A responsabilidade pela possibilidade de realização ou não da Telemedicina é uma prática conjunta, entre médico e paciente, o que valia já desde antes da tecnologia ser um recurso utilizado em tão larga escala no exercício das questões em saúde.
Em coautoria com o advogado Dr. Diogo Gonzales Julio (*)
A pandemia da Covid-19 trouxe situações que levaram a uma necessidade de readaptação em várias esferas da vida humana, e com relação à saúde não foi diferente. Por inexistir remédio com eficácia comprovada em seu tratamento, diante da ausência de uma vacina possível de ser usada de imediato no combate à doença e ainda por ter uma disseminação muito rápida, sem que se saiba de pronto as consequências que um infectado terá, as recomendações da Organização Mundial da Saúde – OMS, diante da pandemia da Covid-19 foram, dentre outras, o isolamento social, no qual as pessoas foram orientadas a evitar ao máximo as saídas para além de suas casas e o distanciamento social, no qual, em sendo inevitáveis as saídas, recomendou-se que as pessoas devem manter entre si uma distância segura, que evitem aglomerações e, por consequência, a propagação do vírus Sars Cov 2.
O cenário de incertezas e as recomendações acabaram por impactar na vida de todas as pessoas.
Com relação à saúde os impactos foram inevitáveis, quer seja para aqueles que, antes da pandemia, já eram acometidos por alguma doença e já precisavam de acompanhamento médico, quer seja para os que tinham alguma cirurgia ou procedimento agendados, ou ainda para os que precisam de atendimento médico por motivos não relacionados ao vírus Sars Cov 2, haja vista que os demais problemas em saúde não deixaram de acontecer.
A grande maioria de pessoas nestas situações se viu impedida muitas vezes de comparecer às consultas, aos procedimentos e aos atendimentos, por medo, por ausência de atendimentos presenciais ou por falta de compreensão sobre como proceder.
Assim, com relação à saúde, tornou-se necessário repensar como as demandas seriam então atendidas, entrando em cena o uso das tecnologias disponíveis como medida alternativa às situações que demandassem a atuação médica presencial diante do enfrentamento da pandemia.
No uso das tecnologias disponíveis, boa parte dos atendimentos passou a ocorrer de maneira remota, ou seja, por profissionais de saúde que, mediante o uso de recursos digitais e tecnológicos a que têm acesso, passaram a atender à distância os seus pacientes.
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Esta realidade fez surgir então, em grande escala de divulgação, a utilização da terminologia Telemedicina. A Telemedicina já era discutida pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, desde o ano de 2002, oportunidade na qual o órgão, por intermédio da Resolução 1.643/2002, reconheceu a prestação destes serviços médicos(1).
No ano de 2018 o órgão publicou a Resolução nº 2.227, que definia a Telemedicina como atendimento em saúde realizadoàdistância possível após consulta presencial já realizada com o mesmo profissional, desde que ambos – médico e paciente – estivessem de acordo. Entretanto, após inúmeras reclamações, esta norma foi revogada, restabelecendo-se a Resolução CFM nº 1.643/2002(2), que é a normativa vigente a regulamentar a prática em questão.
Em complemento à Resolução do ano de 2002, na data de 15 abril de 2020, foi publicada a Lei Federal nº 13.989(3), que regulamenta o uso da Telemedicina enquanto durar a pandemia, destacando que o médico deverá informar ao paciente todas as limitações inerentes ao uso da técnica, tendo em vista a impossibilidade de realização de exames físicos durante as consultas realizadas de maneira remota.
Porém, ainda que seja a Telemedicina uma prática real e que tenha se tornado bastante corriqueira no contexto que nasceu em decorrência da pandemia da Covid-19, é preciso compreender um pouco mais a seu respeito e realizar algumas reflexões.
A prática de atendimentos em saúde, realizados à distância, com o uso de recursos tecnológicos, mesmo que regulamentada desde o ano de 2002, ainda é desconhecida ou causa estranheza à boa parcela da população.
Atendimentos por Telemedicina
É importante compreender que a Telemedicina é um conceito amplo, tido como gênero, subdividido em 4 espécies: Teleorientação, Telemonitoramento, Teleconsulta e Teleinterconsulta, às quais fazemos menção apenas a título de esclarecimento, sem que nos adentremos às suas especificidades neste momento.
Os atendimentos por Telemedicina devem ser feitos diretamente pelo médico ao paciente, com o uso de recursos tecnológicos de informação e de comunicação que garantam a integridade, a segurança e o sigilo das informações, e a eles são válidos e aplicados todos os preceitos éticos relacionados ao atendimento presencial.
