Como vou embora daqui? Leio nos olhos de minha velha mãe, vejo nos olhos de minha tia, de algumas de suas amigas. Eu mesma as ouvi dizendo palavras como essas. O que lhes digo? Que vivem a ‘melhor idade’? É difícil fazer feliz uma pessoa que vive esse longo fim. Não conseguimos tirar as dores, as insuficiências ou restituir-lhes a vitalidade. A vida lhes pesa. Eles nos pesam, muitas vezes. Eles se cansam de viver, a um ponto quase insuportável.
Mauisa Annunziata *
Houve um tempo em que nosso poder perante a morte era muito pequeno. E, por isso os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. (Rubem Alves)(1)
Quem sou? O que faço? Para quê? Passamos a vida pendurados em interrogações: Agora, com a idade, uma nova pergunta hesita, fala baixo e se pendura no ar: “-Como vou embora daqui?”
Um dos temas no último encontro de A Arte de Envelhecer(2) foi a morte. Falamos de questões de saúde, de médicos, de novas terapias, de alimentação consciente, de exercícios físicos, de remédios. Todas dignas de nota. Tudo que pode nos trazer conforto hoje. Mas, que acaba por prolongar a velhice a um ponto quase insuportável. Para quem vive. Para quem assiste.
-Vida longa! É o brinde que se faz em aniversários e que a medicina torna realidade. Hoje, o homem e a mulher podem ter vida longa. Mesmo quando na velhice recebem da vida muito pouco. Vivem um tempo de faltas e ausências: ausência de pessoas queridas, de sentido, de autonomia, de mobilidade, de apetites e vontades, de alegria, de equilíbrio.
Em momentos difíceis de nossa história de vida fomos obrigados a mudar, fazer nova escolha, decidir, tomar outra direção. Foi preciso, foi importante mudar. A vida estava em nossas mãos e transformar é parte da estrutura vital. No entanto, num longo fim da vida não há mudanças a fazer, não há poder para mudar. A transformação vem do próprio corpo, sem escolha. E não vem. E não finda. Uma espera quase insuportável.
-Como vou embora daqui? Leio nos olhos de minha velha mãe, vejo nos olhos de minha tia, de algumas de suas amigas. Eu mesma as ouvi dizendo palavras como essas. O que lhes digo? Que vivem a ‘melhor idade’? É difícil fazer feliz uma pessoa que vive esse longo fim. Não conseguimos tirar as dores, as insuficiências ou restituir-lhes a vitalidade. A vida lhes pesa. Eles nos pesam, muitas vezes. Eles se cansam de viver, a um ponto quase insuportável.
Eu mesma me pergunto: – Como vou embora daqui? A mudança final poderia estar em minha mão como as outras a que fui impelida a mudar? Não tenho medo da morte. Tenho medo de não morrer.
Assistir aos filmes AMOR (3) e O ÚLTIMO AMOR (4) (duas produções francesas) trouxe-me de volta o termo “paradigma”. Os dois filmes tratam da abreviação da vida. Nos dois enredos a morte está associada a doenças terminais de um dos parceiros, deixando ao outro a “vontade de fim”, ou as incumbências da morte. Esses filmes indicam uma mudança no trato da morte. Um novo paradigma para o fim da vida. Está na tela, está no ar, paira na mente de muitos. Precisa ser pensado, precisa ser expresso.
Velhice é processo de viver e de morrer ao mesmo tempo. Saúde em fase terminal? Mas, a saúde, deixa-se acontecer. A doença trata-se com remédios. Muitos remédios. Cápsulas em cores diversas, pílulas, comprimidos, óleos. Exames aguardados em casa ou a espera em filas intermináveis. E depois vários diagnósticos para promover a saúde “terminal”.
-Você quer fazer exames? Você quer tomar remédios? Deveríamos perguntar. E com certeza muitos diriam: Estou cansado de viver, chega de remédios. Aliviem-me a dor. Porque no fim, viver pode doer, a um ponto quase insuportável.
