente estabilizado, e nós o transferimos para a UTI. Na manhã seguinte, ele tinha tubos em quase todas as partes do seu corpo, um total de oito invasões plásticas, incluindo um nos pulmões, duas intravenosas centrais, uma arterial, uma sonda no estômago, um cateter na bexiga, um tubo rectal, e um sistema coletor de drenagem mediastinal para drenar o líquido da cavidade torácica. Skripchenko foi “consertado”.

Os médicos gostam de resolver os problemas e consertá-los. E é realmente incrível o que a medicina moderna tem alcançado em um período relativamente curto de tempo. Não posso respirar? Nós podemos consertar isso com máquinas de respiração. Tem uma infecção no sangue? Nós podemos consertar isso com antibióticos potentes. Tem um pouco de líquido em volta do coração? Podemos até mesmo corrigir isso, tirando o coração para fora com uma agulha ou cortando um buraco no saco circundante.

A questão mais difícil, no entanto, é quando se precisa reconhecer que as pequenas correções não alteram o geral, reconhecer que a correção de problemas específicos podem não “consertar” o paciente todo.

Nós, médicos, tínhamos reanimado o coração de Skripchenko, mas qual foi o benefício disso para ele? Será que ele poderia continuar vivendo de uma forma significativa? Os médicos sempre procuram a próxima “correção”, mas precisamos saber quando usar ou não nosso “crescente kit de ferramentas de correções”. Se ninguém pergunta ao paciente severamente doente se ele ou ela iria mesmo querer esses procedimentos de risco para apenas um benefício superficial, os médicos simplesmente continuam tentando mais intervenções.

O coração de Skripchenko parou mais três vezes, e, milagrosamente, a equipe da UTI o trouxe de volta a cada vez. Ainda assim, não é de surpreender, o paciente nos estágios finais de câncer avançado terminal se sucumbir à sua doença. Seja qual for a próxima correção, a natureza sempre acaba agindo. Taras Skripchenko morreu 48 horas após o Código Azul inicial, nunca tendo recuperado a consciência.

Cuidados no fim de vida nos Estados Unidos está errado em todos os níveis. Um recente relatório do Instituto de Medicina pinta um quadro condenatório dos cuidados de fim de vida neste país. Ele precisa ser totalmente reformulado. Eu trabalho em um dos melhores hospitais da Terra, e eu vi pacientes morrerem de formas prolongadas, desumanas, e muito mais dolorosas do que precisavam ser.

Já ouvi pacientes e familiares exigindo para a gente “fazer tudo” para prolongar a sua vida, mas em muitos casos, eles, infelizmente, não têm ideia do que esse “tudo” significa, porque ninguém explicou claramente as suas opções. Às vezes, os doentes e as famílias não querem enfrentar a morte. Mas, mais frequentemente, o problema está com os profissionais da saúde. A principal razão da gente entender a morte de um jeito tão errado é porque os médicos não conseguem ter discussões significativas com os pacientes e suas famílias sobre como viver o capítulo final da vida.

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Há muitas razões para isso. Nós não somos treinados para termos essas discussões, para explicarmos em termos simples o que significa RCP, e o que ela implica (costelas quebradas para os frágeis), ou como é difícil para um paciente com uma doença terminal ser tirado de uma máquina de respiração. Quando nós tentamos explicar, muitas vezes deixamos os pacientes e famílias confusos e com medo de que eles não serão bem cuidados. Eles sentem que nós os abandonamos. Eles muitas vezes se sentem responsáveis pela própria incerteza, não percebendo que a sua confusão reflete nossa incapacidade de se comunicar de forma eficaz.

Os americanos recebem alguns dos melhores cuidados de saúde que o dinheiro pode comprar. Mas também experienciam algumas das piores mortes no mundo desenvolvido. Pela maioria dos relatos, a transformação americana de morte por um processo natural que ocorre em casa para um evento medicalizado, fora de casa, tem sido desastroso. O sistema de saúde está repleto de cientistas brilhantes, mas há uma escassez de comunicadores e defensores efetivos.

Um dos efeitos colaterais tóxicos do extraordinário progresso que tem sido feito em tecnologia médica é o assalto nas intervenções médicas no final da vida. O primeiro passo necessário em direção a uma solução é um retorno à ferramenta mais antiga da medicina: falar com os pacientes sobre seus desejos para saber como eles querem viver em seu tempo restante.

