Como as famílias estão organizadas e se preparando para o envelhecimento? Esta pergunta guia esta reflexão, pois ela tem se tornado na principal cuidadora dos idosos, principalmente dos dependentes de cuidados, porém hoje é urgente a necessidade de se repensar essa obrigatoriedade da família em cuidar e oferecer amparo, não no sentido de desresponsabilizar a família, mas de acrescentar mais agentes, projetos e formas de apoio nesses cuidados.
Patrícia de Faria Tasca (*)
Atualmente se faz presente a discussão acerca do envelhecimento humano, tanto o envelhecimento de toda a população nas diferentes sociedades, como também, de que forma está ocorrendo o envelhecimento de maneira singular nas pessoas. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – SBGG, em carta aberta à População Brasileira, datada em 15 de setembro de 2014, já alertou para uma projeção muito grande de idosos nas próximas décadas: “No último Censo realizado pelo IBGE, em 2010, a população de jovens foi reduzida a 24% do total. Por sua vez, os idosos passaram a representar 10,8% do povo brasileiro, ou seja, mais de 20,5 milhões de pessoas possuem mais de 60 anos, isto representa incremento de 400% se comparado ao índice anterior. A estimativa é de que nos próximos 20 anos esse número mais que triplique”.
A relevância da discussão do tema traz benefícios à profissionais que de alguma forma trabalhará com idosos, como também para a sociedade em geral fazendo refletir e estar cada vez mais presente na vida das pessoas o conhecimento a respeito dessa fase da vida, as repercussões e enfrentamento dos próprios preconceitos.
A partir de tantas reflexões a respeito desse fenômeno tão complexo que ainda temos muito a aprender, faz-se necessário também saber como as famílias estão organizadas e se preparando para o envelhecimento. Já que de acordo com a Constituição Federal de 1988 no artigo 229 diz: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” A responsabilidade da família em amparar os idosos é reforçada no artigo 230: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.” E trazida novamente no Estatuto do Idoso de 2003: “Art. 3o É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”
Sendo assim a família torna-se a principal cuidadora dos idosos, principalmente dos dependentes de cuidados, porém hoje é urgente a necessidade de se repensar essa obrigatoriedade da família em cuidar e oferecer amparo, não no sentido de desresponsabilizar a família, mas de acrescentar mais agentes, projetos e formas de apoio nesses cuidados. Visto que também, segundo o estatuto do idoso, não é somente responsabilidade da família, mas também da comunidade, da sociedade e do estado, logo todos devem se implicar e fazer parte deste momento de alguma forma. Para reforçar a ideia segue a seguinte afirmação: “A família é a principal fonte de apoio sempre que ocorrem incapacidade e dependência nos idosos. Nos países desenvolvidos, muitas funções familiares são complementadas (raramente substituídas) pelo setor público. No Brasil, a família ainda é a principal fonte de apoio dos idosos incapacitados, dos quais cuida praticamente sem suporte do poder público. (SOMMERHALDER, 2001 apud QUEROZ, 2010, p. 114).”
Vale ressaltar que se faz urgente também pelo fato de que teve mudanças nos arranjos familiares, as mulheres tinham papel diferenciado na sociedade, basicamente eram as principais cuidadoras familiares, tanto das crianças, quanto dos velhos da família. E atualmente as mulheres estão tendo menos filhos, quando os têm, e conquistaram outro espaço na sociedade e ainda assim na maioria das vezes permanecem cuidadoras principais, apesar de todas as outras funções. Será que as famílias estão capacitadas a prestar apoio aos idosos?
Em estudo realizado por Santos (2013, p. 27), quando problematiza a respeito da desinstitucionalização do cuidado, retornando para esfera doméstica, baseada nos artigos da constituição federal e dizendo que “a família é percebida como a cuidadora ideal, embora, na realidade concreta, conforme apontaram todas as pesquisas, permaneça desassistida e tendo que assumir sozinha mais essa responsabilidade. ”
A família aqui entendida é a conceituada no IBGE como conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar. Para ser congruente com as reflexões se faz necessário acrescentar para o conceito da família não necessariamente pessoas que residam na mesma da unidade domiciliar, pois nem sempre os filhos e outros familiares moram na casa dos idosos.