Por esta razão, os atendimentos médicos realizados com o uso de recursos tecnológicos que possibilitem uma distância física entre o profissional e o paciente, devem ser registrados em prontuário e conter: I – dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido em cada contato com o paciente; II – data, hora, tecnologia da informação e comunicação utilizada para o atendimento; e III – identificação do médico com seu número de inscrição no Conselho Regional Profissional e sua unidade da federação.
Nestes atendimentos os médicos podem emitir atestados (que deverão conter, no mínimo: I – identificação do médico, incluindo nome e CRM; II – identificação e dados do paciente; III – registro de data e hora; e IV – duração do atestado) ou receitas médicas (que deverão observar os requisitos previstos em atos da Agência de Vigilância Sanitária e conter: I – identificação do médico, incluindo nome e CRM; II – associação ou anexo de dados em formato eletrônico pelo médico; e III – ser admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento).
Ambos os documentos – atestados e receitas- serão em formato eletrônico e validados por meio de certificados e chaves emitidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, possibilitando a percepção de qualquer modificação posterior, caso ocorra.
Todavia, independentemente de qual espécie de Telemedicina seja realizada, é importante saber que o profissional que pratica qualquer delas deve se ater à algumas condutas.
Condutas
Ao médico cabe esclarecer o paciente sobre a real necessidade da forma de atendimento utilizado, os seus limites – já que a distância física entre o médico e o doente impossibilita a realização do toque, do exame físico -, a plataforma eletrônica que será utilizada e seu nível de segurança, alertar o paciente a respeito do registro em prontuário do atendimento que respeitará o sigilo profissional e ainda dar ciência ao paciente de que ele precisará comparecer fisicamente para uma consulta presencial em dia, horário e local que o médico lhe indicar caso este perceba que o atendimento físico é indispensável.
Igualmente, o profissional deve informar ao paciente, antes do início do atendimento, os valores que serão cobrados – caso seja um atendimento particular -, a forma de pagamento, o tempo de duração da consulta e quais serviços estão incluídos no valor pago.
Todas as informações devem ser prestadas de maneira objetiva e em linguagem simples, já que é fundamental que o paciente compreenda de maneira clara sobre tudo que lhe é passado e, em especial, que manifeste sua vontade, assinando um termo de consentimento quanto a se submeter ao atendimento remoto.
Cabe ao médico assistente a responsabilidade pelos atendimentos remotos, sendo ele o profissional que deve analisar a possibilidade ou não da realização da Telemedicina, ponderando se as informações colhidas de forma remota são suficientes para um atendimento à distância ou se é o caso de ser realizado um exame clínico presencial naquele momento.
Todavia, ainda que seja do médico assistente a responsabilidade por considerar ser suficiente ou não a realização da prática da Telemedicina, cabe ao paciente, igualmente, sempre fazer esta valoração.
É o paciente quem sente o desconforto, a dor, o incômodo. É esta pessoa que, por si, apenas e unicamente, tem a possibilidade de dizer ao médico onde dói e a intensidade do que sente.
Por esta razão, a responsabilidade pela possibilidade de realização ou não da Telemedicina é uma prática conjunta, entre médico e paciente, o que valia já desde antes da tecnologia ser um recurso utilizado em tão larga escala no exercício das questões em saúde.
Na prática das questões em saúde, o médico e o paciente têm atribuições em conjunto, haja vista que na mesma proporção em que cabe ao médico um diagnóstico sobre o estado de saúde do paciente que diante dele se apresenta, ao fazer uso de todos os recursos de que dispõe e esclarecer o paciente sobre sua situação em saúde e o que existe como alternativa a tentar minimizar o quadro, cabe igualmente ao paciente, previamente esclarecido sobre a sua situação e as alternativas cabíveis, executar com maestria as orientações que lhe são passadas pelo profissional.
Embora a autorização normativa para a prática da Telemedicina tenha um caráter de excepcionalidade, já que tem previsão legal de validade até enquanto durar a pandemia, e ainda que acreditemos que essa é uma rotina que veio para ficar, já que o uso da tecnologia é medida cada vez mais comum e com mais avanços, é de grande importância compreender que é o paciente quem deve e precisa escolher o que é melhor para si.
É importante que se entenda que independentemente da escolha, seja pela prática da Telemedicina ou pelo atendimento médico presencial, a responsabilidade pelo tratamento continuará sendo de ambos: profissional e paciente.
Readaptação
As situações de readaptação trazidas pela pandemia da Covid-19 e as inovações que o cenário atual trouxe à humanidade devem ser sempre conhecidas, a fim de que haja sempre uma possibilidade maior de escolha e de efetivação da dignidade humana daquele que se depara com elas e que precisa escolher, já que para melhor agir é fundamental saber quais são as alternativas disponíveis e as possíveis consequências do que é eleito.