Se o sistema de saúde retardar o rolo compressor tecnológico o suficiente para os médicos explicarem aos pacientes gravemente doentes as opções de cuidados médicos enquanto o fim da vida se aproxima – incluindo a escolha de renunciar às inúmeras intervenções na doença avançada, se isso é realmente o que é desejado – então os pacientes vão poder realmente escolher como viver seus últimos dias.

Entre as perguntas que todos nós, como futuros pacientes terminais, precisamos considerar e discutir com a família, amigos próximos, e com os nossos médicos estão as seguintes:

a) Que tipo de coisas são importantes para você em sua vida?

b) Se você não fosse capaz de fazer as atividades que você gosta, existem tratamentos médicos que seriam demais?

c) Que medos que você tem sobre ficar doente ou obtenção de cuidados médicos?

d) Você tem crenças espirituais, religiosas, filosóficas ou culturais que orientam você na tomada de decisões médicas?

Algumas pessoas vão deixar as decisões de fim de vida para os seus médicos pessoais e outros especialistas, sem questioná-las. Alguns vão escolher seguir qualquer meio possível, não importa o quão extremo, doloroso, ou experimental, em um esforço para evitar os estragos da doença, o trauma de um acidente grave ou lesão, ou apenas o desenrolar suave de funções de vida que acompanham a velhice. Outros poderão optar por cuidados paliativos para garantir o conforto, um senso de comunidade, e acesso à família e amigos enquanto o fim se aproxima.

O sucesso dessa conversa essencial sobre os cuidados no fim da vida não está no caminho individual escolhido, mas sim na participação ativa e plenamente informada do paciente e de seus familiares. Em outras palavras, essas discussões capacitam os doentes para receberem quaisquer cuidados médicos no fim da vida que desejarem.

Mas, às vezes, as palavras não são o suficiente. Uma razão adicional do por que os pacientes são maltratados no final da vida é que as palavras não conseguem explicar o que nós, como profissionais de saúde, já vimos. Descobri que para alguns pacientes, nenhuma quantidade de explicação simples é tão poderosa quanto imagens reais.

Vídeos que podem complementar as discussões verbais foram usados com sucesso para educar os pacientes sobre suas escolhas médicas perto do fim da vida. Mais importante ainda, quando os médicos deixam de perguntar aos pacientes sobre suas preferências, os pacientes podem se capacitar com os vídeos que lhes proporcionam o conhecimento necessário para estar no centro e no controle de sua saúde.

O que as pessoas precisam mais nesta jornada não é a promessa da próxima nova tecnologia, mas sim de um guia para ajudá-las a navegar nesta floresta escura em que todos nós, sem dúvida, encontramos a nós mesmos. As pessoas precisam de médicos que sejam honestos o suficiente e capazes de explicar as novas tecnologias com os riscos e benefícios que a acompanham, e de discutir se essas tecnologias realmente iriam beneficiá-las. Quando os pacientes com uma doença grave têm a oportunidade de compreender as suas opções, muitos fazem escolhas muito diferentes e não acabam como Taras Skripchenko.

(*)Código Azul é um protocolo internacional, que tem como objetivo prestar atendimento imediato aos pacientes com suspeita de parada cardiorrespiratória (PCR) – interrupção súbita e brusca da circulação sistêmica e/ou da respiração, nas unidades de internação e, dessa forma, aumentar a chance de sobrevida destes pacientes. O Código Azul tem por objetivo tornar rápido e organizado o atendimento, aumentando as chances de sucesso nas manobras de Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP), reduzindo o estresse e o desgaste dos profissionais encarregados desta função. Com a implantação de um time de resposta rápida e sistemas seguros e práticos para acionamento de urgências e emergências consegue-se reduzir a média das paradas cardíacas fora da Unidade de Terapia Intensiva – UTI’s.

prescrevendo-conversas-sobre-o-fim-da-vida* Angelo E. Volandes – Médico e pesquisador na Harvard Medical School. Também é cofundador da organização sem fins lucrativos dedicada a incentivar conversas sobre decisões de fim de vida entre pacientes, médicos e famílias através do uso de vídeos, chamada Advance Care Planning Decisions. É autor do livro The Conversation: A Revolutionary Plan for End-of-Life Care. Este relato foi publicado originalmente no dia 11 de janeiro de 2015, na edição do Boston Globe, com o título “Prescribing the End-of-Life Conversation”. Disponível Aqui

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