Malaquias diz que é importante ensinarmos jovens e crianças negras a serem aquilo que queiram ser.
“É como a dança do tempo, ao par, em que temos que buscar acertar o passo com o tempo e incluir o ‘aqui e agora’, tornando uma boa dança.” (Malaquias)
No desenvolvimento de meus estudos como psicodramatista, ao buscar a literatura, me deparei com a obra de título Psicodrama e Relações Étnico-Raciais, de Maria Celia Malaquias, psicóloga-psicodrama didata supervisora, mestre em Psicologia Social e pesquisadora. A obra apresenta conteúdo bastante relevante e traz ainda mais luz para a potência que tem o psicodrama¹.
Durante a leitura, já foi instalada em mim uma admiração pela autora e não demorou muito para que num dia de congresso eu a encontrasse na mesma sala em que participávamos de uma apresentação com tema de questões raciais. Assim, tivemos o nosso primeiro encontro, onde realmente entendi que no psicodrama não temos hierarquia, mas um papel que complementa o outro.
A admiração só foi aumentando, pois ela cumpriu com vigor o desafio de ser presidente daquele congresso e inovar nas temáticas ao trazer dramas da contemporaneidade social, como o da exclusão.
Tivemos a oportunidade de discutir, vivenciar e repensar novas possibilidades de transformação de uma sociedade que seja mais inclusiva e igualitária. Depois desse dia me tornei contrapapel² em duas frentes de Maria Célia Malaquias: ao participar de seu grupo de estudos étnico-raciais, um espaço que vai além do acadêmico, pois recebe sua sensibilidade e acolhimento nas dores, anseios e sonhos que cada profissional reflete ao adentrar nessa temática; e em sua supervisão, onde mais uma vez vivenciei a sensibilidade e a escuta ativa que Malaquias apresenta na condução de seus grupos.
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Sendo assim, essa não poderia ser uma entrevista em que não utilizássemos as cinco etapas do psicodrama, uma vez que ela e eu estamos inseridas no contexto dele.
Etapa 1. Aquecimento inespecífico
Convite para entrevista aceito e encontro marcado.
Muitos solilóquios³ ao pensar em como trazer um pouco de sua história.
Etapa 2. Aquecimento específico
Música “Oração ao Tempo”. Para introduzir a entrevista, ouvimos juntas a música de Caetano Veloso para uma conexão com o “aqui e agora” na temática do envelhecimento.
Etapa 3. Dramatização
Nesta etapa, o palco foi revisitar os papéis e o processo de envelhecimento através da entrevista. Aqui, seguimos num “como se” sem a dramatização em cena, mas transformada em perguntas.
Silmara: O que essa canção lhe traz sobre sua história?
Maria Célia: Interessante ouvi-la neste momento. Eu sempre gostei dessa música, e quando a ouvia, tinha a sensação de que o tempo estava lá na frente. Agora traz a sensação de estar no tempo presente, um tempo que é veloz e que deve ser melhor aproveitado. Olhar para o passado e entrar profundamente no presente. É como a dança do tempo, ao par, em que temos que buscar acertar o passo com o tempo e incluir o “aqui e agora”, tornando uma boa dança.
E como enxerga a responsabilidade sobre o caminhar das nossas vidas que imputamos ao tempo?
Acho que isso é algo que precisamos aprender, pois ainda damos ao tempo uma responsabilidade que não é dele. Ele não determina. Eu já priorizei algo que até era importante, mas não sendo algo que eu desejava naquele momento. A questão do trabalho é um exemplo. Nele, tudo cabia. Isso num passado recente. Faltava priorizar o tempo do lazer e o do conviver, o que me fazia entender que eu não tinha tempo. Existe uma subjetividade no lidar com o tempo, pois ele é o mesmo pra todos. O relógio e seu compasso não mudam. O todo que lhe determina é a qualidade que aplicamos a ele.
