Vereador, deputado estadual e deputado federal pelo PT e agora pelo PSOL (reeleito com 241 mil votos), Chico Alencar é autor de diversos livros e um dos mais respeitados parlamentares brasileiros.
Guilherme Salgado Rocha / Fotos: arquivo pessoal
Faz analogia entre as lutas cotidianas e uma frase de Rubem Alves (“plantar árvores sob cuja sombra não descansaremos”), brinca com a própria fase de vida (“transitei do ‘materialismo dialético’ ao ‘espiritualismo diabético”’), analisa, mesmo brevemente, o governo Dilma, e lamenta a ausência de compromisso da maioria dos deputados com as questões que dizem respeito ao idoso, “porque um grande número já não vota”. Mas acrescenta, com otimismo: “Os aposentados, que nada têm de inativos, dão seguidos exemplos de mobilização e luta”.
Portal – Por favor, sempre começamos pelos dados pessoais.
Chico Alencar – Pois não. Meu nome é Francisco Rodrigues de Alencar Filho, pai piauiense com o mesmo nome, sem o Filho; mãe paulista, Jacintha Garcia Duarte de Alencar. Nasci no Rio de Janeiro no dia 19 de outubro de 1949. Sou pai de Emanuel, Ana, Lia (mãe do Tom, meu primeiro neto) e Nina. Os três primeiros são filhos da Ângela, e a Nina é filha da Cláudia. Estou descasado, “companheirando” com a Juliana, de Goiânia.
Portal – Onde foram seus estudos?
– Aprendi a ler, escrever, contar e viver no Jardim Escola Elza Campos, no Marista São José, no Colégio Pedro II, no Colégio de Aplicação da UERJ, no Curso Platão de Vestibulares, na Universidade Federal Fluminense (onde fiz História) e na Fundação Getulio Vargas (mestrado em Educação). Depois, comecei a me “socializar” na Juventude Estudantil Católica (JEC), em 1966. Logo fui preso, numa passeata contra a ditadura. Engajei-me na JEC a partir da participação no grupo de jovens da Paróquia do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, na Aldeia Campista, bairro entre a Tijuca e Vila Isabel. Nosso primeiro assistente foi o saudoso padre (depois bispo de Piracicaba), Eduardo Koaik. Líamos muito Michel Quoist: “Diário de Dani”, “Construir o Homem e o Mundo”… Depois Emanuel Mounnier, revista Paz e Terra.
Portal – A entrada na política foi nesse tempo?
– A militância em partido foi a tentativa no MDB autêntico (logo frustrada), no PMDB (mais formal que efetiva), para valer no PT e depois no PSOL.
Portal – Qual a cronologia das eleições em que foi candidato?
– Disputei a primeira eleição em 1988, a vereador do Rio, pelo PT. Venci, depois fui reeleito em 1992. Em 1996, disputei a Prefeitura, e por 1,5% de votos não fomos ao segundo turno. Em 98, fui eleito deputado estadual pelo PT, e em 2002 fui eleito deputado federal – em ambas o mais votado do Partido. Em 2006, reeleito, já pelo PSOL, o que ocorreu novamente em 2010, sendo o segundo mais votado do Estado, com 241 mil votos.
Portal – Por que saiu do PT?
– Foi um processo muito debatido e coletivo, para continuar praticando os valores políticos e éticos que nele aprendi. Como disse um camponês amigo, “mudar de enxada para continuar o plantio”. O PSOL, que estava sendo criado, foi a opção natural: Socialismo e Liberdade, um partido ainda pequeno, mas com vocação de grandeza, um novo partido contra a velha política.
Portal – A participação política é essencial?
– Sim, sem dúvida. Porque a política é uma dimensão irrenunciável do ser humano, que tem responsabilidade social e se percebeu como gregário e relacionado.
Portal – Como nosso centro de referência é o envelhecimento, e como já completou 60 anos, fez ou faz alguma reflexão sobre o assunto?
– Acho que somos seres nascidos com defeito de fabricação e prazo de validade. Somos finitos, limitados, mas com o germe da transcendência dentro de nós. Somos o tempo vivido e o inevitável “cansaço de materiais” do corpo. O importante é não enrugar a alma, não atrofiar o espírito! Ser velho, sexagenário, é aprender todo dia a conviver com a própria idade, e ganhar sabedoria, já que não dá para ganhar nenhum tipo de corrida. Ter 20 anos a menos seria gostoso, mas não ter vivido estes 20 a mais faria falta. É preciso viver muito para se compreender os mistérios da vida e se construir uma autêntica jovialidade. Procuro entender os cabelos brancos e a perda de flexibilidade corporal e as falhas dos órgãos (sou “revascularizado miocárdico”) como “medalhas” que a vida deu, por “tempo de serviço”. Manter uma cuca jovial é fundamental. Às vezes consigo… Gosto de brincar dizendo que, ao longo da existência, que acolho como benção divina, transitei do “materialismo dialético” ao “espiritualismo diabético”.
Portal – Vamos entrar no mês dos namorados. Como disse que está “companheirando”, o amor, na maturidade, é diferente?
– O poeta Drummond responde por mim: “O amor é o que se aprende no limite, depois de se arquivar toda a ciência herdada, ouvida. Amor começa tarde” (“Amor e seu tempo”). A gente fica mais tranquilo, menos afoito, menos brigão, mais cuidadoso. E também, reconheçamos, com menos vigor físico, aquele voluptuoso, “devorador”. Mas o erotismo não pode “desexistir”, de jeito nenhum. Na analogia com o futebol, não se é mais o centroavante “rompedor”, impetuoso no meio dos beques, mas um meio-campo mais clássico, que sabe fazer “lançamentos em profundidade”.