Focando na relação de cuidado dentro da esfera familiar, aqui trazida mais especificamente, na relação do familiar com o idoso dependente, fragilizado. Pode-se dizer que: “É no campo familiar que as pessoas aprendem e desenvolvem suas práticas de cuidado bastante influenciadas por sua cultura: geralmente é a família quem decide o momento de procurar pelos agentes do campo profissional ou do campo popular e também quem estabelece o contato com esses profissionais. Em alguns casos, o cuidado dispensado pelos membros da família pode não ser o mais adequado tecnicamente, mas tem uma forte expressão simbólica por envolver vínculos afetivos, alianças e o compartilhar de uma história que é peculiar a cada família (SANTOS, 2013, p. 13)”
A partir dessa reflexão formula-se a seguinte questão: mas, e quando não possuem vínculos afetivos? Ou as relações já são tão desgastadas e os vínculos se encontram fragilizados? Como se dão esses cuidados?
Pensando em formas de responder a essas indagações, através de exploração a respeito do tema foi encontrado um conceito que traduz esse momento de cuidados prestados aos idosos por famílias fragilizadas, pôde ser observado através de estudos que a Insuficiência Familiar está diretamente conectada aos relacionamentos humanos, e “essa fragilização do suporte familiar deu origem a outra grande síndrome geriátrica, a insuficiência familiar, cuja a abordagem é extremamente complexa” (MORAES, 2012, p. 43).
Para explicar um pouco do que é a Insuficiência Familiar, poucos estudos referentes a este tema especificamente foram encontrados. A Insuficiência Familiar é atualmente descrita como uma Síndrome Geriátrica, dentre os 7is ou gigantes da geriatria como cita Lopes & Oliveira (2010).
De acordo com Souza et.al (2015, p. 1181): “[…] a vulnerabilidade social da família também se caracteriza como condição a priori da insuficiência familiar na pessoa idosa. Tal vulnerabilidade familiar pode ser provocada pelo desemprego, pela dependência de álcool e drogas, por vínculos ou desgaste desses com problemas da vida moderna, tais como a valorização dos bens materiais, o fortalecimento do individualismo entre os familiares, a perda dos valores da autoridade e do respeito, entre outros.”
Falando em Vulnerabilidade, Silva (2015, p. 119), em seu livro propõe falar sobre Vulnerabilidade Humana e Envelhecimento, mais diretamente do título que se refere ao direito dos idosos traz a seguinte afirmação pertinente a reflexão aqui proposta, demonstrando o quão complexo é o cenário que o cuidador familiar de idosos dependentes encontra: “[…] as redes informais de apoio tendem a esgarçar-se com a velhice, seja pela perda de entes familiares e amigos, ou porque há uma geração de cuidadores pressionados não só por tarefas com pais idosos, mas com seus filhos e netos (“geração sanduíche”), ou ainda porque a referência de cuidado já é, ela própria, idosa (filhos maiores de 60 anos, esposa ou esposo idoso), ou mesmo pelo despreparo das famílias para lidar com o envelhecimento e eventuais situações de doença.”
Toda essa situação encontrada no cotidiano das famílias remete diretamente à predisposição a síndrome de insuficiência familiar, salienta-se que no texto lido acima não se fala em Insuficiência familiar diretamente, mas entendendo um pouco melhor o conceito é possível fazer essa relação.
Com base em pesquisa bibliográfica intitulada: “Conceito de insuficiência familiar na pessoa idosa: análise crítica da literatura, em que o objetivo era o de identificar na literatura os atributos do conceito “insuficiência familiar” na pessoa idosa; os pesquisadores criaram uma nova proposta teórica do conceito de insuficiência familiar na pessoa idosa, onde traz de forma mais completa a caracterização, determinantes e consequentes dessa síndrome: “Insuficiência familiar na pessoa idosa caracteriza-se como processo psicossocial de construção complexa fundado no vínculo familiar prejudicado e, sobretudo, no baixo apoio social; este determinado principalmente pela precariedade do apoio da família, tanto emocional quanto de ajuda instrumental. Transformações contemporâneas no sistema familiar, dentre elas a inversão do papel do idoso e o seu ninho vazio, associadas aos conflitos intergeracionais e ao comprometimento das relações familiares, podem desencadear ou fortalecer a vulnerabilidade social da família. Já a vulnerabilidade social da pessoa idosa, o declínio de sua saúde psicológica e funcional, com menor qualidade de vida, enfim, o envelhecimento mal sucedido são consequentes da insuficiência familiar na pessoa idosa (SOUZA ET.AL, 2015, p. 1183).”
