Meus sonhos em um balão

Meus sonhos em um balão

A menina que perde o balão percebe seus sonhos triturados, mas percebe também que algo novo e diferente pode nascer com a contextualização de algo. Respiro fundo e resolvo colocar o ódio no lixo.

 

Coloquei meus sonhos em um balão e saí para passear. Eu era ainda muito menina quando notei que a vida real era muito mais complicada do que a vida que eu sonhava. E olha que tive uma infância pra lá de feliz por ter tido a sorte de crescer em um lar cercado de amor e afeto.

Morava em uma casa grande em um bairro tipicamente italiano aqui da cidade de São Paulo. O Cambuci de Alfredo Volpi sempre foi e sempre será o meu bairro do coração. Na porta da minha casa eu via o mundo acontecer com suas delícias e suas dores. Às quartas-feiras era o grande dia. Todas as crianças da rua se encontravam na Kombi do bolacheiro que gritava:

Chegou o bolacheiro chegou! É bolachas biscoitos e macarrão! Chegou o bolacheiro chegou com bolachas e biscoitos diretamente da fábrica!

Até hoje sonho com esses momentos repletos da mais pura alegria e agradeço imensamente por meus filhos também terem tido a oportunidade de conhecer o Seu Luiz bolacheiro.

Meus primos moravam na mesma rua e nós nos encontrávamos em frente às delícias vendidas naquela Kombi recheada. Quarta-feira era o dia de escolher o doce favorito e de comprar as balas de hortelã para o baleiro de porcelana do meu pai.

Mas a vida nem sempre era doce por ali. Com minha mãe aprendi a não fechar os olhos para os menos favorecidos e com ela, alimentávamos quem passava por lá com fome e, vez ou outra, eu separava uma boneca para a Maria louca. Maria era uma adulta com problemas psiquiátricos que andava agarrada com uma boneca bem suja. Ela me instigava a pensar no que a vida teria feito com ela. Nunca pude entender.

Da janela do meu quarto eu avistava o mundo e talvez por dormir em uma cama dourada, ao invés de me sentir uma princesa, eu tinha certeza de que a vida deveria reluzir para todos, assim como reluzia para mim.

Era na cama dourada que aprendi a sonhar com um mundo socialmente mais justo e foi na cama dourada que cresci sonhando.

Na frente da minha cama havia uma enorme penteadeira com um espelho que ia de uma ponta à outra da parede. Nunca fui muito vaidosa mas aquele espelho parecia me mostrar o mundo que eu precisaria transformar em realidade. Foi sentada na banqueta em frente a ele que as imagens dos meus desejos iam se concretizando na minha mente.

No meu quarto eu tinha uma gaveta secreta e lá ficavam todos meus diários. Sempre gostei de registrar meus sonhos e tudo o que o mundo me fazia sentir. Obviamente, meu irmão secretamente lia tudo e eu, em segredo, gostava de compartilhar a menina que eu era com ele.

Um dia, perdi meu quarto com a cama dourada, perdi minha gaveta secreta e a minha grande penteadeira, mas nunca deixei de sentir a magia daquele quarto em mim.

Os meus sonhos tomaram uma dimensão imensa. Sonho com meu futuro e com minha velhice. Sonho com velhices decentemente vividas à minha volta em um país que respeite seus velhos.

Recentemente, meu filho me ensinou a gritar alto por meus ideais e com ele fui às ruas pedir um Brasil diferente. Nós dois juntos compartilhamos nossos desejos através da campanha política de um candidato que não foi para o segundo turno das eleições.

E eu, ao lado dele, me vi como aquela garotinha que saía para passear com seus sonhos em um balão esperando encontrar o melhor momento para lançá-los ao céu. Juntos, mãe e filho em passeata pedíamos dignidade social. Eu e ele gritávamos em nossos nomes, mas gritávamos pelas Marias Loucas que perambulam pelas ruas sem destino, gritávamos pelos meninos que passam fome e pelos velhos sozinhos com suas velhices miseráveis.

Gritávamos até perder a voz pensando nos idosos demenciados e no país que apaga suas memórias e incendeia sua cultura.

