Volto a dizer… quem diria eu, agora sábio varal, seria testemunha das mudanças de uma família ao longo de tantas décadas.
Por Grace Knoblauch Bossert (*)
Parte 1 (2019)
Quando fui instalado, não tinha nem máquina de lavar neste apartamento.
Não demorou muito chegou uma máquina. Mesmo sendo usada, encantava a mulher do apartamento. Ela ficava feliz com o som da roupa batendo como se fosse música! Esses humanos…
As roupas molhadas foram penduradas e deu para perceber que a mulher morava sozinha, eram roupas do mesmo tipo, vai ver é por isso que ela ficava me olhando com um jeito orgulhoso de quem conquistou seu teto.
O tempo foi passando e este ato virou rotina, até que, como se diz na Índia, “chegou um homem que nunca partiu”.
Eita! Foi legal quando teve roupa nova no pedaço. Pois é… A mulher não estava mais sozinha, e cá entre nós, nunca vi um sorriso tão grande ao pendurar uma cueca.
As novidades continuaram com umas roupas masculinas, camisas, calças, meias tipo social. A coisa foi ficando séria entre eles.
CONFIRA TAMBÉM:
Meu amigo da Casa Azul
- 16/05/2023
A contradição da artrose
- 14/09/2023
Depois a casa passou um tempo fechada, mas logo eu descobri o que tinha acontecido. Havia uma camisola de seda rendada, dessas românticas de noite de núpcias. Bingo! Eles tinham se casado. Era bonito segurar a camisola, que de tão leve, tremia diante da mínima brisa.
Logo chegou uma máquina de lavar nova! Ela não fazia barulho e até tocava música no final, para mim foi até bom, não precisava mais carregar tantas roupas, que já saíam secas! Essa modernidade…
Então apareceu uma calça diferente, uma jeans com elástico na cintura! Será que eles vão ser pais?
Agora tenho certeza! Pelas roupas de hoje, vem uma menininha por aí! As roupas cheiram sabão de côco com amaciante para bebê. Hummmmm…
Nossa… Quanta novidade… bodies, paninhos de boca, paninhos de mão, toalha com capuz de ursinha cor de rosa, tudo pequeno, tamanho “New Born”.
Fazendo uma retrospectiva, desde a época da primeira roupa, depois das cuecas, camisas, camisola de núpcias e agora com as roupas de nenê, entendo melhor os ciclos da vida dos humanos!
Quem diria que eu, um simples varal, seria testemunha das mudanças de uma família.
E quer saber? Estou preparado para o que der e vier!
Ass.: O varal. Escrito em 2019 antes da minha primeira filha Katherine nascer
Parte 2 (2023)
E quer saber? Eu nem imaginava o que viria!
Vamos começar pelo nascimento daquela menininha, tantos bodies manchados, fraldas, meias… uau… o ritmo era intenso! Meus braços quase não davam conta.
Um tempo depois surgiu um tipo de suspensório diferente, ouvi a mulher da casa explicando para as visitas, que era o Pavlik! Uma maravilha para as crianças que nasciam com displasia de quadril, não precisa de gesso. Será que a menina nasceu com isso? Não sei… só sei que foi rápido, logo não o vi mais aqui.
Nicolae Grigorescu – “Senhora Costurando” (1867)
Estou ficando confuso, em menos de 1 ano, aqueles bodies cor-de-rosa ressurgiram e novos também! Acho que novamente a família vai aumentar, e será uma menina certamente.
Aquelas roupas de antes eram tão novas, lavadas com tanto cuidado, agora estão velhas e surradas, acho que o tempo disponível para cuidar delas mudou, tampouco o orçamento, pois elas persistem!
Isso não está tão relevante, pois ouço daqui da lavanderia risos, choros, brigas e sussurros de noites de amor na madrugada, acho que isso é a vida também.
Ops! Algo está acontecendo, tremi, será labirintite ou terremoto? Um… estão me tirando daqui, me instalaram em outro lugar, disseram que o prédio onde eu estava, poderia cair, mas vai saber… o importante é que estamos bem! Saímos às pressas, a mulher da casa estava grávida de 8 meses, o homem da casa dizia “chora depois, temos que sair rápido” e para a filha pequena “Vamos passear na casa da vovó! Que legal”.
