Um dos maiores desafios para a bióloga e neurocientista Suzana Herculano-Houzel é traduzir para o público leigo as mais recentes e instigantes descobertas científicas sobre o cérebro. Em seus textos, ela aplica os achados das neurociências para explicar eventos banais do dia-a-dia e até ensina a adaptar às necessidades do cotidiano as conclusões de algumas pesquisas de ponta, como um método infalível para chamar o garçom. Suzana respondeu às perguntas a seguir, enviadas pelos leitores de ÉPOCA.
Foto: André Nazareth/ÉPOCA
É verdade que o ser humano usa só 10% da inteligência que possui? Caso usássemos pelo menos 80%, teríamos uma civilização mais evoluída?
Francisco Aristonio Chagas Junior, Ceará
Suzana Herculano-Houzel – O ser humano não usa 10% de seu cérebro, nem de seus neurônios: usa todos. Desenvolver nossas capacidades de analisar situações, elaborar estratégias e resolver problemas depende de aprender a usar esses neurônios de outras formas. Curiosamente, quanto melhores ficamos numa tarefa, menos neurônios precisamos para realizála. Isso deixa mais neurônios livres para cuidar de outras coisas. Ao contrário de um computador, quanto mais usamos o cérebro, melhor, mais capaz e mais saudável ele fica. A “capacidade” do cérebro é mutável, dependendo de como ele é usado.
É verdade que hábitos como ler, jogar xadrez e praticar exercícios físicos podem deixar as pessoas mais “inteligentes”?
Léo Barbosa, São Paulo
Suzana – A neurociência trabalha hoje em dia com conceitos de inteligências diferentes, como inteligência social (a capacidade de tomar boas decisões que envolvem relacionamentos humanos), inteligência fluida (a capacidade de resolver problemas), desempenho específico verbal, motor etc. São capacidades que dependem de circuitos cerebrais específicos e podem ser desenvolvidas com método e prática, assim como s a memória, fundamental para todas essas capacidades. Por isso, é ótimo sermos exigentes com nossa mente: a melhor maneira de desenvolver uma capacidade é explorá-la.
Se o cérebro comanda a vida, e isso pressupõe uma preponderância da razão, por que este mundo é tão ilógico?
José Roberto Delfino Júnior, Paraná
Suzana – O cérebro é responsável pela razão, mas também pela emoção e por todos os aspectos conscientes e inconscientes pesados na hora de tomar decisões, mesmo os aparentemente “ilógicos”. A neurociência mostra que, felizmente, nossa vida não é regida pela razão – ou seríamos todos sociopatas em algum grau. Boas decisões – aquelas que se mostram sábias, nos deixam satisfeitos e são benéficas também à sociedade – consideram a análise racional da situação combinada com impressões emocionais do cérebro a respeito.
Gostaria que você comentasse a capacidade de regeneração das células cerebrais e os avanços no tratamento das lesões cerebrais.
Marcelo de Oliveira Mundim, Minas Gerais
Suzana – Apesar do enorme potencial de reorganização funcional do cérebro adulto descoberto nas últimas décadas, continua sendo verdade que o cérebro não se regenera sozinho, ao contrário do cérebro das lagartixas. Parte da diferença está no enorme número de células-tronco neurais presentes no cérebro delas, mas não no nosso. Há muitos pesquisadores se esforçando atualmente, inclusive no Brasil, para descobrir como as células-tronco podem ser usadas para gerar novos neurônios para, por exemplo, tratar lesões cerebrais.
O que dizem as pesquisas mais recentes sobre o envelhecimento cerebral?
Marisa Luísa Pires, São Paulo
Suzana – O envelhecimento é um processo que leva a várias alterações no cérebro, incluindo a morte de neurônios em estruturas como o hipocampo (dificultando a formação de memórias novas) e a substância negra (causando lentidão de movimentos e de raciocínio). É possível que haja perda de neurônios em outras estruturas também. Felizmente, o processo é muito variável entre os indivíduos e, assim como hoje já se sabe que um fator que acelera a perda de neurônios é o estresse crônico, é possível desacelerar a perda, proteger o cérebro e, assim, favorecer um envelhecimento saudável praticando exercícios físicos com freqüência, tendo uma dieta saudável e uma vida mental rica.
Quais os perigos reais da maconha para o cérebro humano?
Aninha, São Paulo
Suzana – Como qualquer outra substância de abuso, a maconha leva ao vício por estimular em excesso o sistema de recompensa do cérebro. Ao oferecer prazer e bem-estar imediatos, também faz com que o sistema perca a sensibilidade, de modo que todos os prazeres cotidianos vão perdendo a graça, e apenas doses maiores e mais freqüentes da droga ainda conseguem proporcionar bem-estar, até que o usuário passa a apelar para drogas mais potentes, como a cocaína, para recuperar o bem-estar. O problema maior do vício é que o usuário abandona suas atividades anteriores, que perdem a capacidade de dar prazer. Sua vida passa a girar em torno de conseguir mais droga. Além disso, a maconha provoca a morte dos neurônios do hipocampo, prejudicando a formação de memórias novas. Se fumada na gestação, provoca danos no feto, que, quando adulto, também se tornará mais sujeito ao vício.
O aneurisma vem matando silenciosamente no Brasil. Algumas estatísticas mostram que, em cada grupo de 100 mil pessoas, cem têm a doença e não sabem. O que a comunidade científica tem feito para brecar o alto número de mortos por essa doença?
Carlos Henrique Rosa, São Paulo
Suzana – Está ao alcance de cada um de nós controlar alguns dos maiores fatores de risco de acidentes vasculares cerebrais, incluindo os que envolvem rompimentos de aneurismas: pressão alta, tabagismo, colesterol elevado e sedentarismo. Além dos esforços para desenvolver novos tratamentos para AVCs, é preciso enfatizar a importância de eliminar esses fatores que põem em risco não só a saúde cardiovascular, como também a cerebral.
Como você entende o fenômeno conhecido pelo nome de meditação? É algo além da mente?
Lincoln Harten, São Paulo
Suzana – A meditação pode ser entendida como um processo por meio do qual o cérebro é capaz de se colocar em um estado pouco usual de funcionamento, ao mesmo tempo altamente concentrado em um foco mental e desligado das sensações do corpo físico. É um estado de grande ativação do sistema de recompensa cerebral, o que traz sensação de bem-estar.
*Bióloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e neurocientista pela Case Western Reserve University (EUA), pela Universidade de Paris VI (França) e pelo Instituto Max-Planck para a Pesquisa do Cérebro (Alemanha). Publicou: O Cérebro Nosso de Cada Dia (Vieira & Lent, 2002), Sexo, Drogas, Rock’n’Roll & Chocolate – O Cérebro e os Prazeres da Vida Cotidiana (Vieira & Lent, 2003) e O Cérebro em Transformação (Objetiva, 2005)
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Fonte: Revista Época. Disponível Aqui