Olhares acerca do envelhecimento: leitura da peça "Tio Vânia" de Tchékhov - Portal do Envelhecimento e Longeviver
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Olhares acerca do envelhecimento: leitura da peça “Tio Vânia” de Tchékhov

A partir da peça, e da trajetória de Vânia, compreende-se que pouco se fala dos aspectos positivos do envelhecer, havendo uma estigmatização negativa do envelhecimento. 

Rodrigo Borborema (*)


“Tio Vânia” foi escrita por Anton Tchékhov no final do século XIX, e dirigida em sua primeira produção por Constantin Stanislavski. Trata-se de nada menos que um patrimônio cultural produzido por dois dos maiores nomes da história do teatro. A trama é protagonizada pelo personagem Ivan Voinítski (Vânia), um sujeito frustrado com a própria história, que sente-se velho, e arrependido por não ter realizado grandes coisas em sua vida. Ao longo da trama, mostra-se infeliz e desmotivado, passando por uma mudança ao final da história. A partir da peça, e da trajetória de Vânia, podemos compreender o processo de envelhecimento, e as visões acerca deste, compreendendo que ele envolve fatores negativos e positivos, e que pouco se fala dos positivos, havendo uma estigmatização negativa do envelhecimento. 

Vânia vive em uma propriedade rural na Rússia, acompanhado de Serebriákov, um professor aposentado, detestado por Vânia; Helena, jovem esposa do professor; Sônia, sobrinha de Vânia; e Àstrov, um médico que visita a propriedade. No início da trama, o protagonista apresenta-se despenteado, após um cochilo, dizendo que tudo é sempre igual, que ele não faz nada, que só resmunga como um velho caquético. Afirma ser cheio de frustrações e ódio por ter deixado o tempo passar sem ter tido grandes conquistas, e que agora era tarde demais para reverter essa realidade. Ele se declara amorosamente para Helena diversas vezes, sendo recusado; os demais personagens também não o valorizam. Ele diz que se sente oprimido todos os dias pela ideia de que havia perdido a própria vida, que não tinha passado, e que o presente não tinha o menor significado. 

Ao longo da história, Vânia vai demonstrando o seu amargor e frustração, sem vivenciar experiências agradáveis, chegando a ver Àstrov, com quem rivaliza, seduzindo a sua tão desejada Helena, e o odiado professor contando a todos que desejava vender a propriedade. Nesta reunião com o professor, Vânia fica extremamente aborrecido, e afirma que se a propriedade estava em ordem, era devido ao seu trabalho do passado, e que o professor não tinha o direito de vendê-la. O protagonista chega a tentar matar o professor (sem sucesso) com uma arma. 

No Quarto Ato, o professor e Helena (que desejava se afastar de Àstrov, por desejá-lo amorosamente) se retiram da propriedade, mudando-se para outra cidade, tornando o ambiente terno e acolhedor para os que haviam ficado. Ainda durante a saída dos dois, Vânia diz que precisa se ocupar de algo logo, e começa a trabalhar com Sônia, como no passado, e fica totalmente imerso e concentrado em seu trabalho. Ele diz que ainda sente dor em seu coração, mas mostra ter passado por uma mudança, e demonstra se sentir motivado a produzir algo, como no seu passado, aparentando ver agora um significado para sua vida. 

A partir da peça, e da trajetória de Vânia, podemos entender o processo do envelhecimento, assim como as visões (mais frequentemente apresentadas) da velhice. O envelhecimento é majoritariamente tratado como um problema social, sendo os idosos vistos como um encargo para a sociedade. Tal visão parte de pessoas não idosas, que ao definirem o envelhecimento, a partir de estereótipos, colaboraram para que haja uma representação social da velhice como uma fase negativa e homogênea, associada com sofrimento, solidão, doença, dependência, feiura, entre outros conceitos negativos.