Sendo a saúde um direito fundamental, compreender sobre como ampará-lo é ainda mais primordial em um cenário movido por muito mais perguntas do que respostas.
Vale lembrar que as situações de emergência em saúde precisam de atendimento presencial muitas vezes, como nos casos relacionados às quedas que levam às fraturas ou às perdas de consciência, às situações de infartos, nos casos de acidentes vasculares cerebrais (AVC´s), dentre outras, já que necessitam de um atendimento presencial de máxima urgência, seguidos de internações hospitalares e procedimentos indispensáveis à sobrevivência dos que vivenciam estas situações, devendo aqueles que passarem por elas buscar por atendimento presencial, independentemente da situação de pandemia.
O uso da Telemedicina, portanto, dependerá da análise do caso pelo médico e, uma vez constatada a sua viabilidade, igualmente de ser este um desejo do paciente que, ao optar por ela, declina de um contato físico e real com o médico.
Seja qual for a escolha, ela deverá ser sempre respeitada, quer pela preservação da história da relação médico-paciente, num caráter acolhedor que o contexto envolve, quer pela consolidação à dignidade humana daquele que escolhe ou ainda porque é fundamental compreender que a escolha precisa ser daquele que sofre, que sente dor e que precisa ser respeitado, em consideração à primazia máxima da humanidade, conceito que precisa nortear toda e qualquer relação entre os seres que, em igualdade de condição, habitam o mesmo planeta.
Notas
(1) https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Resolucao-CFM-1643-2002-08-07.pdf.
(2) RESOLUÇÃO Nº 1.643, DE 7 DE AGOSTO DE 2002. Define e disciplina a prestação de serviços através da Telemedicina. Art. 1º – Definir a Telemedicina como o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde. Art. 2º – Os serviços prestados através da Telemedicina deverão ter a infraestrutura tecnológica apropriada, pertinentes e obedecer às normas técnicas do CFM pertinentes à Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino SuperiorSHN Quadra 01, Bloco F, Entrada A, Conjunto A, 9º andar Edifício Vision Work & Live, Asa Norte – Brasília/DFCEP: 70.701-060 – Telefone: (61) 3322-3252E-mail: [email protected]: www.abmes.org.brguarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional. Art. 3º- Em caso de emergência, ou quando solicitado pelo médico responsável, o médico que emitir o laudo a distância poderá prestar o devido suporte diagnóstico e terapêutico. Art 4º – A responsabilidade profissional do atendimento cabe ao médico assistente do paciente. Os demais envolvidos responderão solidariamente na proporção em que contribuírem por eventual dano ao mesmo. Art 5º – As pessoas jurídicas que prestarem serviços de Telemedicina deverão inscrever-se no Cadastro de Pessoa Jurídica do Conselho Regional de Medicina do estado onde estão situadas, com a respectiva responsabilidade técnica de um médico regularmente inscrito no Conselho e a apresentação da relação dos médicos que componentes de seus quadros funcionais. Parágrafo único – No caso de o prestador for pessoa física, o mesmo deverá ser médico e devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina. Art. 6º – O Conselho Regional de Medicina deverá estabelecer constante vigilância e avaliação das técnicas de Telemedicina no que concerne à qualidade da atenção, relação médico-paciente e preservação do sigilo profissional. Art. 7º – Esta resolução entra em vigor a partir da data de sua publicação.
(3) LEI Nº 13.989, DE 15 DE ABRIL DE 2020. Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Art. 1º Esta Lei autoriza o uso da telemedicina enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Art. 2º Durante a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), fica autorizado, em caráter emergencial, o uso da telemedicina. Parágrafo único. (VETADO). Art. 3º Entende-se por telemedicina, entre outros, o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde. Art. 4º O médico deverá informar ao paciente todas as limitações inerentes ao uso da telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta. Art. 5ºA prestação de serviço de telemedicina seguirá os padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial, inclusive em relação à contraprestação financeira pelo serviço prestado, não cabendo ao poder público custear ou pagar por tais atividades quando não for exclusivamente serviço prestado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Art. 6º (VETADO). Art. 7ºEsta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 15 de abril de 2020; 199º da Independência e 132º da República. JAIR MESSIAS BOLSONARO. Luiz Henrique Mandetta. Walter Souza Braga Netto. Jorge Antonio de Oliveira Francisco.
(*) Texto escrito em coautoria com o Dr. Diogo Gonzales Julio – Advogado, Especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Pós-graduado em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito do Cooperativismo pela ESA e SESCOOP de São Paulo, Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB São Paulo, 3ª Subseção de Campinas/SP, Membro da Comissão de Direito do Cooperativismo da OAB São Paulo (@diogogjulio).
Foto destaque de bongkarn thanyakij/Pexels