Trago o exemplo bastante resumido da situação de um casal de velhos hospitalizados, um em cada quarto, com acometimentos distintos, uma filha única e poucos familiares como rede social. Na discussão de equipe perguntei sobre a história de vida do casal, o que cada um gostaria diante dessa situação? Alguém havia perguntado para eles sobre essa aproximação? Qual era o lugar de cada velho?
Por Camila Marques da Paz Gomes (*)
Ao longo da minha trajetória acadêmica e profissional na área da Psicologia Hospitalar em Cuidados Paliativos, tenho como essência o cuidado com o outro a partir da validação de sua história de vida, gostos e valores. Compreender o outro a partir das suas escolhas e do sentido e significado que este dá à própria vida, é a base do plano terapêutico multiprofissional no hospital em que hoje trabalho. Um hospital de Cuidados Paliativos, Cuidados Prolongados e Reabilitação Paliativa, cujo público em sua maioria é de idosos com múltiplas comorbidades, em situação de fragilidade e dependência, sendo as principais patologias de origem neurológica, quadros de demência, doenças oncológicas e crônico degenerativas.
Apesar de toda a condição de fragilidade, é impressionante a capacidade humana de resignificar e dar significado as diversas facetas ao longo da vida. Para muitos, vivenciar um momento de adoecimento e hospitalização, faz com que o indivíduo entre em contato com questões profundas relacionadas aos aspectos emocionais e psíquicos. Para o público atendido por mim no hospital, o envelhecimento atrelado a condição de hospitalização traz um inevitável contato e reflexão sobre a própria história, a consciência do próprio ser, as escolhas, o corpo e tempo finito.
Na adolescência ansiamos por nos tornarmos adultos, na vida adulta, somos atropelados pelas responsabilidades e escolhas, engolidos pelas exigências do mundo contemporâneo e de repente, não mais que de repente, somos velhos. Em qual momento nos damos conta disso? Ser velho, sentir-se velho, ser rotulado velho. E dada a minha experiência no contato com o outro na prática profissional, percebo o quão singular pode ser esse momento. Para alguns a marca do aniversário de 60 anos, a aposentadoria, os cabelos brancos, o tornar-se avô, a imposição da sociedade, as doenças, limitações, o desfrute da maturidade, a liberdade.
Lidar no dia a dia de trabalho com as demandas do envelhecimento é se deparar com questões existenciais, sociais, biológicas, emocionais e culturais. Tudo em um constante movimento, quanto mais se aproxima de uma discussão, mais o olhar se amplia, interrogações e curiosidades aparecem. Foi a partir dessa inquietação e encantamento pelo envelhecer que iniciei o curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Foram diversas as temáticas abordadas ao longo do curso, mas de início, o impacto da própria desconstrução da palavra “velho”. E a partir daí, a proposta de resignificar desde aquilo que achávamos ser o mais básico, até as questões mais complexas e desafiadoras vivenciados pelos velhos e por aqueles que trabalham com suas diversas demandas.
Discutimos, lemos, assistimos, refletimos e transitamos pelos mais diversos assuntos. Mas em todos eles algo centralizava como ponto em comum, sendo este, a importância do sentido e significado de vida para cada um. Estava ali, claro e objetivo, a necessidade de olharmos para o outro como um ser singular, cujo processo de envelhecimento, apesar das questões sociais e culturais, faz de nós únicos nesse processo natural de vida. E o envelhecer ter sido vivido por cada vez mais gente.
Nossas escolhas refletem no agora e no amanhã, envelhecemos desde o nascimento. Entramos em um rio que já está correndo, acompanhamos a correnteza, mas aprendemos ao longo do caminho a construir barcos, a parar na margem, a contemplar o movimento, a querer nadar contra e conseguir. Vida e morte, envelhecer, processos naturais e que ainda causam tanto espanto, medo e curiosidade em nós.
O lugar do velho e suas escolhas, foi uma das reflexões que tive oportunidade de discutir no curso e vivenciar na prática profissional na mesma semana.
Acompanho um casal de velhos que está hospitalizado. A mulher 72 anos, do lar, começou a apresentar sintomas de Alzheimer há 3 anos, teve um Acidente Vascular Cerebral Isquêmico (AVCi), desde então, hospitalizada para Cuidados Prolongados há 1 ano. Como sequela, a demência mista, causada pelo AVC e o Alzheimer. Não deambula, apresenta falhas de memória, porém em alguns momentos lúcida, relembra sobre a família, mantém gostos como pintar os cabelos, fazer a unha, maquiagem. Gosta de trabalhos artesanais e participa ativamente dos grupos de terapia ocupacional.
