Na primeira crônica paulistana falei apenas do centro velho. Hoje, começo pela Praça do Patriarca, passagem obrigatória pra quem vai do velho centro para o centro que já foi novo. De cara, dou de cara com o dono do pedaço. Ele mesmo, o Zé – olha o respeito! – José Bonifácio de Andrada e Silva. Tentei puxar prosa com o velho, mas qual, ele nem deu pelota. Velho orgulhoso, não é a toa que virou estátua. Caminhei então para o viaduto do Chá.
Waldir Bíscaro *
À minha esquerda já quase entrando no viaduto, o magnífico edifício da prefeitura que fora a sede do império Matarazzo, construído nos anos trinta, com mármore travertino romano, em estilo fascista, pesadão, solene. Trabalhei aí nos anos 85 e 86, quando o prédio pertencia ao Banespa.
Já andando pelo viaduto, me lembrei da primeira crônica que mandei pra turma: ”Pega ladrão” e que passo a relembrar: Caminhava tranquilamente pelo viaduto quando percebi algum agito no meio dos pedestres e vi um rapaz que vinha correndo como se fugisse de alguém e ouvi gente gritando: Pega! Pega! O cara vinha na minha direção e iria trombar comigo. Na hora hagá, tirei o corpo fora e estiquei a perna com a intenção de derrubar o “marginal”. Ele tropeçou, mas logo se equilibrou e seguiu correndo.
Passado o susto, continuei meu caminho orgulhoso de haver cumprido meu dever de impoluto cidadão, mas, quando chegava ao fim do viaduto, já perto da praça Ramos, alguém furioso posta-se a meu lado e, aos berros, me diz: O senhor não tem nenhuma consciência. Onde já se viu querer derrubar um artista em pleno trabalho!
Não entendi nada e, meio constrangido, olhei ao redor e foi então que notei uma equipe de filmagem que gravava a cena de fuga de um ator!!!
Dei muita risada… depois, mas, na hora, não foi nada engraçado e me senti representando papel de vilão.
Foi também no viaduto que encontrei, ainda nos anos setenta, a turma da TFP colhendo abaixo-assinados contra Eduardo Frei, presidente do Chile que, segundo eles, estava facilitando o caminho para os comunistas. Eu fazia questão de assinar e, em letras garrafais, escrevia: MAO TSE TUNG! E me safava o mais rápido possível, antes que eles tivessem tempo de conferir. Vai ver, eles não iriam achar nenhuma graça.
Passei pelo Teatro Municipal que acabou de receber merecidas reformas. Foi nesse teatro que aconteceu um dos eventos mais grandiosos de sua história: A solenidade de minha formatura em filosofia, em 1960! Sem aplausos, por favor.
Do outro lado, o prédio onde existiu um dos maiores ícones da cidade, o Mappin, agora promovido a Casas Bahia, mas cadê o charme?
Mais adiante entrei à esquerda na Marconi e cheguei até a Praça Dom José, era hora do almoço e, com certa tristeza, notei que lá não aconteciam mais os “futeboys” que atraiam os office-boys da redondeza e um bando de marmanjos que torcia pelos futuros craques.
Voltei para a Sete de Abril em direção à República. Passei em frente do Ed. Diários Associados onde funcionou a primeira sede do Museu de Artes de São Paulo e da TV Cultura que então pertencia ao grupo do Assis Chateaubriand.
Asseveram as más línguas que muitas das primeiras peças do acervo do MASP foram conseguidas através de chantagem que o valente Chateau infligia em empresários de São Paulo, na base do “ou dá ou desce”. Foi também nesse mesmo edifício dos Diários que se instalou, em 1964, a sede da campanha “Dê Ouro para o Bem do Brasil”, que a gente apelidou “Dedo duro pelo Brasil”. Essa lembrança me provocou náusea.
Fui em frente. Entrei na primeira à esquerda e saí na Barão. A mais elegante do centro estava um tanto brega e sem o brilho de antes. Onde foi parar a livraria Brasiliense que publicou meu primeiro e único livro? A livraria francesa ainda resiste por lá, escondidinha ao fundo de um corredor.
Desci pela Dom José de Barros até a 24 de Maio e lá contemplei as ruínas da grande Mesbla que nos bons tempos figurava entre as “blues chips” da bolsa de valores e que veio a falecer nos braços do “intrépido” empresário R. Mansur. O prédio passa por uma interminável reforma, dizem que o SESC assumiria o imóvel para seus programas culturais, mas, pelo jeito…
Ainda na 24, entrei em uma galeria que frequentei quando trabalhava no falecido Banco Halles, fui em direção da Barão para ver se ainda estaria por lá uma pequena livraria onde eu e meu amigo Osmar costumávamos conversar com um velho livreiro – daqueles que hoje já não se vêm mais – o cara conhecia cada livro e discorria sobre os diversos autores. A gente percebia a alegria do velho pontificando sobre literatura, cultura e filosofia e tendo alguém para ouvi-lo. No lugar da livraria, pastelaria… Será que estou sendo saudosista? Bom, pela idade, tenho o direito de sê-lo.
*Filósofo e psicólogo e ex-professor de Psicologia do Trabalho na PUC/SP.
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