Os idosos indígenas enfrentam na velhice desafios para a manutenção da sua saúde e no acesso a serviços.
por Everaldo Pinheiro da Mota Júnior, Tatiane Bahia do Vale Silva, Gabriel Vinícius Reis de Queiroz e Murilo Lima Gonçalves (*)
O idoso indígena possui para seu povo um papel de extrema importância, uma vez que são considerados conhecimentos vivos sobre os saberes ligados à medicina, às ervas, às músicas, às danças, aos rituais e às práticas ancestrais, o que é fundamental na organização social, política, na sobrevivência da comunidade e na manutenção da identidade e cultura indígena, influenciando a forma como os demais membros da comunidade compreendem o mundo à sua volta. No entanto, os idosos indígenas enfrentam na velhice desafios significativos para a manutenção da sua saúde e no acesso adequado a serviços, exacerbados pela marginalização social, econômica e geográfica.
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A partir do Censo demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considera-se indígena aquele que se autodeclara como tal, mesmo não assinalando a opção indígena no critério raça/cor e não residindo em aldeias. No Censo realizado em 2022 pelo IBGE, identificou-se 1,69 milhão de indígenas vivendo no Brasil, sendo a maior concentração deste grupo populacional na Região da Amazônia Legal (51,25%). Na Região Norte do Brasil, encontrou-se 44,48% da população indígena do país e na Região Nordeste 31,22% (IBGE, 2022).
No Brasil, é considerado idoso o indivíduo com idade acima de 60 anos. Revelou-se no Censo de 2022 que mais da metade da população indígena é jovem. O índice de envelhecimento evidenciou que existem 35 indígenas com 60 anos ou mais para cada 100 pessoas indígenas com até 14 anos de idade no país (IBGE, 2022). Conhecidos como anciãos na maioria das sociedades indígenas, a figura do idoso carrega grande força cultural, tendo em vista que os indígenas mais velhos são responsáveis pela transmissão dos elementos culturais, como os rituais, os costumes e a mitologia, mantendo viva as tradições e valores deste grupo social. Cabe ressaltar que existem mais de 300 etnias indígenas no Brasil, que possuem em comum as tradições ancestrais e o forte vínculo com a terra e a natureza, mas cada povo indígena possui características próprias.
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
Nesse sentido, a organização da atenção à saúde dos povos indígenas acontece de forma diferenciada em relação à população não-indígena. No Brasil, apesar de o direito à saúde ser garantido na Constituição Federal de 1988, para os Povos Originários, a efetivação desse direito se deu apenas ao longo de décadas de luta desses povos, a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), com a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/90). Essa Lei criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), organizado em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Os povos indígenas são a única população do Brasil que possui um subsistema de atenção à saúde próprio dentro do SUS.
O SASI serviu de base para a elaboração da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), promulgada em 2002. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) fecha esse organograma da saúde indígena no país, sendo a gestora operacional do SASI e guardiã dos princípios da PNASPI. Ela estabelece que as ações de saúde são desenvolvidas em território indígena pelas Equipes Multiprofissionais de Saúde Indígena (EMSI), composta por profissionais de saúde, Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN), de forma a promover a articulação entre o sistema oficial de saúde e os saberes e práticas tradicionais do povo indígena (Brasil, 2019).
Apesar dessa estrutura representar um avanço para os povos indígenas, eles enfrentam diversas dificuldades de acesso aos serviços de saúde que incluem os aspectos geográficos e os sócio-organizacionais. Os desafios encontrados englobam a distância das unidades de saúde dos locais de moradia dos povos indígenas; a grande rotatividade de profissionais de saúde, o que interfere na criação e fortalecimento de vínculo durante a assistência, assim como a falta de sensibilidade cultural dos profissionais e serviços de saúde, gerando desrespeito pelos costumes e crenças indígenas na prestação do cuidado (Oliveira et al., 2021).
As decisões que influenciam o modo de vida e o cuidado em saúde são disseminadas pelas lideranças indígenas (em geral, idosos) de cada povo e, portanto, o acolhimento na assistência em saúde torna-se fundamental para o bom relacionamento e a consolidação dos laços de confiança entre este grupo populacional e as equipes de saúde, assegurando maior aproximação com os serviços, a participação ativa e consequente melhora da situação de saúde (Silva et al., 2021).
Boa parte dos povos indígenas vive em condições precárias de habitação, com alta vulnerabilidade social e econômica que influenciam diretamente no processo de saúde e adoecimento, configurando um grupo prioritário para as ações de saúde e intersetoriais. Este segmento populacional apresenta condições de saúde que merecem atenção da gestão pública para a construção de estratégias direcionadas, inclusive para os idosos, como a alta prevalência de afecções respiratórias, hipertensão arterial, diabetes, malária, assim como outras enfermidades relacionadas ao estilo de vida e os aspectos sociodemográficos (Oliveira et al., 2021).
A partir do contato interétnico, houve mudanças na alimentação tradicional dos indígenas, incluindo no cardápio vários alimentos industrializados. A alimentação não saudável, o consumo de álcool, a falta de exercícios físicos e o uso do fumo são comportamentos corriqueiros dos idosos indígenas que podem explicar o surgimento de doenças crônicas não transmissíveis, como a hipertensão arterial acima relatada (Borghi; Carreira, 2015). É notória a necessidade de atenção diferenciada para a saúde dos povos indígenas (Borghi et al., 2015), respeitando as concepções e os valores culturais da prática do cuidado em cada grupo social, articulando os conhecimentos biomédicos e os saberes tradicionais para a melhora desse cenário em saúde da velhice indígena.
Nota
Este artigo é fruto do projeto intitulado ‘Velhice indígena: Primeiro Inquérito de Saúde da pessoa idosa do Povo Xikrin do Cateté, Parauapebas, Pará’, selecionado pelo Edital Acadêmico de Pesquisa 2023 “Envelhecer com futuro”, do Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento. Maiores informações desta pesquisa serão apresentadas no I Congresso Internacional Envelhecer com Futuro (Cief).
Referências
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BORGHI, A. C.; CARREIRA, L.. Condições de vida e saúde do idoso indígena Kaingang. Escola Anna Nery, v. 19, n. 3, p. 511–517, jul. 2015.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censo Demográfico 2022 Indígenas: Primeiros resultados do universo, IBGE. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102018.pdf. Acesso em 23 jun 2024.
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(*) Everaldo Pinheiro da Mota Júnior – Fisioterapeuta da Atenção Primária de São Paulo. Especialista em Preceptoria Multiprofissional na Área da Saúde. Pós-Graduado em Saúde da Família (residência). E-mail: evojunior18@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1395752868291343
Tatiane Bahia do Vale Silva – Fisioterapeuta. Doutora em Epidemiologia em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Docente na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Coordenadora do Campus XXIII de Parauapebas. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa LARTEF. E-mail: tatiane.silva@uepa.br. http://lattes.cnpq.br/5372310424097760
Gabriel Vinícius Reis de Queiroz – Fisioterapeuta. Doutorando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: gabrielviniciusreis@usp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4196383226304584. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5567-397X.
Murilo Lima Gonçalves – Graduando em Enfermagem. Universidade do Estado do Pará, Parauapebas, PA, Brasil. E-mail: muriloacd05@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6904499212111656.
Foto: USP/Imagens – Visita dos índios, do Xingu, no campus da USP de Ribeirão Preto