Uma das questões que tem afligido a muitos dos familiares de pacientes de Covid-19 é a impossibilidade de estarem presentes durante o período em que a internação for necessária, independentemente da idade ou de alguma outra deficiência prévia que este paciente apresente.
A pandemia da Covid-19 tem levado a humanidade à uma série de reflexões, muitas delas em decorrência das circunstâncias novas a que todos estamos expostos a cada dia. Uma, considerada em particular neste texto, tem causado grandes questionamentos por conta de todos os sentimentos que envolve: a necessidade dos familiares de pacientes internados em obterem informações a respeito do estado de saúde de seus entes queridos enquanto estes estiverem hospitalizados.
Em decorrência do alto índice de contaminação, da escassez de recursos, da ausência de protocolos padronizados para o tratamento da doença, dentre outros fatores, uma das questões que tem afligido a muitos dos familiares de pacientes de Covid-19 é a impossibilidade de estarem presentes durante o período em que a internação for necessária, independentemente da idade ou de alguma outra deficiência prévia que este paciente apresente.
O paciente adulto acometido por esta doença interna-se sozinho e assim permanece até a sua alta. Os direitos ao acompanhamento de pacientes no presente contexto estão, por assim dizer, absolutamente relativizados.
Os hospitais, para preservar não só aqueles acometidos por esse mal, mas também aqueles que se internam por outros motivos, não autorizam em suas dependências a presença de qualquer pessoa, que não a do próprio doente, enquanto durar a internação. Algumas das justificativas são as possibilidades de contaminação do visitante, de contaminação dos profissionais da saúde e de outros pacientes por visitantes assintomáticos, além dos motivos outros acima assinalados.
Distantes, já que não podem estar nas dependências hospitalares na condição de acompanhantes, os familiares têm encontrado grandes dificuldades para saber sobre a real situação de saúde de seus entes queridos, ainda que busquem por informações diariamente e, por vezes, mais de uma vez ao dia.
A busca por informações e as tentativas de contato por parte dos familiares objetivam, em síntese, além de se ter ciência sobre a situação em saúde do paciente, fazer-se presente junto ao paciente, ainda que distante.
CONFIRA TAMBÉM:
Nem sempre o avançar dos casos de pacientes com Covid-19 é bom, seja por conta dos avanços da própria doença em pacientes que não apresentavam qualquer doença pré-existente, seja porque alguns doentes já apresentavam complicadores, levando muitas pessoas, por estas razões, inevitavelmente ao agravamento do quadro em saúde e até mesmo ao óbito.
São muitos os casos, por esta mesma razão, de pessoas que se despediram de seus entes queridos, quando houve esta possibilidade, por recados dados pelos médicos no momento de recebimento dos boletins de saúde, por chamadas de vídeo, já que a presença física de alguém próximo na hora da morte era algo absolutamente impossível, havendo alguns casos ainda de pessoas que nem mesmo essa alternativa tiveram e partiram sozinhos, sem a presença de qualquer dos seus para sequer um “adeus”.
Esta realidade faz tramitar no Congresso Nacional, inclusive, um projeto de lei que dispõe sobre o direito à uma visita virtual, por meio de videochamadas, de familiares a pacientes internados em decorrência do novo coronavírus (PL 2136/2020), objetivando ser um direito, salvaguardado por lei, a possibilidade de se fazer presente junto a alguém estimado e que esteja em situação de hospitalização, ainda que pelo uso de tecnologias, já que a presença física é vetada.
Ter alguém próximo adoentado e hospitalizado é uma situação que toca com sentimentos muito similares à grande maioria das pessoas: angústia, tristeza, apreensão, nervosismo, desespero, raiva, negação, dentre outros. Independentemente de qual seja o sentimento, a todos os familiares existe um direito humanitário que precisa ser amparado: a necessidade de se ter notícias a respeito da pessoa que está adoentada e hospitalizada.
Não podemos nos esquecer de que os familiares são a extensão dos pacientes fora do ambiente hospitalar, e a eles devem ser reservadas iguais atenção e dedicação médicas, principalmente quando nos deparamos com situações de isolamento como as vividas hoje. É de fundamental importância saber se o familiar que está adoentado e hospitalizado está melhor, se piorou, o que será feito, quais os caminhos disponíveis, dentre outros.
O fundamento desta necessidade encontra amparo no fato de que a doença que afeta ao doente, de maneira direta atinge também à toda a sua família, já que em um contexto como esse ela está absolutamente fragilizada.
É inegável que aquele que possui alguém próximo adoentado e hospitalizado precisa de acolhimento, de amparo e de respeito. As circunstâncias que envolvem a internação de alguém que nos é estimado, às vezes por longo período de tempo, e o tratamento médico, abalam os familiares, sendo inegável que lhes é afetado o aspecto psicológico de existência.