Em uma live em que apresenta seu trabalho, aparece em um dos slides uma foto sua e você cita que a pessoa que diagramou aquele trabalho utilizou-se de uma foto antiga. No “aqui e agora”, pense naquele retrato e fale em voz alta o que ele te diz.
Eu me surpreendi naquele momento com essa foto, gostosamente. Me veio o pensamento: Eu era assim?! Me surpreendi também por me ver muito jovem, com a pele mais lisa, mais brilho no rosto e mais magra. Gosto dessa foto pelo aspecto físico e por registrar um momento bacana. Me senti no momento atual menos cuidada. Não no sentido estético. O susto que levei foi ao perceber com um olhar do outro os sinais do envelhecimento. Lembro de um livro que li chamado Passagens. Nele, a personagem encontra conhecidos da juventude e vai citando o quanto essas pessoas envelheceram. Num determinado momento ela também se reconhece na velhice. Sobre a foto, não sou aquela, mas sou. Só não exatamente como aquela. É um novo reconhecimento de si. Essa sou eu?! São as rugas de expressões e do passado. Tenho essas duas. Elas contam a vida que foi vivida, marcas físicas e emocionais, registros de uma história.
Você tem muitos papéis além dos familiares, como psicodramatista, supervisora, escritora e ativista. Sabemos que na visão moreniana, quanto mais papéis, mais vínculos relacionais teremos. Como entende que essas relações contribuem no seu envelhecer?
Contribuem para um envelhecer dinâmico e antenado. Convivo com pessoas e grupos diferentes que me proporcionam estar em atividade física e mental. Estar com o outro me exige um cuidado com minha saúde física, estética e mental. Isso atenua o meu envelhecimento e o cuidar do todo. Especialmente nessa etapa da vida tenho esse ganho com essa gama de papéis que tenho. Agora tenho preservado o tempo de meditar e de não fazer nada, o que tem me ajudado na qualidade de vida. Antes, meus momentos ociosos eram interrompidos por paradas para escrever, mas agora estou me autorizando a ficar em paz e me dedicar ao nada. Esse tempo favorece a termos novas ideias e reinventar coisas.
Os vínculos relacionais também possibilitam vivenciarmos um fenômeno télico4 e o encontro moreniano5. Você teve essa vivência? Se sim, em qual momento? Já percebeu isso relacionado ao envelhecimento?
Frequentemente encontro alguns amigos da época da faculdade, dentre eles um grande amigo. Ali há um grande reconhecimento, fenômeno télico. Outro encontro que também posso classificar assim é o que tenho com os meus sobrinhos-netos. Me lembro quando ainda criança, minha mãe e minhas tias falavam: “Como cresceu!” Agora me pego fazendo o mesmo. Vejo o outro como se estivesse me vendo ali. É como um espelho.
Você cita que seus avós paternos e maternos nasceram no ano da abolição e diz: “Sou a terceira geração de libertos […]”. Qual o impacto dessa árvore genealógica para sua vida e seu ativismo?
É profundo isso, Silmara. Só fui me dar conta muito tempo depois de trabalhar com as nossas lutas. Olhar para o passado, saber nada sobre eles e de como viveram. Uma época que não se falava a palavra “negro”. Nunca os questionei sobre o passado, mas sei que lutaram. Foram sobreviventes de pais escravizados. Sempre compreendi que cada geração tem sua forma de lutar. Agradeço aos meus avós, pais e aos demais antepassados que abriram caminhos. Malaquias, da família de meu pai, e Oliveira, da família de minha mãe. Todos nós estamos aqui porque eles resistiram e lutaram. Eu cheguei mais fácil do que os meus pais e, meus sobrinhos, mais facilmente que eu. Temos o nosso compromisso, pois as barreiras são as mesmas, mudando em si as formas de se apresentar, tudo a serviço dos poderes, assinalando que não é para existirmos. O ativismo vem dos meus pais que me ensinaram que o meu lugar é em qualquer lugar onde eu queira estar. É importante ensinarmos jovens e crianças negras a serem aquilo que queiram ser. Nós, que somos da saúde, temos que buscar e refletir para oferecer mais qualidade, entendendo a subjetividade dessas pessoas.
