O desatualizado sistema de patentes dos EUA que é exportado para o resto do mundo está contribuindo para o alto custo dos medicamentos e custando vidas. Hoje, cerca de 2 bilhões de pessoas vivem sem acesso a medicamentos. E, com essa crise global, o preço dos medicamentos está indo às alturas, inclusive em países mais ricos.
Priti Krishtel (*)
Entre 2006 e 2016, o número de patentes concedidas nos Estados Unidos dobrou – mas não porque houve uma explosão de invenção ou inovação. As empresas farmacêuticas aprenderam a manipular o sistema, acumulando patentes não para novos medicamentos, mas para pequenas mudanças nos existentes, o que lhes permite construir monopólios, bloquear a concorrência e aumentar os preços.”
Na minha família, temos um amor especial pelas invenções do meu pai, cientista farmacêutico recém-aposentado. E, especialmente, reverenciamos as patentes que ele criou. Ele emoldurou as patentes e pendurou-as na parede de nossa casa. E reconhecemos que tudo que eu pude fazer, faculdade, direito, trabalhar na justiça da saúde, tudo foi possível porque os EUA permitiram que meu pai desenvolvesse seu potencial de inventor.
Ano passado, me encontrei com o diretor do escritório de patentes dos EUA pela primeira vez, e enviei para minha família uma selfie naquele escritório na Virgínia. Recebi tantas figurinhas de volta, que parecia que eu tinha encontrado a Beyoncé. (Risos)
Mas, a verdade seja dita, eu estava lá para falar sobre um problema: como nosso desatualizado sistema de patentes está contribuindo para o alto custo dos medicamentos e custando vidas. Hoje, cerca de 2 bilhões de pessoas vivem sem acesso a medicamentos. E, com essa crise global, o preço dos medicamentos está indo às alturas, inclusive em países mais ricos. Cerca de 34 milhões de estadunidenses perderam um familiar ou amigo nos últimos 5 anos, não porque o tratamento não existisse, mas porque não podiam pagar por ele. A elevação no custo de medicamentos está levando famílias a perder suas casas, levando idosos à falência, e levando pais a fazerem financiamentos coletivos para tratar filhos com doenças crônicas. Há muitas razões para essa crise, mas uma delas é a falta de atualização do sistema de patentes que os EUA tentam exportar para o resto do mundo.
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A intenção original por trás do sistema de patentes era motivar as pessoas a inventarem, recompensado-as com o monopólio por tempo determinado. Mas hoje essa intenção foi consideravelmente distorcida. As corporações têm equipes de advogados e lobistas cujo único trabalho é ampliar a proteção das patentes tanto quanto possível. E elas têm mantido o escritório de patentes ocupado. O escritório de patentes dos EUA levou 155 anos para emitir os primeiros 5 milhões de patentes. E apenas 27 anos para emitir os próximos 5 milhões.
Não nos tornamos drasticamente mais inventivos. As corporações se tornaram drasticamente melhores em manipular o sistema. As patentes de medicamentos explodiram: entre 2006 e 2016, elas dobraram. Mas considerem o seguinte: a grande maioria dos medicamentos associados a novas patentes não são novos. Cerca de oito a cada dez são para medicamentos existentes, como insulina ou aspirina.
Minha organização, uma equipe de advogados e cientistas, recentemente conduziu uma investigação com os 12 medicamentos mais vendidos nos EUA. Descobrimos que, em média, há 125 patentes registradas para cada medicamento. Normalmente para coisas que sabemos há décadas como fazer, como fundir duas pílulas em uma. Quanto maior a barreira patentária construída pelas empresas, maior o tempo pelo qual elas mantêm o monopólio. E, sem ninguém para competir, elas podem colocar o preço que quiserem. E, como são medicamentos e não um relógio de designer, não temos outra escolha além de pagar.
A barreira patentária é uma estratégia para barrar a competição. Não pelo máximo de 14 anos que os criadores do sistema imaginaram inicialmente, ou pelos 20 anos permitidos pela lei atual, mas por 40 anos ou mais. Enquanto isso, o preço desses medicamentos continuou a subir, subiu 68% desde 2012. Isso é sete vezes a inflação. E as pessoas estão sofrendo e até morrendo porque não conseguem comprar os medicamentos.
Agora, quero ser muito clara sobre algo. Não quero dizer que o vilão seja a indústria farmacêutica. O que estou questionando é se o sistema que criamos para promover progresso está realmente funcionando como se pretendia. Claro, as empresas farmacêuticas estão manipulando o sistema, mas estão fazendo isso porque podem, porque falhamos em adaptar esse sistema para atender à realidade atual. O governo está distribuindo um dos melhores prêmios nos negócios: a oportunidade de criar um produto protegido da competição, e pedindo cada vez menos em troca. Imaginem um único autor ganhar 100 Prêmios Pulitzer pelo mesmo livro.
Não precisa ser assim. Podemos criar um sistema de patentes moderno para atender as necessidades da sociedade do século 21. E, para isso, precisamos reinventar o sistema de patentes para servir ao público, não só às corporações.
