Sobre o amor, dizia Fernando Pessoa: Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?
Ou pelas palavras de Antoine de Saint-Exupéry: O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá mais se tem.
Parece mesmo uma fonte inesgotável, um reservatório de emoções e sentimentos consumido pelas mazelas do tempo, uma mente e um corpo arrasados pela evolução da doença. Este início não poderia ser outro, senão poético para introduzir o belo trabalho do fotógrafo argentino Alejandro Kirchuk, de 24 anos. Um exemplo que quando se ama, há entrega e liberdade para excercer o pleno direito de simplesmente amar e entregar-se, mantendo-se íntegro e fiel à esse amor.
O trabalho do jovem Kirchuck consistiu no registro durante três anos do cotidiano dos seus avós maternos, após descobrir que a avó travava uma batalha contra o Alzheimer. A série de fotos revela as mudanças no comportamento da avó, Mónica, e o amor do marido, Marcos, que após o diagnóstico da doença, em 2007, deixou tudo para acompanhá-la até a morte, no ano passado.
- Os protagonistas (desta série) são meus avós. Mas principalmente ele e seu amor por ela, disse Kirchuk à BBC Brasil. Para mim, a atitude dele (do avô) foi um descobrimento especial e que mostrei nas fotos.
Esse “descobrimento especial” é algo que talvez tenha surpreendido Marcos. Como terá sido ver as imagens que tanto falam e expressam no seu silêncio? Um toque por todas as fotos traria Mónica de volta, ao alcance de suas mãos? Difícil dizer que espécie de descoberta terá sido esta.
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A obra foi chamada de La noche que me quieras e ganhou o primeiro lugar do concurso World Press Photo 2011 na categoria “Vida cotidiana”. Segundo o fotógrafo, o título é uma referência ao verso que a avó cantava mesmo quando a doença já estava em estágio avançado, do tango El día que me quieras, famoso na voz de Carlos Gardel.
- Isso confirma que os dois viviam uma história de amor, afirmou Kirchuk.
Parece que Kirchuck, através da história dos avós, realizou seu próprio desejo de amor. Àquele sem limites, de pura entrega, não triste e solitário, mas compartilhado até os últimos momentos se é que eles, de fato, existiram. Porque quando se ama, se transcende, como duas linhas que se encontram pelo tempo.
Mónica morreu aos 87 anos e Marcos, que é médico aposentado, tem 89 anos. Ambos ficaram casados durante 65 anos.
Com um registro detalhado Kirchuk contou que tirou centenas de fotos do casal. A seleção que enviou ao concurso mostra desde os primeiros momentos da avó com os sinais da doença degenerativa até a etapa terminal.
Este caminho percorrido pelos meandros da dor do que virá e como virá caracteriza um processo múltiplas elaborações onde cada foto registrada representa um pequeno detalhe, uma esperança, uma lembrança ou talvez, um arrependimento. Quem sabe…
Quando ele iniciou o trabalho, Mónica sofria de Alzheimer havia dois anos mas levava uma vida quase normal. Porém, recordou o fotógrafo, com falhas na memória.
- Às vezes, ela me reconhecia e às vezes, não. Com o tempo, já não me reconhecia mais. Mas à sua maneira reconhecia meu avô que a acompanhou em cada detalhe do cotidiano.
O fotógrafo diz que a imagem “mais forte” de sua avó é um retrato tirado bastante de perto, quando ela já estava abatida, no ano passado. A foto da avó com olhos que parecem marejados foi tirada dois ou três meses antes de sua morte.
- Era como ela olhava o mundo. Um olhar triste que marcou seu último ano de vida, disse.
E a cada um, o mundo passa uma imagem, onde a cor é dada pelo reflexo dos próprios olhos de quem vê.
Um mergulho na aterradora perspectiva da própria finitude. Será essa a matéria prima de tanta tristeza?
O desfecho da obra é uma imagem de Marcos sozinho olhando o jardim da casa onde morou com Mónica.
O fotógrafo registrou e acompanhou Marcos em todos os momentos, inclusive levando flores para a avó no cemitério onde Mónica foi sepultada.
-Esta série é uma homenagem a ele. Ele ficou com ela até o último minuto.
Quando perguntado sobre o que o avô achou do projeto, Kirchuk respondeu:
- No início, ele achou estranho, mas depois soube entender a importância do registro deste amor. E de se poder mostrar ao mundo que este trabalho pode estimular que idosos sejam apoiados em casa e que não sejam enviados para um asilo.
Na verdade, para Marcos com todo seu amor, não importa o local, paredes ou eventuais barreiras, ou até a finitude da carne de sua companheira, vale o sentimento que permanece. Marcos ficou, continuou de braços abertos às lembranças de tudo que foi vivido e que se há de viver.
Um início poético merece o mesmo final, agora nas palavras silenciosas e, ao mesmo tempo, explosivas de Carlos Drummond de Andrade: …Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.”
Referências
SITE UOL (2012). Fotos mostram o amor entre idosos lutando contra o Alzheimer. Disponível Aqui. Acesso em 15/02/2012.