Existem acontecimentos que são registrados na nossa memória como uma foto tirada, assim, um pouco, sem jeito. Um material impregnado de emoção e afeto, algo que permanecerá por toda a vida, quiçá pela eternidade.
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista da Revista Época, escreve, um pouco sobre isso na sua matéria “Um embrulho de papel brilhante”, palavras que transpiram uma insuportável fragilidade e finitude nossa e daqueles que amamos:
“A espio chegando, com seus pés tortos por um milhão de problemas, uma bolsa pesada na mão e uma mala de rodinhas. É minha mãe e acabou de descer do ônibus com meu pai. Vejo que ela me procura com olhos ansiosos na rodoviária de Porto Alegre, já pronta pra reclamar que estou atrasada. Eu poderia me apressar. Em vez disso, estaciono minhas botas atrás de uma das colunas. Tento fixar esse momento. Naquele instante eu sei que aquela cena é irrepetível, e de súbito essa revelação me engolfa. Faz alguns anos, já, que a percepção da passagem do tempo se faz nítida em mim. Sinto-me como se estivesse no fundo de uma piscina, ouvindo à distância o burburinho surdo dos outros. Respiro e estou de novo na superfície. Guardo a cena inteira numa dobra do meu corpo, desprego-me da coluna e surjo sorridente diante deles”.
Quantos de nós já não sentimos essa espécie de aperto no coração ao constatar a passagem do tempo e, ao mesmo tempo, o desejo de guardar aquele instante em qualquer lugar que seja, no corpo, no bolso, na gaveta, quem sabe até enterrá-lo como algo precioso que somente nós teríamos acesso, um tesouro escondido a muitas chaves. Assim, Brum desabafa:
“Quando a hora de cuidar dos pais nos alcança, os filhos que se importam encontram-se não apenas em território desconhecido, mas acabam por encontrar um território desconhecido dentro de si”.
É como se a nossa coordenação física e emocional já não funcionassem bem. Mãos demais, cuidados demais, medos demais. Mas o que fazer com tamanha confusão? Brum, na sua costumeira sinceridade delicada, diz:
“Quero protegê-los, mas não sei como. Devo chamar um táxi ou esperar pelo meu pai, como sempre foi? Devo tomar a iniciativa e fazer eu as perguntas para o médico ou devo permanecer como coadjuvante? Devo andar no lado externo da calçada ou devo respeitar o lugar do meu pai, que como todo homem de sua geração sempre se manteve como um escudo entre a rua e as mulheres, na intrincada arte do footing? Ele esclarece: ‘Vá para o meio, para conversar com a tua mãe’. Não vá para o meio porque sou eu que protejo vocês. Eu compreendo a enormidade dessa cena banal. Mas nada digo. Apenas deslizo para dentro”.
Frases como essa irão se repetir na matéria da jornalista. Ao ler “Um embrulho de papel brilhante”, somos, a cada parágrafo, convidados a compartilhar da sua intimidade familiar e com isso, acabamos viajando nas nossas próprias histórias, nas lembranças, no presente que parece irremediavelmente fugidio e, ao final, terminamos a caminhada angustiados pelo inevitável que se anunciará, mais dia, menos dia.
Num texto escrito com mãos, coração e alma, que percorre a existência, nos sentimos cúmplices, personagens onipresentes da história da protagonista. As palavras aproximam escritor e leitor, estreitam as relações e nos tornam humanos.
“Sei que empreendi um caminho de volta para casa, mas essa viagem é apenas interna. Quando um filho parte, nunca há volta. Não deve mesmo haver volta. Há apenas esse tempo roubado, no qual eu posso abraçá-los e fingir que ainda sei o meu lugar. Ou que algum dia soube. Antes da despedida, minha mãe se aproxima com seus pés impossíveis. Me alcança um pacote embrulhado em papel brilhante. Eu sei o que é. Sei também que, por enquanto, estamos todos bem”, finaliza Brum.
Referências
BRUM, E. (2012). Um embrulho de papel brilhante. Disponível Aqui. Acesso em 03/10/2012.