1915 – 1978
Denise Sant´Anna, em seu livro Corpos de Passagem,[1] escreveu que um sentimento que se torna mais intenso na velhice, é a “a falta de si mesmo”. Talvez, diz ela, “entre as saudades mais duras estejam as saudades de si mesmo, quando jovem”. Essa saudade e muitas outras, que são intensamente sentidas e muitas vezes camufladas na velhice, vieram à tona nas apresentações da peça “Orlando Silva, o cantor das multidões”,[2] no SESC Vila Mariana, em São Paulo, até o final de fevereiro último.
Maria Dusolina Rovina Castro Pereira
Não foi só mais um musical: usando a metalinguagem, o grupo contou a história de Orlando Silva, conhecido como O Cantor das Multidões. Foi o artista mais popular nos anos 30, época em que o rádio ainda engatinhava. Ele se tornou tão popular que em alguns lugares se decretava feriado para o povo poder vê-lo cantar. Mas isso não durou a vida toda, ele também vivenciou em carne e osso o drama do esquecimento do público e problemas com drogas e álcool.
Seus altos e baixos, de menino pobre e manco em razão de um acidente de bonde onde perdeu três dedos do pé à rápida passagem ao estrelato na Rádio Nacional; sua amizade com Francisco Alves, seu descobridor e fã; a dependência do álcool e da morfina; tudo foi contado entre canções inesquecíveis, em pouco mais que uma hora de espetáculo.
Logo na entrada percebia-se que a platéia não era comum: a grande maioria há muito passara dos 60 anos. Bengalas, muletas, andadores, cuidadores e cadeiras de rodas era lugar comum entre os presentes.
Abrem-se as cortinas e inicia-se o espetáculo. E logo vem a primeira canção: Curare. “Você tem buniteza…. você é diferente dessa gente que finge querer…” As fisionomias começam a mudar, se suavizam, e percebe-se um tímido e leve balançar de corpos nas poltronas.
A peça continua com um dos maiores sucesso do cantor Lábios que beijei. “Nada tu ouviste e logo partiste para os braços de outro amor. Eu fiquei chorando… Dai lenitivo à minha dor”. Olhando ao redor, era possível perceber, mesmo na penumbra, olhares que voltavam ao passado, talvez encontrando na alma certa semelhança com a canção. Para os jovens presentes, o vocabulário causava alguma estranheza.
A história seguia, e logo duas marchinhas de Carnaval, Jardineira e Malmequer, trazem de volta a alegria ao espaço. Já não são idosos: são rostos mais alegres, descontraídos, em pessoas que ainda se percebem jovens na alma.
E aí vem de mansinho a melodia triste de Caprichos do Destino: “…. mas sinto uma revolta dentro do meu peito… jamais consegui um sonho ver concretizado… contra os caprichos da sorte é melhor não insistir…” . E os rostos se anuviam, se perturbam pela dor que emana da letra da música.
E, então, a música me atinge: Sertaneja. “… porque choras quando eu canto, se esse canto é todo teu…”. Sou eu quem volta no tempo, na casa dos fundos da Av. Manoel Conceição, em Piracicaba. Criança pobre, quase adolescente, sonhando com alguém que me amasse e “construísse noutras terras um ranchinho pra nós dois ….”.
Lembro-me de Simone de Beauvoir que disse que “é o passado que define minha situação atual e sua abertura para o futuro”.[3]. De acordo com ela, é através do passado que eu me projeto e, para continuar a existir, tenho que ultrapassá-lo. De qualquer maneira, ele é parte de mim e caminha comigo.
Mais alguns minutos e diálogos e, ao som dos primeiros acordes, há um movimentar generalizado nas cadeiras. Ninguém resiste a cantarolar baixinho, Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro.
Para alegria de todos, “Orlando Silva” diz:
– Podem cantar. Cantem alto.
E aquela platéia, que agora já se fez jovem, responde ao convite. Um grande coral se forma de improviso, mas não desafina. As faces estão iluminadas por uma luz que vem da alma. Ou será do passado?
Os atores se revezam e se juntam no palco e a platéia é a mais atenta que já vi. Há momentos em que parece que irão interagir com os atores, transformando as cenas e o cenário em um fragmento do passado vivido, sonhado, realizado.
Nada além, nada além de uma ilusão… A canção fala de alguém que, por temer o amor, prefere a ilusão do amor. Será??? Olhinhos que brilham nas muitas faces enrugadas, parecem desdizer a letra.
