Julgo que através da poesia podemos compreender a complexidade de alguns temas existenciais. A poesia nos desperta para o movimento em torno das possibilidades do envelhecer.
Rosana Kelli A S Picchi (*)
Gosto muito do poema “La Vie en Close”, de Paulo Leminski (Editora Brasiliense – edição 1994). Vejo nele a expressão de uma realidade vivida cada vez mais intensamente em nossos dias.
Antigamente, se morria
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria,
e todo mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que têm que morrer,
tinha coisas que têm que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
deixar tudo para os filhos
e virar fotografia?
Ninguém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Mas ninguém tem culpa.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Não tem o que reclamar.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a crônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.
No entanto, para além da poesia, os dilemas, em função das novas possibilidades de envelhecer, se colocam cotidianamente.
Ter possibilidades de escolhas, contar com a pluralidade de alternativas ao invés de ter que cumprir uma equação única estabelecida mais socialmente do que individualmente me parece um avanço, uma conquista. Mas me questiono o quanto essa nova visão do velho e do envelhecer não responde a uma demanda social performática, realizadora.
“Ser velho está em alta. Pelo menos, há uma produção de filmes, livros, documentários e artigos de jornal sobre idosos. Em nosso dia-a-dia, não percebemos muito essa atenção extra, pelo contrário. Há menos dinheiro e menos assistência que alguns anos atrás”, é o que escreve Hendrik Groen no livro “Tentativas de fazer algo da vida – Hendrik Groen” (p. 351).
Venho me despertando para o movimento atual em torno das possibilidades do envelhecer, atenta a outras escutas. Uma delas, de Luiz Felipe Pondé, na sua crônica de 03/07/2017 no jornal Folha de S.Paulo – O Pai, diz:
“A longevidade estendida é um dos casos mais claros da famosa ambivalência descrita por Zygmunt Bauman (1925-2017). Um bem evidente por um lado, um drama gigantesco por outro, sem solução, como toda ambivalência que se preze.”
Essa ambivalência me parece bastante presente e algo a ser aprofundado.
(*) Rosana Kelli A S Picchi – Reflexão realizada durante o curso de curta duração intitulado Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, ofertado pelo COGEAE-PUCSP, no primeiro semestre de 2017 E-mail: rokelli@terra.com.br