No limiar da morte

Apesar de algumas famílias optarem pela doação de órgãos, elas ainda se ressentem da falta de suporte psicológico e social do Sistema Único de Saúde (SUS) após o procedimento. Essa foi a conclusão de um estudo de doutorado desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) por Marli Elisa Nascimento Fernandes. Ela sugere criação de rede que dê apoio às famílias de potenciais doadores e de doadores efetivos de órgãos.

Isabel Gardenal * Fotos: Antoninho Perri

 

no-limiar-da-morteMorte encefálica é a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro. Isto significa que, como resultado de severa agressão ou de um ferimento grave no cérebro, o sangue que vem do corpo (e o supre) é bloqueado. As funções cerebrais morrem. É nesse momento que muitas famílias são acionadas a doarem os órgãos de seus entes queridos. Mas há famílias que resistem à doação, pois esse processo ainda é entrecortado por mitos e crenças.

Apesar de algumas famílias optarem pela doação de órgãos, elas ainda se ressentem da falta de suporte psicológico e social do Sistema Único de Saúde (SUS) após o procedimento. Essa foi a conclusão de um estudo de doutorado (Percepção das famílias de doadores de órgãos sobre o processo de doação) desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) por Marli Elisa Nascimento Fernandes. “Vejo que é necessário oferecer maior apoio socioemocional aos familiares frente à sua vivência no processo de doação”, constatou ela.

Marli, que é assistente social, sugeriu em sua tese que o SUS e o Sistema Nacional de Transplante (SNT) criem uma rede de cuidados às famílias de potenciais doadores e de doadores efetivos de órgãos no Brasil. A autora do trabalho espera que isso seja encarado como política nacional para agraciar essas famílias em suas necessidades. Outras práticas de atenção e gestão na saúde também poderão ser discutidas para impactar o fortalecimento dos vínculos familiares pós-doação e aumentar os índices de captação.

A pesquisa de doutorado, realizada entre 2012 e 2013, foi sobre a percepção das famílias de doadores de órgãos múltiplos sobre o processo de doação. “Obtivemos um olhar da família em relação à doação que acontece no SNT”, informou. A doutoranda explicou que faz parte da rotina do SNT uma entrevista com a família do paciente para ver se ela consente a doação de múltiplos órgãos.

Para detectar morte encefálica no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, expôs ela, são necessários vários testes, que contam principalmente com a participação de dois neurologistas, realizados com base no protocolo de verificação de morte encefálica. Após uma avaliação clínica e laboral, vem o diagnóstico e a manutenção do potencial doador. A equipe de saúde avalia se esse paciente possui condições de ser doador e oferece à família essa possibilidade.

Amostra

O HC da Unicamp tem em suas dependências a OPO (Organização de Procura de Órgãos). Dentro do banco de dados da OPO, Marli selecionou 135 doadores de órgãos e obteve uma amostra de 30. Telefonou para as famílias convidando-as a participarem do estudo. A amostra final foi composta de 12 famílias. Somente sete aceitaram participar do estudo. Cinco se recusaram por terem dificuldades emocionais para abordar o assunto. Foi marcada uma única entrevista. Cinco famílias foram entrevistadas no domicílio e duas no hospital. A ideia era falar sobre a doação.

As famílias lamentaram a falta de suporte psicológico e social do SUS quando ainda ocorre a elaboração do luto. Elas contaram que se sentiram excluídas do processo. Algumas famílias inclusive relataram que tiveram que custear o próprio suporte psicológico para enfrentar a dor da perda, mesmo com uma condição financeira muito precária.

Segundo Marli, a maioria dos participantes que aprovaram a doação foram homens (pais). Já a maioria dos doadores eram mulheres na faixa dos 27 anos e que tiveram morte causada por traumatismo crânio-encefálico (TCE), encefalopatia anóxica e acidente vascular cerebral (AVC).

As famílias lembraram que, quando o ente querido morre, muitas providências precisam ser tomadas. E isso tem que acontecer mesmo elas estando emocionalmente desestabilizadas, depois de enfrentarem uma morte precoce, inesperada e repentina. Sem falar que muitas não estão economicamente estáveis e não têm convênio médico privado.

Algumas queixas delas envolveram a questão do curto tempo que decorre entre a morte encefálica e a entrevista sobre a doação. As famílias consideraram muito rápida a intervenção e muitas se mostraram incomodadas com isso.

Por outro lado, elas também enfatizaram a demora na liberação do corpo do familiar: entre 36 e 48 horas. De acordo com Marli, depois que o órgão é doado, tem que seguir para o Instituto Médico Legal (IML), e a espera pode se prolongar muito. Nesse processo, comentou, somente é possível falar em doação após ter sido constatada a morte cerebral. Com isso, o tempo não pode ser excessivamente longo, porque é crucial que os órgãos sejam mantidos na mais perfeita condição. “Essa demora acaba sendo muito triste para a família”, lamentou.

