As pessoas não morrem, elas apenas vão de uma casa para outra, no berço da lua e, para chegar até lá, é preciso ficar muito quieto porque é mais fácil ver sem palavras.
Uma vez ouvi de uma professora que quando alguém morre todos os verbos de uma composição (na minha meninice, esse era o nome que dávamos a uma redação) deviam seguir a regra da conjugação no passado simples, afinal, dizia ela, “a ação aconteceu nesse tempo passado e, a existência de uma pessoa termina, definitivamente, quando a morte chega”.
Essa explicação sobre a correta utilização dos tempos verbais representou meu primeiro zero na redação cujo título foi “O Meu Pai”. Importante dizer que essa “pérola” chegou a mim cinco meses depois do falecimento “Dele”, aos 7 anos de idade e, devo confessar: não houve um segundo domingo de agosto sequer que eu não lembrasse desse, no mínimo, infeliz acontecimento.
Por razões óbvias, escolhi um trecho do filme “O Enigma das Cartas” para, na pele da pequena Sally que sofre pela perda recente do pai, homenagear a todos os homens que, amorosos, cuidam dos seus filhos com palavras generosas e gestos acolhedores.
Mesmo que “ausentes”, acredito que eles estejam, lá de longe, no berço da lua, protegendo todas as menininhas e menininhos do mundo que sofreram e ainda sofrem pela saudade que o passar do tempo só faz aumentar.
Era uma vez…
O pai da menina Sally morreu de forma repentina e violenta enquanto trabalhava nas ruínas de uma cidade maia. A família composta pela mãe, Ruth, e o irmão mais velho, Michael, estavam na cidade na ocasião do acidente e lá permaneceram porque a mulher teve que assumir o trabalho do marido.
Neste período, Sally costumava conversar com o arquiteto maia, Sectenel, questões sobre a origem da vida e da morte e, este lhe explicava, utilizando o mito da Grande Avó da Luz, que as pessoas não morrem, elas apenas vão de uma casa para outra, no berço da lua e, para chegar até lá, era preciso ficar muito quieto porque é mais fácil ver sem palavras.
Sally ouvia atentamente a história do mito contada por Sectenel e, assim, adotava os sábios ensinamentos do homem como respostas para suas dúvidas existenciais: “quem eu sou, de onde vim, para onde vou”.
– Sally: Por que as pessoas sonham?
– Sectenel: Para ver as coisas melhor.
– Sally: De onde as pessoas vêm?
– Sectenel: Os deuses as fizeram.
– Sally: Onde os deuses moram?
– Sectenel: Moram em todas as coisas vivas.
– Sally: Por que fizeram as pessoas?
– Sectenel: Porque estavam entediados. Eles fizeram as pessoas para entretê-los.
– Sally: Por que os deuses deixam as pessoas morrer?
– Sectenel: As pessoas não morrem. Elas vão de uma casa para a outra.
– Sally: Sectenel, conte a história da Grande Avó da Luz que fez as primeiras pessoas de milho amarelo.
– Sectenel: Ela lhes deu o poder de ver tudo! Eles podiam ver através das paredes. Podiam até ver o interior das pessoas! Hoje, só podemos fazer isso em sonhos.
– Sally: Então, se estivéssemos sonhando, não precisaria me contar o resto. Eu já saberia.
– Sectenel: Agora, preste atenção. Um dia, Hurakan, o Grande Deus do Céu teve tanta inveja das pessoas que isso deixou a Grande Avó triste e ela decidiu dar esse poder a crianças muito especiais, mas elas só podiam usar a visão em sonhos, onde não há palavras. É mais fácil ver sem palavras. As crianças veem o mundo como realmente querem ver, como nos sonhos.
Na imaginação de Sally, chegam as palavras da mãe: “Não deve chorar. Lembre-se, não deve chorar”. E um dia a Grande Avó da Luz fez as três bonecas de milho amarelo e branco. “Ela as amava tanto que lhes deu esta visão especial”.
E a menina se despede, com suas três bonecas encantadas, presentes de Sectenel. Para o menino Michael, o maia entrega um avião, passaporte para os céus. Para Alex, o pai que se foi, uma máscara: seu rosto e sua alma serão eternizados, como numa fotografia.
– Sally: Onde o papai mora agora?
– Sectenel: Lá em cima, no berço da lua.
– Sally: Mas como ele chega lá, se ele está morto?
– Sectenel: Lembre-se que, às vezes, é preciso ficar muito quieto para ver as coisas.
Reflexiva, Sally busca respostas na luz da lua. Ela abraça suas três bonecas, fecha os olhos e retorna, no vazio de seus pensamentos, às ruínas da cidade maia. Tudo, na tentativa de ficar mais próxima do pai.
Ao chegar, o cenário lhe parece estranho. Sem nada falar, a imagem da casa onde sempre viveu, fica sem foco, sem contorno. Com a falta do pai, o lugar já não é mais o mesmo, o lar se tornou apenas um borrão.
Acomodada no parapeito da janela, olhando fixamente para a lua, a menina pensa: “As pessoas não morrem, vão de uma casa para outra, até se juntarem a luz da lua, onde não há palavras”.
Na escola, sozinha, isolada das outras crianças, a menina olha fixamente para uma árvore e decide subir. Momentos depois, Ruth conta a uma amiga: “Parece que Sally subiu numa árvore na escola. Talvez para chegar perto de um pássaro. Ela sempre fazia isso com Alex [o pai]. Um menino fez o mesmo, mas acabou caindo e quebrando o braço. Quando cheguei, estavam todos nervosos porque Sally não quis falar com eles”.
O que ninguém conseguia entender, é que a menina buscava no silêncio das coisas, o acolhimento do pai. Assim, um dia, com o auxílio das cartas de baralho, Sally constrói uma escada em espiral: no alto, no topo do berço da lua, lá estava ela, reinando no mundo interior da menina, a carta do tarô, a destruição representada pela Torre ou a Casa de Deus.
No alto desse imenso castelo de cartas, repleto de símbolos e significados do mundo interno de uma criança, descansa o pai sagrado. Na longa jornada de silêncio e dor, contemplando a lua, subindo em troncos, telhados e árvores, Sally finalmente alcançou o berço da lua.
14 de agosto de 2016, Dia dos Pais – E, lá no alto, “Ele” descansa, espera pelo momento em que todos os galhos de todas as árvores da vida me levem para o silêncio das palavras e, daí, quem vai se importar com os malditos tempos verbais?