O Alemão leva Mamy embora aos pouquinhos. Rouba suas memórias. Só me resta compensar seus desfalques, preencher os vazios que o danado deixa. Para isso uso mil ferramentas. É essa história que compartilho com vocês no livro O Alemão Veio Nos Visitar.
Por Rosana Leal (*)
Mamy andava esquecida. Mas, envolvida até o último fio de cabelo com minha dissertação de mestrado, não dei ouvidos às suas queixas. Até que parou de reclamar. Parou porque o esquecimento tomou conta dela. Descobri isso num doloroso domingo.
– Do que a senhora tá rindo?
– Do gordo, filha.
– Faustão?
– Ele é muito engraçado. Você precisava ver como aqueles meninos cresceram e estão bonitos. Acabaram de se apresentar.
– Quem, Mamy?
– Os filhos daquele artista que canta junto com o irmão, o do cabelo arrepiado.
– Chitãozinho e Xororó?
– Exato. Os meninos se apresentaram ao lado daquela artista famosa. Aqui de Salvador. Uma que tá fazendo muito sucesso…
– Qual artista?
– A que casou outro dia…
Esquecer os nomes de Sandy e Júnior e Chitãozinho e Xororó não me causaria espanto, mas Faustão, que ela venerava tanto, e Ivete Sangalo fez com que uma luz em meu cérebro piscasse.
– Mamy, precisamos ir ao médico.
O geriatra começou com uma entrevista. Mamy tirou de letra. Data e local de nascimento, endereço atual etc. Desperdicei tempo e dinheiro, pensei. Mas aí o médico apontou para mim.
– Quem é essa moça bonita?
– Só pode ser minha filha…
– E o nome dela?
– Pergunte a ela, ora!
– Sua filha é formada?
– Minhas filhas sempre foram muito estudiosas.
– Esta aqui é formada em quê? Trabalha em quê?
– Responda aí minha filha!
O médico não me deixou falar. Comecei a chorar. Senti um aperto no peito. Como se naquele momento Mamy tivesse me abandonado.
– Mamy, pelo amor de Deus, responde a pergunta do médico.
– Você por acaso não sabe o que faz?
– Mamy, ele quer ouvir da sua boca. Diga para ele meu nome e o que faço, no que me formei, só isso, por favor.
– Já disse que você é minha filha… e chega dessa conversa… quero ir embora.
Mamy sempre foi durona, mandona, e a doença havia acentuado ainda mais esses traços.
– Mamy, responde, eu sou formada em quê?
Ela se esforçava para lembrar. Isso a entristecia. Podia ver nos seus olhos. Passei a chorar por mim e por ela.
– Engula esse choro, pare de besteira e pegue suas coisas…
O médico levou Mamy até o sofá da recepção e voltou para me dar a notícia. Aí começou minha luta. Não tinha como mandar o Alemão embora, mas também não ia deixar que pintasse e bordasse no meu quintal.
Montei uma equipe multidisciplinar para me ajudar a cuidar. Há 15 anos o Alemão toma chá de cadeira. Todo dia eu brinco com ele:
– Não se avexe não porque na Bahia é assim…
Mas o Alemão é danado. Leva Mamy aos pouquinhos. Pedacinho por pedacinho. Rouba suas memórias. É antes de tudo um ladrão de memórias. Só nos resta compensar seus desfalques, preencher os vazios que o danado deixa. Para isso nos valemos de mil ferramentas. Toda essa história, na maior parte engraçada, compartilho com vocês no livro O Alemão Veio Nos Visitar.
(*) Rosana Leal é baiana de Salvador, graduada em Engenharia Civil, mestre em Análise Regional, especialista em Administração e em Engenharia de Segurança do Trabalho. Professora universitária e empresária. Autora do livro “A Alavanca Quebrada: aspectos da construção habitacional em Salvador sob a ótica da administração de materiais”, e “O Alemão veio nos visitar – acolhendo o visitante indesejado”.