Percorríamos com passos firmes na passeata e eu, como a menina da cama dourada que via o mundo que desejava pelo espelho da penteadeira, gritava por este mundo ao lado do meu filho que com o olhar conseguia me mostrar sua grandeza e humanidade.

Os sonhos eu carregava comigo como a “Menina com balão” da obra do inglês Banksy.

Pouco se sabe sobre o artista nascido em 1974. Alguns dizem se tratar de um grupo de pessoas, mas as obras de Banksy, sempre mobilizadoras, encontram-se espalhadas pelas ruas da Inglaterra, França, Espanha, Estado Unidos e até na faixa de Gaza.

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Irônico, sarcástico, irreverente e polêmico, suas obras são feitas na rua e para a rua. Ninguém sai ileso ao que ele nos transmite e sua arte é assim exposta para “confortar o perturbado e perturbar o confortável” segundo ele que faz questão de deixar seu trabalho sofrer a possibilidade de vandalismo e os efeitos do tempo.

Em 2002, em South Bank, ele cria o mural da “Menina com balão”. Trata-se de um grafite que mostra uma menina que perde seu balão em formato de coração.

Será que neste balão estariam seus sonhos?

Ao lado da ilustração feita em preto e branco com apenas a cor vermelha do coração em destaque, está escrito “There is Always hope” (“Sempre há esperança”). Esta é sem dúvida a obra mais conhecida de Banksy. Feita em estêncil, esta obra já foi replicada inúmeras vezes.

Recentemente, neste 5 de outubro, a sua obra ganhou os holofotes do mundo ao ser arrematada em um leilão da Sothesby por cerca de um milhão de libras e se autodestruir logo após a sua venda para espanto de todos os presentes.

O artista diz que ninguém da casa de leilões sabia que dentro da moldura havia sido instalado um triturador de papel que pode ser acionado assim que a obra foi arrematada.

Através de uma citação do pintor espanhol Pablo Picasso: “A necessidade de destruir é também uma necessidade criativa” feita pelo artista nas redes sociais, a performance de Banksy se transformou, em um instante, em história da arte mundial já que esta é a primeira vez que um novo trabalho de arte é criado durante um leilão. Após a intervenção do artista, a obra passou a se chamar “Love is in the bin”, ou, em português, “O amor está no lixo”

Estima-se que a obra pode, depois do ocorrido, ter dobrado seu valor.

Quanto aos meus sonhos, neste instante continuo tendo um pacto com meu filho. Jamais deixaremos de compartilhar nossos desejos que, unidos, ficaram fortalecidos em nós mesmos.

Já meu país e suas velhices correm o sério risco de se perderem na imensidão do ódio demonstrado até então e que se não for modificada, nos levará a um caminho sofrido. Velhos e velhas, o risco é grande, mas como oposição não deixaremos as velhices serem ainda mais trituradas. O ódio foi o protagonista destes tempos. “Love is in the bin”, (“O amor está no lixo”) mas perto do balão dos sonhos o dizer: “Sempre haverá esperança” parece querer nos dizer algo. Sempre.

Beijo meu filho e agradeço por tudo que aprendi. Ao lado dele encontro a menina da cama dourada. Ao lado dele continuarei militando meus sonhos por novas maneiras de viver as velhices.

A menina que perde o balão percebe seus sonhos triturados, mas percebe também que algo novo e diferente pode nascer com a contextualização de algo.

Passos firmes nesta passeata sem fim pelo caminho justo. A sociedade precisa se unir para envelhecer na merecida calmaria.

O olhar do meu filho jamais sairá da minha mente. Percebo que minha cama dourada reluziu em seus sonhos.

Sonhos momentaneamente triturados mas que com tanta humanidade, certamente serão recompostos numa esperança que não se finda. Pelas Marias, pelo bolacheiro, pelo velho da banca, pela velha abandonada, pelos velhos demenciados.

Respiro fundo e resolvo colocar o ódio no lixo. “The hate is in the bin”.

A menina perde o balão mas jamais perderá a esperança.

Aliviada sigo sonhando na cama dourada.

Saiba mais
https://www.culturagenial.com/obras-banksy/
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/banksy-planejava-picotar-o-quadro-menina-com-balao-todo-mas-so-cortou-metade.shtml

 

Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemorias.art.br E-mail: [email protected].

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Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemorias.art.br E-mail: [email protected].

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