Espontaneidade e criatividade na visão moreniana é dar respostas novas à situações novas ou antigas. Poderia me destacar uma nova resposta que perceba que aplicou no seu amadurecimento?
Estou tentando quebrar um padrão de funcionamento que passa pela questão de fazer uma coisa por vez. A repetição é o querer fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas tenho dado resposta nova a essa situação. Eu já fui muito do passado e do futuro. Sabemos e compreendemos a questão moreniana do momento que é o aqui e agora. Ainda continuo tentando aprender e reaprender sobre o “estar presente”. Quando vou à praia é mais fácil olhar para o mar e não fazer nada. Quando volto já é mais difícil no dia a dia.
Em seu livro Psicodrama e Relações Étnico-Raciais,você trouxe uma descoberta: o Guerreiro Ramos e o Abdias do Nascimento foram pioneiros ao trazer o psicodrama para o Brasil. Qual sentimento bateu ao saber desse fato?
Primeiramente, a alegria. Queria contar para o mundo que lá em 1949, um homem negro baiano, Guerreiro Ramos, foi o primeiro a escrever um artigo sobre psicodrama e a dirigir uma sessão psicodramática. Essa descoberta foi fruto de uma pesquisa que começou em 1999, quando, em parceria com Paulo Amado no II Congresso Ibero-Americano de Psicodrama, que aconteceu no Brasil, escrevemos o texto Psicodrama e a Subjetividade Palmarina – Da Senzala à Palmares. Foi durante meu mestrado que encontrei o livro do Abdias Nascimento, no qual citava a participação de Guerreiro Ramos no psicodrama e, a partir daí, fui me aprofundando nas pesquisas. Nós buscamos referências de pessoas pretas e, como nossa história foi apagada, podemos agora comprovar esses fatos. Temos uma preciosidade para a população negra e para a sociedade em geral, colocando o Guerreiro Ramos no lugar devido. Assim como ele, na psicanálise tivemos também a Virgínia Leone Bicudo.
E sobre o livro Etnodrama que acaba de lançar, o que nos conta?
Ele é o resultado da história do grupo de estudos que fundei em 2016. A obra é uma coletânea escrita por 20 mulheres que tratam do tema psicodrama e questões raciais. Tem sido um multiplicador, fazendo surgir trabalhos acadêmicos e outros grupos focados nessa temática.
Etapa 4. Compartilhar
Como foi pensar em seu processo de envelhecimento nessa nossa conversa?
Delícia estar com você. Me senti acolhida, reconhecida e instigada. Trouxe coisas tão peculiares que passavam despercebidas e que agora me fizeram revisitar os papéis, meus antepassados, família e o meu grupo de estudos, pelo qual tenho muito carinho e sou grata pela parceria.
Etapa 5. Comentários
Ao entrevistá-la, estive diante de uma clássica do psicodrama. Alguém que, ao buscar reforçar o lugar de quem é por direito, como o de Guerreiro Ramos, também construiu o seu lugar. O nome de Maria Célia Malaquias no psicodrama já está registrado. Essa parte não será ocultada ou apagada, já está na história.
Notas
1. Psicodrama: abordagem terapêutica criada pelo psiquiatra romeno Jacob Levy Moreno.
2. Contrapapel: para o psicodrama, todos os papéis são complementares (Ex.: Aluno e Professor, Pai e Filho, etc).
3. Solilóquio: uma das técnicas verbais utilizadas para expressão do pensamento ou sentimento momentâneo.
4. Fenômeno télico: percepção compartilhada de forma idêntica.
5. Encontro Moreniano: olhar o mundo com os olhos do outro de forma a potencializar ambos.
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E-mail: mcmalaquias@uol.com.br
Fotos de arquivo pessoal de Maria Célia Malaquias