A eutanásia, a ortotanásia (5) e o suicídio são temas guardados no lado sombrio de nossa cultura. Em tempo algum da história pudemos apresentar a questão do fim ou da consciência do fim, a vontade do fim. Tais práticas, eu imagino, foram inadequadas ao desenvolvimento, à civilização. Quando muitos homens se fazem necessários, fica fora de cogitação abreviar vidas, até a própria. Salvo na guerra. Nesse caso é permitido matar e morrer, mesmo contra a vontade da vítima. Essa é a ética do poder e da guerra!
Marguerit Yourcenar pensa a morte através de seu personagem em Memórias de Adriano (6). São mais de dez páginas de bela reflexão. Nelas, o velho imperador cogita algumas formas de tirar a própria vida. Para isso, precisaria da ajuda de seu médico ou de um servo. Estes o veneram e se recusam a fazê-lo. A pergunta “Como vou embora daqui?” está implícita no texto. O suicídio, aceito para os homens sábios de seu império, afetaria sua própria imagem perante pessoas que o amam. O velho imperador aceita finalmente o fardo da idade e da doença até o fim. Escolhe viver por causa do outro. No entanto, para a população comum do império estava proibido o suicídio. Motivo: a perda de braços necessários ao trabalho ou à guerra. Ou seja, à vida e à segurança da comunidade.
E o que representa para a comunidade hoje um velho ou uma velha cansados de viver. Como podem sair de cena em qual ato? O que diz seu grupo familiar?
São outros os tempos. Somos mais de 7 bilhões nesse planeta. Não importa a idade. Uma sociedade saudável conta com a presença de velhos, crianças, adultos e com pessoas que portam deficiências. As diferenças enriquecem a tessitura social. O que importa é o impulso de vida, a contribuição possível, a capacidade de ação e de superação. Não importa a idade. Importa a vontade de vida. E a vontade da morte fica escondida nos leitos de hospitais, nas casas de repouso, nos quartos em que sobrevivem as pessoas muito idosas. A dinâmica da vida dá exíguo espaço ou esconde a vontade de morrer.
A longevidade muitas vezes compromete a dignidade. Provoca dor moral. Pode acentuar as dores do corpo, já que somos um todo. Que ética vigora nesse caso? Como respeitar a vontade de morrer? Não deveria ser respeitada como devem ser respeitadas a crença religiosa, a cultura daquele idoso ou daquela idosa? Melhor “medicar a depressão”, medicar a velhice? Enquanto não paramos para estudar, essas perguntas ficam presas na garganta ou soltas entre os idosos, seus cuidadores, os familiares. Sem resposta.
Numa palestra a que assisti, a morte foi ilustrada com a figura da caveira e da foice que abrevia os dias. Lembro outra figura: a do anjo da morte que abrevia os dias, as dores, o constrangimento.
“Pensar na morte não é morbidez. É necessário que se reflita sobre ela”(7), escreve Tomiko Born em lúcido artigo publicado na revista do Portal do Envelhecimento. Pensar, estudar, escolher é parte do ‘envelhecimento ativo’ de que fala a autora. Esse é o motivo deste texto: refletir sobre a morte.
E a pergunta – Como vou embora daqui? – permanece pendurada no ar, à minha frente e nos olhos de minha mãe.
Referências
(1) Rubem Alves in Tomiko Born, Quem vai Cuidar de Mim? Disponível Aqui
(2) Arte de Envelhecer: grupo de amigas que conversam sobre os temas aqui apresentados.
(3) Amour – filme de Michael Haneke com Jean-LouisTrintignant,e Emmanelle Riva, Isabelle Huppert ( 2012), França- Oscar de melhor filme estrangeiro
(4) Mr. Morgan Last Love – filme de Sandra Nettelbeck, com Michael Kane, Clemence Poesy (2013)
(5) Ortotanásia – morte que acontece de maneira natural. Parar de intervir numa doença.
(6) Memórias de Adriano, Margherite Yourcenar, p.236 a p.249, Biblioteca Folha, 2003
(7) Tomiko Born, Quem vai Cuidar de Mim? Disponível Aqui
* Mauisa Annunziata é professora universitária aposentada, formada em Pedagogia e Psicopedagogia. Tem especialidade em Criatividade e na Dinâmica de Grupos na abordagem da Fenomenologia. Escreve poesia e crônicas, algumas publicadas no Portal do Envelhecimento. Email: [email protected]