Se os Deuses, se é que eles existem, nos permitissem armazenar nossas memórias, a cada fase vivida, que bom seria. Imaginem: num primeiro momento apenas nos deixaríamos desfrutar pelos momentos. Em seguida avaliaríamos o bom e o ruim e os guardaríamos para aprendizados futuros. O material de ordem prática seria imediatamente armazenado, poderíamos fazer uso deles quando menos esperássemos. Já o descartável ficaria reservado ao esquecimento, importante saber que um vírus pode contaminar todo material de qualidade, até então guardado para toda vida.
Luciana H. Mussi *
Mas, sinto dizer que nem os Deuses e muitos menos nós não conseguiríamos tal façanha. Como dizia Pierre Corneille (1606-1684), autor dramático francês do século XVII: “Se o jovem soubesse e o velho pudesse…”. O fato é que não sabemos e não podemos, apenas vivemos.
Falando de material nobre como as memórias e arte, nada como trazer o projeto “Memory Bank” ou traduzindo, “Banco da Memória”. Trata-se de um trabalho desenvolvido em parceria com o Yorkshire Film Archive (YFA, ou Arquivo Cinematográfico de Yorkshire), profissionais de saúde e cuidadores especializados no problema.
CONFIRA TAMBÉM:
Ainda não sou velha… Será?
- 11/09/2017
La vecchiaia è bruta
- 20/11/2017
Os idealizadores do projeto contam que os filmes datam das décadas de 1940, 50, 60 e 70, todos parte do acervo do YFA, selecionados cuidadosamente para ajudar os participantes do programa a lembrar do passado.
Em entrevista ao Website da BBC, algumas pacientes contaram como as imagens contidas nos filmes ajudaram a lembrar do tempo em que elas estavam na escola, apesar “das memórias não terem durado muito tempo”.
Sue Howard, diretora do YFA explica esse efeito: “É como remexer os anos. As memórias ainda estão lá, só é preciso um gatilho”. Ela conta que cada clipe tem, em média, seis minutos e mostram assuntos familiares como férias, esportes, escola, compras e trabalho.
Outra paciente entrevistada fala com graça da própria fragilidade. Ela diz que aprova qualquer coisa que faça os neurônios trabalharem, “pois se você não usar os neurônios, vai perdê-los”.
O YFA esclarece que os filmes antigos trabalhados com os pacientes se concentram em atividades cotidianas, experiências que os participantes do programa já viveram em algum momento de suas vidas.
Com base nesse projeto e muitos outros, ainda não oficiais, pergunto: Por que não usar, para estes fins, vídeos, filmes de curta metragem ou longas com maior frequência e de uma forma estruturada e séria? Já está mais do que provado que as imagens, sejam elas da ficção ou da vida real, têm um poder enorme de transformação sobre aqueles que a veem. E não só pelo poder imagético, mas também pelas histórias contadas, cheias de magia, fantasia, melhor dizendo, de uma estranha realidade.
Metodologia da pesquisa
O projeto “Banco da Memória” foi lançado depois de 18 meses de pesquisa. Segundo a reportagem da BBC os filmes são apresentados junto com um pacote de pesquisas, que trazem anotações e dicas sobre quais assuntos podem ser discutidos com os participantes.
Sue Howard, do YFA diz: “O Memory Bank é sobre abrir nossas coleções para uma grande variedade de idosos, muitos deles enfrentando uma série de desafios relacionados à idade, e que, frequentemente, tem poucas oportunidades de assistir filmes como estes”.
Sobre os benefícios do projeto, ela acrescenta: “A terapia de lembranças e o trabalho com a memória tem um valor inestimável para melhorar o senso de identidade pessoal e o bem-estar, e estimular a comunicação e sociabilidade”.
Dianne Willcocks, gerontologista e professora emérita da Universidade St. John, em York, onde o YFA é baseado explica: “O Memory Bank oferece a pessoas mais velhas uma ferramenta divertida e irrefutável para retomar o passado e dividir este passado com a família, amigos e cuidadores”.
Segundo ela, um projeto para todos: “Funciona tanto para aqueles que vivem com demência como para aqueles que possuem uma memória mais detalhada”.
Já dizia o ilustre cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993): “O cinema é um modo divino de contar a vida”.
Uma arte que têm lá seus poderes, alguns inexplicáveis. Sobre isso e muito mais, o médico e professor, Ivan Izquierdo, resume a questão: “A arte certamente enriquece nossas vidas, acrescenta beleza, ritmo, algo que vibra. Algo que sentimos intimamente como parente próximo do amor, mas não sabemos definir. Mas isso é simplesmente porque não é possível definir o amor, nem a arte, nem, como vimos, a própria vida” (2006, p. 114).
Referências
BBC (2012). Projeto britânico usa filmes antigos para ajudar portadores de demência. Disponível Aqui. Acesso em 22/05/2012.
IZQUIERDO, I. (2006). Tempo de viver. Rio Grande do Sul/São Leopoldo: Unisinos.