Novamente sou atingida em cheio, Aos pés da Santa Cruz. Essa traz de volta minha mãe, com sua voz bonita, cantando baixinho para que os vizinhos não ouvissem, enquanto lavava as louças ou areava os alumínios que, de tão brilhantes, quase podiam ser usados como espelhos. Saudade desse tempo. Saudade e pena da minha mãe. Em seus poucos momentos de alegria, ela gostava de cantar, mas só o fazia baixinho porque não acreditava que pudesse ou merecesse ser feliz depois de ter visto morrer um filho de apenas 6 anos. Saudade da minha mãe e da minha infância. Saudade da música. Saudade de mim. Impossível bloquear algumas lágrimas teimosas, até que Abre a janela formosa mulher faz vibrar a platéia.
Era quase possível perceber ali antigas professorinhas que começaram suas carreiras em escolas rurais por esse Brasil, que moraram em pequenas cidades próximas e ali encantaram corações. Quantas delas haveria na platéia? Quantas daquelas formosas mulheres receberam serenatas? Quantos amores ficaram para trás???
“Que saudade, nesta solidão… longe dos olhos e perto do meu coração…” Longe dos olhos traz em sua letra o que muitos deles sentiam ou sentiriam ao sair dali.
Não podemos segurar o passado em nossas mãos; não podemos alterar as marcas que o tempo causa em cada um de nós e, evidentemente, não falo apenas da parte física que hoje pode ser melhorada até o final dos nossos dias. Falo das cicatrizes em nossa alma, das contribuições para a formação da nossa personalidade, dos fatos e lembranças que compõem a história de uma vida.
A cada perda de alguém que nos é querido, percebemos que há um esgarçado, um rasgado, uma ruptura em nosso passado, mas ele continua conosco. E é com essa colcha cheia de remendos e cerzidos que nos envolvemos todas as noites.
Talvez em certos dias, ao olharmos para o espelho, tenhamos alguma dificuldade em reconhecer naquela imagem o que fomos, mas naquele dia, na saída do espetáculo, não precisamos de espelho. Com maior ou menor vivência com as músicas e com a época, com maior ou menor intensidade, olhamos para dentro de nós, nos reencontramos com nossa história e com nossa alma e sentimos uma profunda saudade de nós mesmos.
Nessa saudade intensa, por vezes doída, uma certeza: a de termos vivido momentos maravilhosos que merecem ser lembrados, revividos e compartilhados.
Principais sucessos de Orlando Silva:
A jardineira, Benedito Lacerda e Humberto Porto, 1938
A última canção, Guilherme Augusto Pereira, 1937
A última estrofe, Cândido das Neves, 1935
Abre a janela, Arlindo Marques Jr. e Roberto Roberti, 1937
Alegria, Assis Valente e Durval Maia, 1937
Amigo leal, Benedito Lacerda e Aldo Cabral, 1937
Aos pés da cruz, Marino Pinto e José Gonçalves, 1942
Atira a primeira pedra, Ataulfo Alves e Mário Lago, 1943
Brasa, Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, 1945
Capricho do destino, Pedro Caetano e Claudionor Cruz, 1936
Carinhoso, Pixinguinha e João de Barro, 1937
Chora, cavaquinho, Dunga, 1935
Curare, Bororó, 1940
Errei, erramos, Ataulfo Alves, 1938
Lábios que beijei, J. Cascata e Leonel Azevedo, 1937
Mal-me-quer, Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar, 1939
Meu consolo é você, Nássara e Roberto Martins, 1938
Meu romance, J. Cascata, 1937
Nada além, Custódio Mesquita e Mário Lago, 1938
Número um, Benedito Lacerda e Mário Lago, 1939
Quando se pede a uma estrela, L. Harline e Z. Yaconelli, 1940
Rosa, Pixinguinha e Otávio de Souza, 1917
Sertaneja, René Bittencourt, 1939
Súplica, Octávio G. Mendes, José Marcílio e Déo, 1940
Juramento falso, J. Cascata e Leonel Azevedo, 1937
[1] SANT´ANNA, Denise Bernuzzi. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo, Estação Liberdade, 2001, p. 106
[2] Baseado no livro homônimo de Jonas Vieira; Texto de Antonio De Bonis e Fátima Valença; Direção de Antonio De Bonis; Direção musical de Marcelo Neves; Elenco: Tuca Andrada, Inez Viana, Marcello Caridade, Marcelo Vianna; Músicos: Marcelo Neves, Emílio Mendonça, Edson Ghilardi, Renato Consorte e Ulisses Rocha.
[3] BEAUVOIR, Simone. A Velhice: as relações com o mundo. Vol. II (trad. Heloysa de Lima Dantas). São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970, p. 111