Esta casa em que vivo agora é enorme e estou adorando ver novas roupas em mim, tem roupas de um divertido senhor bem barrigudinho e de uma senhora bem elegante, às vezes roupas sujas de tinta, mas com eles aprendi que mancha não é sujeira!
Então começam as roupas da menininha que chegou, o Pavlik voltou, mas sei que ele vai ficar pouco comigo, e assim foi! Ele mesmo se despediu dizendo “vou ajudar outras crianças!”.
Alguns meses depois, novas roupas… será que mais alguém vem morar com a gente? Casa grande em coração grande é assim, sempre cabe mais um.
Pelos bordados e detalhes europeus, me parece uma idosa de origem alemã? Austríaca? Sim! Ela chama a pequena que nasceu de “kleine hexe”! É a mãe daquele homem da cueca… aquele que chegou para ficar, mas é assim, uns ficam, outros vão… e logo não vi mais as roupas desta senhora.
Cerca de um ano depois voltamos para nossa casa, depois voltamos para cá e depois a casa que estou agora, gosto muito daqui.
Agora tenho companhia para dar conta das roupas. Aumentou o volume das roupas e também vejo uma roupa com um número maior… pelo visto a mulher da casa perdeu suas formas de “xóvem”, mas também vejo a roupa dela de ginástica… às vezes todos os dias, às vezes fica semanas sem pendurar. Ah… essas mulheres!
Outra vez vi roupas daquele senhor barrigudinho por aqui. Às vezes ouvia a mulher da casa chorando, acho que de saudade, está me parecendo que ele também se foi, mas a frase da camiseta dele “Every day is a training day” de alguma forma a confortava, como se ele sempre dissesse “levanta!”. O pai se foi em Dubai, Pandemia, foi o que soube.
Esse vai e vem de roupas seguiu por muito tempo. As cuecas seguem em igual quantidade, mas os sutiãs… vejo que agora são para 3 mulheres.
As roupas daquela senhora elegante também vieram balançar por aqui. A família está unida. Época de amor também, mas depois não as vi mais. Choros de saudade por aquela que ficará na lembrança. Humanos e seus ciclos.
Até que as roupas da primeira menina se foi, depois a outra… acho que as meninas voaram! Morando sozinhas? Casaram? Choro de saudade por uma fase que não volta mais e orgulho por ver que deu certo. Valeu o esforço.
Depois vejo mais lençóis, muitos! Estranho… antes eram menores, agora são maiores… acho que tem algum adulto fazendo xixi na cama. Depois isso parou.
Até que as roupas tanto da mulher como do homem da casa se foram, não as vi mais… depois nenhuma por aqui por um tempo.
Para aonde foram todos?
Até que novas chegaram! Vejo novamente roupas da família… e o que me impressiona é que aqueles macacõezinhos voltaram! Como pode?
Volto a dizer… quem diria eu, agora sábio varal, seria testemunha das mudanças de uma família ao longo de tantas décadas.
E quer saber? Estou pronto para o que der e vier!
Ass.: O varal. A Parte 2 foi escrita em 2023, proposta por Cristiane Pomeranz, durante a aula sobre idoso no curso de Pós Graduação em ArteReabilitação: “Escrever em primeira pessoa sobre sua própria vida por meio de um objeto”; como já tinha escrito a primeira parte em 2019, respirei fundo e escrevi a continuação com suposições futuras.
(*) Grace Knoblauch Bossert é especialista em Arteterapia Gestáltica, Pós-Graduanda em Arte Reabilitação. Como filha de artistas plásticos, nasceu na arte e cresceu observando quão mobilizadora ela é. Percorreu a carreira executiva até se encontrar na Arteterapia e ao longo de um atendimento com uma senhora de 94 anos com demência, descobriu que poderia ir mais além pela Arte Reabilitação. É casada, tem duas filhas e escreveu dois livros “Rally dos Sertões – Bastidores e Emoções por um Olhar Feminino” e “O Relicário de Compostela”. Contato: www.neuroarte.com.br / grace@neuroarte.com.br
Foto destaque de Karolina Grabowska/pexels