Então, como fazer isso? Cinco reformas
Primeiro, precisamos parar de conceder tantas patentes. Na administração Kennedy, em um esforço de limitar o aumento do custo dos medicamentos, um congressista do Tennessee fez uma proposta. Ele disse: “Se você quer ajustar um medicamento, e quer outra patente por ele, a versão modificada deve ser significantemente melhor, terapeuticamente, para os pacientes”. Devido a um lobby intenso, essa ideia nunca foi adiante. Mas um sistema de patentes reimaginado iria ressuscitar e evoluir essa proposta simples, mas elegante, de que, para obter uma patente, você precisa inventar algo substancialmente melhor do que o que já existe. Isso não pode ser controverso. Como sociedade, reservamos os grandes prêmios para as grandes ideias. Não damos estrelas Michelin para chefs que apenas adaptam uma receita. Nós as damos para chefs que mudam nossa forma de pensar sobre a comida. E, ainda assim, concedemos patentes que valem bilhões de dólares por mudanças pequenas. É hora de elevar os parâmetros.
Segundo, precisamos mudar os incentivos financeiros do escritório de patentes. Atualmente, a receita do escritório de patentes está diretamente ligada ao número de patentes concedidas. É como se as prisões privadas fossem pagas por manter mais pessoas; isso levaria naturalmente a mais encarceramentos, e não a menos. O mesmo ocorre com as patentes.
Terceiro, precisamos de mais participação pública. Hoje, o sistema de patentes é uma caixa-preta. É uma conversa isolada entre a indústria e o escritório de patentes. Vocês e eu não somos convidados para essa festa. Mas imaginem se, em vez disso, o escritório de patentes fosse um centro dinâmico para o aprendizado e a inventividade do cidadão, empregando não só burocratas e especialistas técnicos, mas também grandes contadores de história de saúde pública apaixonados pela ciência. Cidadãos comuns poderiam obter informação acessível sobre tecnologias complexas como inteligência artificial ou edição genética, possibilitando que participássemos nas conversas sobre políticas que impactam diretamente nossa saúde e nossa vida.
Quarto, precisamos ter o direito de ir à justiça. Hoje, nos EUA, depois que uma patente é concedida, o público não tem amparo legal. Apenas os que têm interesse comercial, usualmente outras empresas farmacêuticas, têm esse direito. Mas eu presenciei em primeira mão como vidas podem ser salvas quando os cidadãos comuns têm o direito de ir à justiça. Em 2006, na Índia, minha organização trabalhou com defensores dos pacientes para desafiar legalmente patentes injustas de medicamentos contra o HIV, num momento em que muitas pessoas morriam, porque o preço dos medicamentos era exorbitante. Conseguimos baixar o preço dos medicamentos em até 87%.
Em apenas três medicamentos, os sistemas de saúde economizaram US$ 500 milhões. Casos como esses podem salvar milhões de vidas e economizar bilhões de dólares. Imaginem se os estadunidenses tivessem o direito de ir à justiça.
E, por fim, precisamos de uma fiscalização mais forte. Precisamos de uma unidade independente que possa servir como um defensor público, monitorando regularmente as atividades do escritório de patentes e relatando ao congresso. Se uma unidade como essa existisse, teria pego, por exemplo, a empresa Theranos, do Vale do Silício, antes que ela tivesse conseguido tantas patentes para exames de sangue e fosse avaliada em US$ 9 bilhões, quando, na verdade, não havia invenção nenhuma ali.
Esse tipo de responsabilização é cada vez mais urgente. Na era da 23andMe, perguntas importantes estão sendo feitas sobre se as empresas podem patentear e vender nossa informação genética e os dados de nossos pacientes. Precisamos participar dessas conversas antes que seja tarde. Nossa informação está sendo usada para criar novas terapias. E, quando o momento do diagnóstico chegar para mim e para minha família, ou para vocês e os seus, vamos precisar de financiamento coletivo para salvar as vidas de quem amamos? Esse não é o mundo em que quero viver. Esse não é o mundo que quero para meu filho de dois anos.
Meu pai está envelhecendo, e ainda é brilhante e moralmente lúcido, como sempre foi. Às vezes nos perguntam se entramos em conflito: o cientista detentor de patentes e sua filha advogada reformista do sistema de patentes. É um grande mal-entendido sobre o que está em jogo, porque isso não tem a ver com cientistas contra ativistas, ou invenção contra proteção. Isso tem a ver com pessoas, nossa busca por invenções e nosso direito à vida. Meu pai e eu entendemos que nossa inventividade e nossa dignidade andam de mãos dadas. Estamos do mesmo lado. É hora de reinventar um sistema de patentes que expresse esse entendimento.
(*) Priti Krishtel, advogada de direito em saúde. Palestra apresentada em uma conferência oficial do TEDWomen 2019. Ela, veterana do movimento de acesso global a medicamentos, quer reinventar o sistema de patentes. Palestra traduzida por Claudia Sander e revisada por Raissa Mendes.
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