Portal – Na Câmara Federal percebe compromissos efetivos de seus pares em nome do idoso?
– Estou convencido de que o idoso, na estrutura política e social brasileira, é o bagaço da laranja. Ninguém fala contra, claro, mas poucos se movimentam em defesa do cumprimento do Estatuto do Idoso e na defesa de seus direitos. É que muitos idosos já não votam. Os aposentados, entretanto, que nada têm de inativos, têm dado exemplos de mobilização e luta. O fator previdenciário, que reduz ano a ano os proventos dos aposentados, é um absurdo. Mas já foram conquistadas diversas e boas leis em favor dos idosos. A batalha é para fazer com que elas saiam do papel para a vida real. Já se disse que, no Brasil, cumprir a lei seria revolucionário.
Portal – A militância política e social sempre o impulsiona a novos desafios?
– Nosso tempo pessoal não tem o ritmo do tempo histórico que nos ultrapassa: estamos, de certa maneira, “condenados” a lutar por um vir a ser que não é, e possivelmente não será em nossa existência – o mundo justo que não veremos. Mas “plantar árvores sob cuja sombra não descansaremos” (Rubem Alves) não deve nos desanimar. São os esforços de mulheres e homens lutadores que fazem a roda da História girar. Ela não é acelerada por uma natural e jovial impaciência, nem pela às vezes saudável intransigência, que, ainda que emuladoras em determinadas situações, não servem como argumentos teóricos. Hoje, mais que ontem, entretanto, a utopia é um imperativo categórico, pois “alimenta de horizontes” não apenas os sonhos, mas as preocupações concretas com a fome e a miséria de milhões, jogados no desrespeito à sua dignidade, e o esgotamento dos ecossistemas, que ameaça a continuidade da vida na Terra: acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade, contaminação dos lençóis freáticos, aquecimento global e outros fenômenos nada naturais.
Portal – Poderia, mesmo brevemente, dividir suas impressões sobre o governo Dilma?
– A avaliação positiva do governo Dilma segue, de forma crescente, o que já se verificava com Lula. É inegável que há uma situação de “satisfação conformada” com o governo do Brasil. Para além das personalidades dos chefes de governo, que também contam e, no caso, são radicalmente distintas e de alguma maneira complementares, há outros fatores que contribuem para a ampla aceitação. Não é irrelevante a estatística que aponta uma diferença de 53 vezes nos ganhos dos 10% mais ricos em relação aos 10% mais pobres, em 2002, e que em 2010 cai para 39 vezes. Ressalvas importantes: seguindo com esse critério da distribuição da renda pessoal do trabalho, o 1% mais rico, por outro lado, passou a viver ainda mais nababescamente, em “outro planeta”, em relação aos 99% da população; 50% dos brasileiros continuam à margem dos direitos previdenciários. E metade da renda da impropriamente chamada “nova classe média” (ou, mais inadequadamente ainda, “classe C”) é gasta com educação e saúde, o que revela que essas políticas universais e efetivamente distributivas não prosperaram como deviam. Estão aí os efeitos perversos da governabilidade conservadora: dispersão da esquerda, movimentos sociais debilitados, certa paralisia ou cooptação de importantes ferramentas de contraponto ao Sistema nos anos 80 e 90 (PT, CUT, UNE, ABGLT e outras). O pequeno aumento do salário médio real na última década, de 11%, e a redução da geração de empregos, são “contrabalançados” pelas negociações trabalhistas exitosas do ano passado, quando 95% dos 704 acordos possibilitaram ganhos superiores à inflação, segundo o Dieese. Enquanto isso, o andar de cima segue tendo seus próprios mecanismos de representação: a mídia grande privada, os financiamentos das megaempresas, a captura da produção do saber pelas corporações. Os partidos da ‘base aliada’ são quase ‘marcas de fantasia’, pois nas decisões mais importantes o que pesa são as bancadas de interesses: das empreiteiras, dos bancos, do agronegócio, do sectarismo conservador, da bola, da bala… Esse retrocesso ideológico possibilitou que muitas privatizações fossem empreendidas sem resistência, que o fundamentalismo religioso tenha avançado e que a bancada ruralista tenha obtido grandes vitórias, como a do ‘imbroglio’ do Código Florestal.
Portal – O dia a dia da Câmara é “árduo”…?
– Intensamente. Poucos olham, por exemplo, para a população de rua do Rio, que cresceu 31% nos últimos dois anos. A relação entre os entes da Federação – municípios, Estados e União – é a mesma de sempre, pires na mão, troca de favores, liberação de emendas parlamentares individuais para cevar base eleitoral, acordos partidários menores – inclusive no Congresso Nacional, que leva desmatador a presidir a Comissão de Meio Ambiente do Senado e fundamentalistas racistas e homofóbicos a dirigir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara. “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. O corolário dessa política ideologicamente indiferenciada e desmobilizadora da última década é a escalada conservadora promovida por setores da base de sustentação do governo. Estão na ordem do dia, muitas vezes concretizadas em projetos de lei, ameaças à terra e cultura indígenas e quilombolas, avanços na redução da maioridade penal e laboral, precarização de direitos trabalhistas, tentativas de limitação do poder investigativo do Ministério Público, restrições à livre organização partidária, agressões à laicidade do Estado e aos direitos civis, adulteração do conceito de direitos humanos e ameaças de morte aos seus defensores, crescentes renúncias fiscais e flexibilizações licitatórias.
Portal – Então…
– Continuar plantando árvores, sempre e sempre, mesmo que em sua sombra não nos seja possível descansar…