A velhice, do ponto de vista biológico, é compreendida como um processo degenerativo, que envolve um desgaste natural das estruturas corporais, sendo associada a défices físicos, cognitivos e comportamentais. Entretanto, olhar a velhice somente a partir da visão biológica trata-se de uma redução desse fenômeno, que envolve múltiplos fatores. É preciso reconhecer que o negativismo em torno do processo de envelhecimento envolve uma construção social carregada de estigmas, que por vezes são absorvidos pelos idosos, lhes gerando mal-estar, e que a percepção social formada acerca da velhice influencia fortemente os papéis que se possibilita que os idosos ocupem.

Vânia demonstra ter absorvido os estigmas acerca do envelhecer, de forma que associa a velhice com os conceitos negativos aqui citados, ao se dizer “rabugento como um velho”, “fracassado, sem possibilidade de mudança”, ou ao ouvir que “era belo antes de envelhecer”, entre outras falas marcantes da peça. O protagonista se mostra frustrado com a sua realidade, especialmente por ver-se envelhecendo, e aceita seu papel secundário de “tio de alguém” em seu meio social. Ele aparenta sentir saudade dos tempos em que trabalhava, mas devido à aceitação do papel de acabado, incapaz, permanece nessa situação. 

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Em meio a isso, o espectador espera um desfecho melancólico na trajetória de Vânia; entretanto, é surpreendido pela mudança do protagonista, evocada pela saída do professor e de Helena da propriedade. A partir da “renovação” de Vânia, pode-se perceber que a desmotivação e inatividade dele não se davam por “estar velho”, como tanto se afirmou ao longo da história, e sim devido ao contexto em que ele estava inserido até o Quarto Ato. Assim, demonstra-se que é possível vivenciar pontos positivos no processo de envelhecimento, e que a velhice não é um processo homogêneo, de forma que há inúmeras possibilidades de “envelhecimentos”, assim como inúmeras possibilidades no processo de envelhecimento de um só indivíduo. 

Como consequência disso, devemos nos propor a compreender o envelhecimento ultrapassando as noções pré-construídas acerca deste, vendo também os fatores positivos da velhice, que são explicitados quando o idoso é diretamente questionado a respeito da sua vivência. Estudos demonstram que a partir de depoimentos de idosos, a velhice é descrita de forma majoritariamente positiva, e de forma diversa. Vemos, portanto, que ela não se resume ao sofrimento, envolvendo prazer e ganhos significativos, e que não pode ser reduzida a uma só experiência. 

A partir das observações apresentadas, conclui-se que devemos olhar de forma crítica para a visão que construímos acerca do processo de envelhecimento, de forma que construamos uma percepção realista da velhice, que possibilite que lidemos com os problemas desta, mas que se oponha à sua estigmatização negativa.   

Referências
TCHÉKHOV, Anton Pavlovich. O jardim das cerejeiras; seguido de Tio Vânia. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
JARDIM, Viviane Cristina Fonseca da Silva; MEDEIROS, Bartolomeu Figueiroa de; BRITO, Ana Maria de. Um olhar sobre o processo do envelhecimento: a percepção de idosos sobre a velhice. Rev. bras. geriatr. gerontol.,  Rio de Janeiro ,  v. 9, n. 2, p. 25-34,  Aug.  2006.  
GUERRA, Ana Carolina Lima Cavaletti; CALDAS, Célia Pereira. Dificuldades e recompensas no processo de envelhecimento: a percepção do sujeito idoso. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 15, n. 6, p. 2931-2940,  Sept. 2010. 
SANTOS, Flávia Heloísa dos; ANDRADE, Vivian Maria; BUENO, Orlando Francisco Amodeo. Envelhecimento: um processo multifatorial.Psicol. estud.,  Maringá ,  v. 14, n. 1, p. 3-10,  Mar.  2009 .

(*) Rodrigo Borborema Aluno do 5º período da graduação do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Trabalho escrito na disciplina “Velhos nas peças de teatro”, ministrada pela profa. Ruth Gelehrter da Costa Lopes, que teve como proposta analisar como o teatro oferece farto material sobre o processo de envelhecimento contemporâneo. Email: rodrigoborborema17@hotmail.com


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