Assim, configurada a impossibilidade de se ter notícias sobre alguém estimado, surge a violação a um direito humano fundamental: o direito à saúde.
Lembremos que a Organização Mundial da Saúde define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”(1) . Assim sendo, uma vez inexistindo o bem-estar mental por parte daquele que busca por notícias e não as tem, configurada está uma violação do seu direito à saúde.
Sabemos que a pandemia da Covid-19 tem revelado ao mundo uma série de problemas e de falhas que, até seu surgimento, talvez passassem despercebidas ou sobre os quais se fizessem vistas grossas e fossem superadas.
Todavia, a realidade que se faz presente mundo afora, é suficientemente forte, por si própria, para mostrar à humanidade que algumas questões até então relevadas já não podem assim continuar.
Sabe-se da falta de recursos tecnológicos e operacionais tão comum a países em desenvolvimento, como o Brasil. Todavia, uma das questões que tem se evidenciado nos últimos tempos é a falta de humanidade, por parte de muitos que se encontram envolvidos em toda a problemática trazida pela COVID-19.
Ainda assim, é igualmente sabido que no Brasil há muito se fala na necessidade de humanização de condutas por parte de quem as pratica, seja em que esfera for. No contexto considerado neste texto, observa-se que a COVID-19 tem evidenciado uma necessidade latente: uma efetiva humanização por parte de prestadores de serviços na área da saúde encarregados de passar a familiares um posicionamento sobre os quadros de saúde e evolução de pacientes internados.
Atribui-se aos médicos a incumbência de contatar os familiares, mas as turbulências do dia-a-dia de um hospital podem impedir as ligações diárias. Isso pode ser aceitável? Sabe-se que muitas destas pessoas estão esgotadas, física e emocionalmente, e isso não é em momento algum esquecido ou desconsiderado.
Considera-se a alta demanda existente em todas as frentes prestadoras de serviços em saúde neste momento e reverencia-se em absoluto a todas as pessoas que se enquadram em funções atreladas a este setor.
São absolutamente imensuráveis o respeito e a gratidão que toda a sociedade deve devotar a cada um que se expõe para salvar vidas e para dar todo o amparo necessário a quem precisa, muitas vezes em condições de precariedade extrema pela absoluta falta de recursos.
Ainda assim, é inegável dizer que a situação abordada neste texto precisa ser igualmente considerada, na medida em que a devida e necessária atenção sejam igualmente à ela devotadas.
A necessidade é urgente porque as mortes, em muitos casos, são inevitáveis e por ser direito dos familiares saber de seus entes queridos antes que isso aconteça ou, na melhor das hipóteses, poder se despedir deles com a mínima dignidade possível antes que os óbitos ocorram.
Não pensamos aqui em um contexto de possível apuração de responsabilidades dentro de esferas ética, cível e criminal tão debatidas até outrora, até porque não é disso que se trata. Pensamos em uma consideração e em uma necessidade de serem abordadas as questões humanitárias que o contexto da COVID-19 nos trouxe.
É urgente a necessidade de atos de empatia, de solidariedade, de amizade gratuita, de compaixão, de acolhimento e de identificação com a família daquele que sofre.
O paciente está em isolamento, e ainda que a equipe médica e os profissionais auxiliares despendam toda a atenção que lhes é permitida, é necessário proporcionar às famílias notícias diárias, dando a elas, até mesmo, a possibilidade de enviarem recados de esperança e mensagens de carinho aos seus entes queridos. Isso proporciona um acolhimento ao paciente, e, de igual modo, conforta a sua família.
Lembremo-nos, portanto, que somos todos mortais. A dor que toca ao outro existe igualmente em cada um, na medida em que com ela se depare.
Desta forma, valemo-nos da máxima de que não é preciso se ter lei alguma para que se regule a necessidade de se ser humano, mas é primordial que se busque agir de maneira a garantir o direito a se ter notícias sobre pacientes de COVID-19 a todos os familiares que buscar por elas, já que para práticas neste sentido, não precisamos de regras ou de normatização, mas de coração, de sensibilidade e de identificação.
Nota
(1) https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=14401:health-indicators-conceptual-and-operational-considerations-section-1&Itemid=0&limitstart=1&lang=pt.
(*) Este texto, escrito em coautoria com a advogada Dra. Daiana Soares Anhoque, Especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito e Sócia do Escritório MSE Advogados (www.mselias.adv.br), é In Memoriam de Maria José Biondini Correia (ou Zezé, como era conhecida por seus amigos e familiares) e a todas as vítimas da Covid-19 que não puderam se despedir de seus entes queridos ou terem notícias suas levadas ao conhecimento dos que tanto amavam.