Resenha do livro “O que os cegos estão sonhando?”, de Noemi Jaffe, que aborda o diário escrito por sua mãe, Lili Jaffe, após ter sido libertada do campo de concentração de Auschwitz, em 1945. Percebe-se a preocupação com o relacionamento intergeracional na análise e compreensão de comportamentos, preconceitos e valores – como solidariedade, compaixão e empatia – por meio de impressões e resgates da memória e do testemunho.
Diana Blay (*)
Em 2012, convidei a escritora, professora, pesquisadora da USP e coordenadora da Escrevedeira[1], Noemi Jaffe, para apresentar o seu recém-lançado livro O Que Os Cegos Estão Sonhando? Na obra em questão, Noemi Jaffe aborda o diário escrito por sua mãe, Lili Jaffe, após ter sido libertada do campo de concentração de Auschwitz, em 1945. Tal registro, em sua versão original, encontra-se hoje preservado nos arquivos do Yad Vashem[2], memorial oficial de Israel para as vítimas do Holocausto, com sede em Jerusalém.
Além de contribuir para o acervo desse importante espaço, Lili Jaffe ofereceu também seu testemunho oral à Shoah Foundation[3], fundação criada pelo cineasta Steven Spielberg que se dedica ao registro de relatos de sobreviventes do Holocausto e de outros genocídios.
Lili Jaffe tinha 17 anos e morava na antiga Iugoslávia, atual Sérvia, quando foi capturada pelos nazistas e levada, juntamente com seus pais e um irmão, para o campo de concentração de Auschwitz. Ali, ela perdeu seus genitores, mas, assim como seu irmão, conseguiu sobreviver, sendo resgatada pela Cruz Vermelha e levada para a Suécia, em 1945.
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Ao apresentar o livro onde remonta a trajetória de sua mãe, Noemi Jaffe deixou-me bastante envolvida, sobretudo, pelo caminho adotado em sua fala, no qual buscou expor, paralelamente ao relato histórico de sua mãe, a sua própria visão, bem como a de sua filha, em relação àqueles fatos. Nesse sentido, é possível perceber a preocupação da autora com a questão da intergeração, ou seja, do relacionamento de pessoas de diferentes faixas etárias na análise e compreensão de comportamentos, preconceitos e valores – como solidariedade, compaixão e empatia – por meio de impressões e resgates da memória e do testemunho.
Até essa ocasião, eu, que havia tido poucas oportunidades de conversar diretamente com um autor, pude compreender como uma escritora criativa é capaz de desenvolver uma narrativa emblemática mesmo partindo de um tema tão espinhoso como o Holocausto.
Além disso, chamou-me a atenção alguns elementos como a autenticidade da autora, seus questionamentos e revelações, assim como, a importância das memórias reveladas pela sua mãe não só para público em geral, mas também, para as filhas e netos, em específico.
Ao referir-se à mãe sobrevivente, a autora nos leva a abordar o próprio conceito de sobrevivência e também a acreditar que o medo pode ser superado pela capacidade de resiliência. Afinal, sobreviver a um campo de concentração, como o de Auschwitz[4], requer astúcia, criatividade, repulsa, ódio, raiva e todos os demais adjetivos cabíveis para a tortura, a fome e a morte. Não é pouca coisa!
Em relação à importância do cuidado e os cuidadores, na obra de Noemi, o olhar principal recai sobre o passado de sua mãe, porém, ao mesmo tempo, nos faz pensar sobre a necessidade cotidiana de cuidar de si, da própria sobrevivência, mas também dos demais que nos cercam.
As lembranças de refugiada na II Guerra Mundial diante das terríveis condições de vida, da falta de comida e de condições básicas de saúde, mostram que o fundamento da sua batalha para manter-se viva era não só o cuidado em relação a si mesma, mas também quanto àqueles que estavam ao seu redor, como suas primas. Mais tarde, demonstra essa mesma atenção para com o marido, as filhas e os netos.
Dessa maneira, podemos perceber as várias faces do cuidado e da atenção em relação ao outro, bem como, da importância em preocupar-se e estar atento às necessidades das pessoas com que convivemos.
Após ser libertada de Auschwitz[5], Lili Jaffe foi acolhida por cuidadores em casas de famílias, em alojamentos e hospitais. Nessa fase, inverteu-se o seu modus operandi, pois teve início um período de cuidados com a saúde e com a alimentação e, também, de lazer, de estabelecer novos contatos, amigos e namorados.
Ao mesmo tempo, retomou laços afetivos, retornou para a sua terra natal, reencontrou familiares e recuperou sua autonomia e independência. Algum tempo depois, casou-se e veio para o Brasil, acompanhada por seu marido, trabalhou como costureira com a sogra e teve três filhas. Assim, construiu um lar.
Com o tempo, surgem novos arranjos, casamentos, viagens, reencontros e desencontros. A memória guarda uma lembrança afetiva, às vezes, marcada pela dor ou pela alegria, uma representação do passado, daquilo do que já não é mais.
A partir dessa perspectiva, as lembranças contidas no diário de Lili Jaffe são indubitavelmente um ponto de partida para reflexões que envolvem testemunhos, relíquias, emoções, tristezas, angústias, frustrações, tanto na esfera pública quanto na privada.
O livro segue seu percurso considerando o significado e o ressignificado da complexidade da condição humana, repleta de preconceitos, segregações, descobertas, paixões e lutas pela sobrevivência.
Em 2009, Noemi e sua filha Leda viajaram para Auschwitz[6]. Ao relatar as impressões de tal experiência, a neta de Lili Jaffe revelou: “viemos depois; mas somos todos cúmplices destas lembranças”.
Lili Jaffe faleceu dia 9 de fevereiro de 2020.
Notas
[1]Comunidade Escrevedeira. Cursos e atividades de literatura, escrita e outras artes. Coordenação: Noemi Jaffe. E-mail: escrevedeiracontato@gmail.com
[2] “Autoridade de Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto” – memorial oficial de Israel para lembrar as vítimas judaicas do Holocausto, estabelecido em 1953.
[3] USC Shoah Foundation – O Instituto de História e Educação Visual, ex-Sobreviventes da Fundação de História Visual Shoah, fundada por Steven Spilberg em 1984 (EUA) é uma organização sem fins lucrativos, dedicada a fazer entrevistas audiovisuais com sobreviventes e testemunhas do Holocausto e outros genocídios, uma voz atraente para educação e ação.
[4] Construído depois da invasão da Polônia pelos alemães, o complexo de campos de concentração de Auschwitz foi o maior dos estabelecidos durante o regime nazista. Localizado a cerca de 70 quilômetros de Cracóvia, foi o principal centro de extermínio da história, onde mais um milhão de pessoas foram assassinadas.
[5] Em 1945 o exército russo avançava sobre a Polônia, e os nazistas decidem evacuar Auschwitz com duras marchas que para muitos prisioneiros representou a morte. Em 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas libertaram os prisioneiros que restavam no campo, embora, infelizmente, a maioria deles estivesse doente e com pouco tempo de vida. Poucos sobreviveram.
[6] Atualmente é possível visitar dois campos: Auschwitz I, o campo de concentração original, e Auschwitz II (Birkenau), construído posteriormente como campo de extermínio.
Para ler
JAFFE, Noemi. O que os cegos estão sonhando?: com o Diário de Lili Jaffe (1944-1945) e texto final de Leda Cartum. São Paulo: Editora 34, 2012.
(*) Diana Blay – socióloga e especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
Foto destaque: Entrada do Campo de Concentração onde está escrito: “O trabalho liberta”.
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