O homem, 78 anos, contador aposentado, era o principal cuidador da esposa e durante a hospitalização da mesma, sofreu um Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico (AVCh), ficando internado no mesmo hospital. Após 3 meses, saiu da semi-intensiva e foi para o quarto, este ao lado do quarto da esposa. Teve sequelas na fala (não conseguia verbalizar), quadro de oscilação de consciência (confuso, em alguns momentos lúcido – demência vascular), totalmente dependente para atividades de vida diária. Gostava de escutar o jornal, música clássica e passeios no jardim.
Trago o exemplo bastante resumido desta situação, um casal de velhos hospitalizados, um em cada quarto, com acometimentos distintos, uma filha única e poucos familiares como rede social. Não demorou muito para gerar comoção entre os profissionais, afinal, que lindinho um casal de velhos! Vamos juntá-los! Afinal, casamento é “na saúde e na doença”, quem sabe um quarto juntos, momentos de convivência, flores, música, balões de coração. Que romântico! Foi quando eu, naquela discussão de equipe, perguntei sobre a história de vida do casal, o que cada um gostaria diante dessa situação? Alguém havia perguntado para eles sobre essa aproximação?
Caras de espanto! Em uma equipe acostumada a cuidar de velhos, uma equipe especializada, humanizada e competente. Tratando dois velhos como símbolo do amor. Até poderia ser, mas qual a realidade deles? Daqueles velhos.
A visão romantizada do casamento na velhice, onde tudo parece sereno, tudo entra em equilíbrio, onde ambos já se acostumaram com as velhas manias e chatices. Estamos velhos, confinados a se conformar e terminar a vida com alguém.
Dois velhinhos bonitinhos, caminhando juntos. Que comoção causa nos corações jovens cheios de esperanças e fantasias sobre o amor romântico que transcende o tempo. Nos esquecemos da realidade e do quão difícil pode ser a construção e manutenção dos vínculos afetivos e que estes requerem atenção, empenho, disponibilidade, respeito e troca.
Foi quando em um atendimento com a mulher, no jardim do hospital pela manhã (momento em que ficava mais comunicativa e lúcida), perguntei sobre sua vida de casada e relação com o esposo. A mesma, de forma até impressionante, disparou a falar. Contou sobre todas as dificuldades, desde os gostos divergentes, a postura autoritária do esposo. Ela sabia de seu adoecimento, que ele estava ali, na “casa” ao lado, mas que não queria aproximações, sentia-se liberta, tinha seu espaço, suas vontades eram atendidas e naquela altura da vida, não precisava mais de nada, não sabia como se portar como esposa. Resolveu que estava separada, até poderia vê-lo às vezes, mas que aquilo não lhe fazia bem, viveu muito tempo de aparências e que agora, ela queria diferente, esperava que a filha compreendesse, mas que logo ambos estariam mortos. Estava velha, mas ainda queria desfrutar da vida com mais leveza, sem a cobrança e imposições sobre seu papel de mulher, estava velha, mas só conseguiria viver se pudesse desfrutar da liberdade.
Um atendimento riquíssimo, a mulher trouxe sobre seus gostos, medos, sua percepção de envelhecimento, suas possibilidades de vida e de escolhas. Estava ali, a resposta para aquela vida, cheia de sentido e significado, com suas limitações, mas com a verdade que lhe saltava à língua e os olhos. Era o que tinha sentido para ela, e nós, equipe, estávamos naquele momento em sua vida para validar. Com isso, todo o desdobramento de intervenção multiprofissional foi realizada, confesso que recebi carinhas tristes pela quebra do romantismo idealizado na velhice, mas também, sorrisos de surpresa pelo grande aprendizado.
Em resumo, olhar para o envelhecimento e suas questões comuns à sociedade e à cultura são importantíssimos para compreender as escolhas dos indivíduos, suas singularidades. O quanto de estigma uma mulher velha, adoecida, hospitalizada, ainda tem que carregar em uma sociedade de patriarcado, que cobra sua postura de mulher, submissa até a hora da morte. O quanto podemos nos empoderar em qualquer momento da vida, sobre nossas escolhas, quebrar paradigmas em busca de uma vida de significado.
Olhar para a velhice, olhar para o outro é como olhar a si mesmo no espelho. Permitir-se. Dos desafios comuns às questões mais peculiares. Notamos na vida o quanto tudo é descoberta. Até para descontruir um simples conceito e significado da palavra “velho”, foi necessário permitir-se esse novo olhar. E que possamos estar disponíveis e atentos às questões do envelhecer, para cuidar melhor de nós e dos outros.
Ainda bem que envelheço a cada dia!
(*) Camila Marques da Paz Gomes é graduada em Psicologia pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Oncologia e Hematologia; Psicologia Hospitalar, ambos pela Casa de Saúde Santa Marcelina. Atualmente trabalha na área de Cuidados Paliativos no Hospital Premier. Texto apresentado no curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no segundo semestre de 2017 .E-mails: [email protected] e [email protected]