Penso, logo existo. E se existo envelheço

Quando Descartes vira crônica. Para alguém como eu, Descartes é admirável por sua racionalidade inimaginável ao meu jeito de ser. Eu tentava buscar uma lógica para a situação do quase fim que os idosos vivem nas situações de extrema fragilidade. A morte ali ao lado caminhando de mãos dadas como acompanhantes fiéis. A dúvida de toda uma existência que passa a imperar como se fosse resultar em alguma explicação.

Cristiane Pomeranz *

 

penso-logo-existo-e-se-existo-envelhecoViver não é linear.

Havia planejado uma semana repleta de coisas interessantes, entre elas convites para aulas onde falar da intervenção da arteterapia nas velhices me parece um grande desafio já que poucos profissionais têm a real noção dos benefícios oferecidos pela minha profissão na vida dos idosos expostos à suas práticas.

Mas como já dizia o poeta: Tinha uma pedra no meio do caminho.

No meio do caminho tinha uma pedra, e no meu caso, a pedra a que me refiro, estava encalhada no ureter causando um incômodo terrível.

Meu planejamento repleto de coisas interessantes foi trocado por observações de fatos curiosos que aconteciam ao meu redor. Nossa condição humana é mesmo precária.

Idosos sofriam ao meu lado. Suas pedras eram outras. Várias.

Bactérias e vírus de outono lutavam bravamente para serem mais fortes que o ar gelado que condicionava até os pensamentos e transformava todo hospital em um espaço frio no mais amplo sentido.

Uma cortina clara e límpida dividia as dores e eu entre as gotas que caíam do soro ouvia conversas que vinham do outro lado do véu.

Pensava em muitas coisas e duvidava de outras tantas. Por que será que uma senhora precisa, além de enfrentar o Alzheimer, ter outro mal estar que a faça sufocar? E o que passa na cabeça de uma idosa quando a questionam se ela prefere usar “fraldinha” ou ir ao banheiro?

Uma filha pedia a sua mãe que tivesse paciência, afinal era preciso conformar-se. “A senhora é como um carro velho que não para de quebrar”, dizia ela.

Enquanto as gotas caíam eu pensava na vida e em René Descartes e o quanto eu invejo a racionalidade desse filósofo que em momento algum chegou ao meu coração.

O filósofo francês nasceu em 1596 e morreu em 1650. Matemático genial e grande pensador, Descartes era todo razão e colocava a dúvida como método para poder ter a descoberta do sujeito pensante.

Para alguém como eu, Descartes é admirável por sua racionalidade inimaginável ao meu jeito de ser.

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Eu tentava buscar uma lógica para a situação do quase fim que os idosos vivem nas situações de extrema fragilidade. A morte ali ao lado caminhando de mãos dadas como acompanhantes fiéis.

A dúvida de toda uma existência que passa a imperar como se fosse resultar em alguma explicação.

Em meus pensamentos eu existia e envelhecia junto com meus vizinhos de cortina. Pensava na fala doce e sábia de Ana Westphal, filósofa, que insistia em me mostrar a importância de René Descartes que minha burrice emocional não deixava compreender.

Como explicar aos olhos da razão a finitude como fase de uma vida? Uma vida com dores e amores.

O soro continuava a pingar e eu estava amarrada aos meus pensamentos e pelo acesso que latejava em meu braço.

E enlaçada desse jeito faço minha confissão em meio a um grande respeito a esse filósofo:

Tenho dúvidas. Muitas. Mas não as tenho como Descartes sugeria em seu método. Minhas dúvidas são repletas de emoção. Chegam a ser tormentos.

penso-logo-existo-e-se-existo-envelhecoPenso no envelhecimento. Questiono o envelhecer. Observo através das cortinas.

Confesso perder a razão sempre. Flutuo num mar de emoções proibido por esse filósofo. E a emoção deturpa o pensamento, segundo Descartes. Verdade. Comprovada e sentida.

Mas é em meio à emoção que me enxergo no outro. Será que a razão faz isso? O que me diz René?

Eu poderia me perceber na idosa da cortina da frente que não parava um minuto de tossir e que agonizava com tanta dificuldade de respirar pela vida? Perceberia pela razão? Hei, Descartes?

Pois bem. Combinaremos assim:

Livre da pedra sigo meu caminho.

Descartes, sua importância é certa. És dono da minha total admiração, mas não do meu coração. E este pertence a alguém anterior a você. Que entendia a alma das pessoas.

É assim que entendo a vida. Essa é também a minha filosofia.

* Cristiane Pomeranz é arteterapeuta e mestranda em Gerontologia pela PUC-SP. Email: [email protected]

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