A fala ideal teria sido “sim, vamos lá”. Entraria com ela na loja, compraria a tal caçarola, daria corda à conversa, quem sabe quanta coisa? Como faria a tal sopa? Talvez a provássemos juntas, rindo de tudo.
Mauisa Annunziata (*)
Ela me abordou quando eu subia a rua e conversava comigo mesma sobre horários e compromissos em São Paulo. De relance entendi que pedia uma esmola e procurei a carteira. Atendo-as sempre, as mulheres pedintes. Posso imaginar suas histórias. Eu sou elas por um segundo.
Obrigada a parar, só então a vi e afinal escutei. Pedia sim, que eu lhe desse uma “caçarola” pra que pudesse fazer uma sopa. Apontava a vitrine da loja. Eu já estava com o dinheiro na mão, segurando o guarda-chuva, mal acordada do novelo interno de afazeres quase importantes. Dei-lhe a esmola pronta, enquanto olhos e mente fotografavam.
Ainda consegui dizer:
– A senhora está linda! Sua roupa, seu turbante! Lindos! E ela:
– É que eu estava com frio…
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Aceitou com garbo o elogio a esmola e foi.
Bem negra. Brilhava. Falava bem.
Na cabeça, voltas e voltas de plástico bolha amarrados a barbantes diversos, divertidos davam importância à sua figura. O plástico bolha emprestava transparência e brilho a ela inteira.
Orixá! Babalaô!
Tinha modelado uma túnica amarrada à cintura, as laterais fechadas por grandes sacolas plásticas enfiadas nos ombros pelas alças. Amarela de um lado, azul do outro. Variadas pontas penduravam suas bainhas.
Criação, charme, necessidade.
Descalça, chapinhava reflexos da chuva na calçada da Rua Pinheiros. Parecia uma deusa e queria cozinhar o divino caldo. Eu não entendi a tempo.
E perdi.
Perdi a continuação da cena.
Então sonhei: a fala ideal teria sido “sim, vamos lá”.
Entraria com ela na loja, compraria a tal caçarola, daria corda à conversa, quem sabe quanta coisa? Como faria a tal sopa?
Talvez a provássemos juntas, rindo de tudo.
Escrevia o roteiro, um filme, um curta. Emaranhada, nos próprios nós, adiantada sempre em pensamentos prévios fiquei com a fotografia retida nos olhos e o sonho de um encontro genuíno.
Porque eu mesma não estava lá.
Só dei a esmola, fiz o elogio.
Resolvia questões do futuro próximo e cotidiano: ir ali, levar ali, fazer isto ou aquilo, a que horas.
Como um autômato tinha aberto a carteira sem ver quem pedia o quê.
Estive fora da cena.
A grande protagonista passou.
Passou por mim a grande história, quem sabe.
Não ouvi direito a beleza pura passar tão perto na Rua Pinheiros.
Ruim estar atrasada. Pior andar adiante.
Tem que estar lá.
(*) Mauisa Annunziata – Tenho 72 anos. Escrevo poesias e crônicas. Sou pedagoga, com especializações, que cursei ao longo da vida: Criatividade e Coordenação de Grupos na Abordagem Fenomenológica, e Oficina de Memória Autobiográfica com a Prof.ª Vera Brandão. Publico artigos em revistas de educação e psicologia. Escrevi os livros de poesia Virações (Massao Ohno Editor, 1996); Varais poemas estendidos (Edição independente, 2002); As três joaninhas (poema infantil) (Ed. Paulus, 1997). Sou colaboradora do Portal do Evenvelhecimento com minhas crônicas. E-mail: [email protected]