Evandrou & Victor (1989) apud Debert (2004, p. 83), que discutindo a respeito da família, integração e segregação espacial dos idosos trouxe outra consideração, que apesar de não ser recente ainda é presente na problemática atual das famílias e em constante crescimento que é: “O fato de os idosos viverem com os filhos não é garantia da presença do respeito e prestígio nem da ausência de maus-tratos. As denúncias de violência física contra idosos aparecem nos casos em que diferentes gerações convivem na mesma unidade doméstica. Assim sendo, a persistência de unidades domésticas plurigeracionais não pode ser necessariamente vista como garantia de uma velhice bem-sucedida, nem o fato de morarem juntos um sinal de relações mais amistosas entre os idosos e seus filhos.”
Ponderando a respeito de tudo estudado e dialogado, conclui-se que é necessário pensar ações concretas para auxiliar as famílias a enfrentar esse momento, talvez levando informações a respeito do envelhecimento com dependência, como também persistir na divulgação crescente para o conhecimento das pessoas de forma individual e coletiva a respeito do processo de envelhecimento, e suas particularidades, como já falado anteriormente, possivelmente atingirá a ideia que as pessoas possuem da velhice em si, dos preconceitos existentes a respeito desse momento da vida. Esforços devem ser contínuos no sentido de inspirar as pessoas a mudar o ponto de vista e enriquecerem o olhar para o envelhecimento com algo inerente à vida.
O conceito de Insuficiência Familiar na pessoa idosa necessita de mais estudos, muitas declarações e pesquisas foram encontradas onde propuseram estudar a relação entre os familiares e os idosos, principalmente os dependentes de cuidados decorrente ao estado de saúde, encontrados também muitos estudos a respeito do cuidador familiar, porém poucos, ou quase nenhum relacionado ao conceito de insuficiência familiar. Ás vezes pelo fato de ser um conceito ainda pouco difundido, estudado e caracterizado, ou somente entendido como algo que compete ao contexto em que o idoso está inserido combinado à um conjunto de síndromes geriátricas.
Contudo, acredita-se que esse conceito possa ser utilizado e entendido não somente como uma síndrome geriátrica, mas sim todo um complexo ambiental de relações sociais existente hoje na vida dos idosos, familiares e sociedade em geral. E para além disso um planejamento de ações serão necessárias para que esse cenário não seja ainda mais complicado e difícil de lidar e viver.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
______. Estatuto do Idoso. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003.Disponível em: https://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2003/L10.741.htm.
______. Carta aberta à população da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia de 15 de setembro de 2014. Disponível em: https://sbgg.org.br/envelhecimento-no-brasil-e-saude-do-idoso-sbgg-divulga-carta-aberta-a-populacao-2/.
DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo 1ª reimpressão, Fapesp, 2004.
LOPEZ,R.G.C. & OLIVEIRA. S.J. Insuficiência Familiar: o enfrentamento ao gigante. Revista Portal de Divulgação, n.1, Ago. 2010. Disponível em: https://www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista/index.php
MORAES, N.E. Atenção à Saúde do idoso: Aspectos Conceituais. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012.
QUEROZ, N.C. Aspectos do conhecimento psicogerontológico para a atenção à família, ao cuidador e às instituições de idosos fragilizados. In: FALCÃO, D.V.S (org). A família e o Idoso: Desafios da Contemporaneidade. Campinas, SP: Ed. Papirus, 2010.
SANTOS, S. M.A. Idosos, família e cultura: um estudo sobre a construção do papel do cuidador. Campinas, SP: Ed. Alínea, 2013.
SILVA, A.C.A.P. Vulnerabilidade humana e envelhecimento: o que temos a ver com isso. São Paulo: Portal Edições: Envelhecimento, 2015.
SOUZA, A. et. al. Conceito de insuficiência familiar na pessoa idosa: análise crítica da literatura. Revista Brasileira de Enfermagem. 2015 nov-dez;68(6):1176-85. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/0034-7167.2015680625i
(*) Patrícia de Faria Tasca é psicóloga. Texto escrito para o Curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, da COGEAE/PUC-SP, segundo semestre 2016. E-mail: [email protected]