Mas as famílias entrevistadas não abordaram apenas os aspectos negativos da doação. Também chamou a atenção da doutoranda a motivação dos familiares para fazerem a doação. Eles afirmaram que se sentiram recompensados em ajudar outras pessoas que ainda vivem e precisam desses órgãos. Muitos citaram que receberam grande apoio do Serviço de Enfermagem e do Serviço Social e, embora reconhecendo que a situação era muito difícil, por envolver morte, a motivação das famílias tinha duas razões especiais: a sua crença e as campanhas jornalísticas.

As entrevistadas falaram das vivências (falaram sobre a morte encefálica e a condução do processo), do sentimento (de não ter o acompanhamento), da percepção (da falta de apoio do SUS) e da motivação (que envolve os quatro temas) para a doação de órgãos. Conforme Marli, a percepção foi o todo neste processo.

Proposta

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A falta de apoio do SUS foi uma deixa para que Marli e sua orientadora, a docente da FCM Ilka de Fátima Santana Ferreira Boin, elaborassem uma proposta na tese para a criação de uma rede de cuidados da família do potencial doador de órgãos para transplante.

A proposta é que a equipe da OPO e dos profissionais da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos (CIHDOTT) já identifiquem o potencial doador e acionem a Unidade Básica de Saúde e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para oferecer suporte psicológico e social à família, independentemente de haver doação ou não.

Neste caso, explicou a doutoranda, que também teve coorientação da professora Zélia Zilda Lourenço de Camargo Bittencourt, o profissional da equipe faria uma contrarreferência junto à rede, encaminhando essas famílias para um acompanhamento de no mínimo três meses. “Apesar do processo de interiorização e de elaboração do luto não ter prazo fechado, ter alguém da rede onde eles moram, e poder lhes dar apoio, é uma grande conquista.”

A assistente social chegou a consultar a Organização Nacional de Transplates (ONT) da Espanha, a maior referência mundial em transplantes, hoje com mais de 35 doadores por milhão de habitantes (mais que o dobro do Brasil). A resposta foi que naquele país não há acompanhamento pós-doação, consoante proposto por Marli. “Nosso projeto é portanto pioneiro”, comemorou.

A pesquisadora faz um apelo às autoridades ligadas ao SUS. “Se não houver cuidado com as famílias, dificilmente haverá doação”, acentuou Marli, que atua como supervisora da Área de Internação do HC e integra a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos para Transplante, vinculada à OPO.

A OPO do HC

O Brasil é referência em transplantes e, atualmente, mais de 95% deste procedimento é financiado pelo SUS, que é o maior sistema público de transplantes do mundo.

Apesar disso, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) aponta que o país tem 44% de recusa familiar em relação à doação e há hoje 13 doadores por milhão de habitantes. “Esses dados estão muito aquém das necessidades dos pacientes em lista de espera. Isso mostra que é muito difícil conseguir um transplante”, afirmou Marli.

A OPO surgiu em 1993 e, após a regulamentação da lei de doação em 1997, ela teve papel fundamental para o desenvolvimento da captação e transplantes da Região Metropolitana de Campinas (RMC). Atualmente, essa unidade é considerada a primeira em captação das centrais no interior de São Paulo.

A OPO abrange em média 124 municípios e trabalha com a notificação de potenciais doadores. Possui uma equipe multiprofissional que faz a entrevista com as famílias. Como é o processo após a família consentir a doação? A OPO tem que notificar as Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) para que os pacientes que estão na lista de espera tenham compatibilidade para receber o órgão.

O processo começa identificando o potencial doador e depois são feitos os exames para comprovar a morte encefálica. É realizada a entrevista com a família e, quando se notifica a morte encefálica, essa informação tem que ser encaminhada para a CNCDO, do Ministério da Saúde. Vai rodar uma lista do paciente que está em espera. A CNCDO verifica as pessoas que têm compatibilidade para receber a doação.

Depoimentos de familiares

“No primeiro momento, eu não queria doar, mas depois, lembrando que ela deixou sua vontade de ser doadora para ajudar a salvar outras vidas, o que mais me incentivou em fazer a doação foi respeitar o desejo dela.”

“… Acho que o SUS devia proporcionar apoio da assistência e psicólogo pois nós tivemos que pagar um psicólogo para meu filho e também eu paguei atendimento psiquiátrico.”

“A mídia tem influência para doar, mas acho que passa muito pouco… Acho que a família doadora é que deveria ser a propaganda para incentivar a doação…”

“O que motivou a gente foi mais o desejo de poder ajudar, porque infelizmente para minha filha não teria mais nada o que fazer, e ela poderia ajudar outras crianças da idade dela…”

Referências

Fernandes, M.E.N.; Bittencourt, Z.Z.L.C.; Boin, I.F.S.B. Experiencing organ donation: feelings of relatives after consent. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 23(5):82-7, 2015.

* Isabel Gardenal escreve para o Jornal da Unicamp. Campinas, 30 de novembro de 2015 a 13 de dezembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 645 – Acesse Aqui

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