E aos 90 anos, “saudável”, otimista apesar de tudo, humilde sobre suas conquistas – “tive muita sorte” –, Zuenir Ventura, o Mestre Zu do jornalismo brasileiro, encontra espaço para agradecer à vida.
Por Marcello Rollemberg (*)
Uma cidade: Rio de Janeiro. Um endereço: Avenida Brasil, 500. Ali, em meados dos anos 1980, em um prédio alto, que se destacava na paisagem próximo à zona portuária carioca e com vista para a Ponte Rio-Niterói, estava um jornal. Na verdade, o jornal – o Jornal do Brasil, que naquela época estava longe de ser mais um, de ser qualquer um. Mesmo engolfado por uma crise financeira que vinha de anos – e que, mais tarde, levaria ao seu fechamento como o conhecíamos, transformando aquele edifício icônico em um esqueleto de concreto e as novas versões do periódico em um ectoplasma do que ele foi –, o Jornal do Brasil reunia o que de melhor poderia se desejar no jornalismo nacional.
Por sua – hoje impensável – ampla redação, corriam atrás de pautas, discutiam reportagens ou simplesmente esperavam ansiosamente passar o carrinho do café para jogar um pouco de conversa fora nomes como o cronista João Saldanha, o então diretor de redação Marcos Sá Correa, seu pai, o grande repórter de política Villas Boas Correa, a editora de Economia Miriam Leitão, o subeditor do Caderno B (o histórico caderno de cultura do JB) Arthur Xexeo – esses dois, hoje pontificando nos telejornais da GloboNews – e tantos outros, que fizeram a fama do jornal da Condessa Pereira Carneiro. E havia Zuenir Ventura, editando com brilhantismo o Caderno B com o hoje ambientalista Paulo Adário e criando o Ideias, um exercício de crítica literária e cultural que causou furor à sua época.
Zuenir Carlos Ventura, nascido na mineira Além Paraíba, como está na carteira de identidade. “Mestre Zu”, como o tratavam com um misto de respeito e carinho seus muitos pupilos – entre os quais, com orgulho, me incluo. Ou, simplesmente, Zuenir, este jornalista com cerca de sete décadas de carreira e que, no dia 1º de junho, completou 90 anos de uma vida ética, generosa e com uma modéstia que alguém com o ego inflado e que tivesse metade de seu currículo teimaria em refutar.
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Mas Zuenir mantém seu ego bem adestrado e sob controle. Porque ele não precisa bater no peito e falar de si na terceira pessoa, como muitos tolamente até tentam fazer, em crise extrema de mitomania. Porque todos que conhecem a história recente brasileira – e aqueles que acompanham a história do jornalismo no Brasil – sabem o que Zuenir Ventura representa, graças a reportagens de fôlego como a cobertura do assassinato de Chico Mendes, ou livros emblemáticos como Cidade Partida, sobre a tristemente célebre chacina de Vigário Geral, e o clássico 1968, O Ano Que Não Terminou – sobre um período histórico nacional que hoje parece reverberar mais do que gostaríamos.
Neste livro, Zuenir narra, de forma pessoal, como testemunha ocular dos fatos que aconteciam enquanto o furacão do AI-5 se formava, a resistência à ditadura e os intensos debates das esquerdas em relação às formas de luta contra o regime. O movimento estudantil, a opção pela luta armada e a resistência dos artistas também recebem destaque especial, assim como momentos históricos, como a morte do estudante Edson Luís ou a Passeata dos Cem Mil. Zuenir foi um observador e ator privilegiado de todos esses eventos e, depois do AI-5, o ano para ele não terminou – pelo menos não como deveria. A primeira edição do livro, com 10 mil exemplares e lançada em 1988, esgotou em uma semana.
Todas as homenagens recebidas pelas nove décadas de vida de Zuenir foram mais do que justas, com reportagens especiais, entrevistas, recordações de sua carreira. A todas, o jornalista agradeceu com a voz mansa e tranquila que o caracteriza. Na sua coluna em O Globo, ele escreveu, mesclando a alegria do aniversário com a preocupação social desses tempos bicudos. “Até aqui, tudo bem. Ou quase. Porque acho que só comigo vai tudo azul, como diz a canção de Caetano. Do ponto de vista pessoal, não tenho do que me queixar”, escreveu ele. “Só nos últimos dez dias, além das lives, dei mais entrevistas que no ano inteiro. Se eu soubesse que receberia tanto carinho, teria feito [90 anos] antes”, incorporando ao texto uma outra característica sua – o humor fino, delicado, que escorrega entre as vírgulas.
Este humor e sua elegância no trato com as pessoas são marcos que ele sempre apresentou no cotidiano do JB – e também nas tantas outras redações onde trabalhou, como chefe ou como repórter, como nos finadíssimos Tribuna da Imprensa e Diário Carioca e nas revistas IstoÉ e Visão. Ele era uma ilha de tranquilidade em meio ao burburinho nervoso da redação, naqueles tempos de telefones tocando, máquinas de escrever matraqueando e pessoas falando alto – muito alto.
Hoje, com a assepsia silenciosa das redações, isso parece com coisa, sei lá, do século passado. E é mesmo. Mas voltemos ao rebuliço daquela redação em meados dos anos 1980. Nem em meio àquela saudável e criativa bagunça a voz de Zuenir se alterava. Continuava em um semitom baixo, pausado, como se o mundo além daquelas mesas do Caderno B não importasse – só que importava muito, e ele sabia bem disso. Mas mantinha o tom.
Escrevi aqui neste mesmo Jornal da USP, à época dos 80 anos de Fernando Gabeira, que o hoje colunista de TV falava como “um monge sábio”. Mantenho o comentário. Mas acrescento mais um: nesse caso, Zuenir, até por uma questão cronológica, é um sumo sacerdote sábio e tranquilo, que eu nunca vi alterar a voz nos quase dois anos de convivência intensa e de muito aprendizado.
“Doce vampiro da juventude”
Porque sempre houve também nele algo de professoral no trato diário dos fechamentos. Não à toa, já que Zuenir foi por muito tempo professor de Comunicação na graduação e na pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – a mesma UERJ que um deputado estadual, sabe-se bem a razão, propôs recentemente extinguir. E na redação Zuenir Ventura ensinava o fazer jornalístico de qualidade o tempo inteiro e sempre com respeito e com palavras de incentivo, não importava se eram jornalistas experientes ou gente em começo de carreira. Mestre Zu em ação. E ele gostava de se cercar de jovens repórteres – como já disse aqui, eu era um deles. O então cabeludo Arthur Dapieve, também.
Zuenir parecia se nutrir daquela energia jovem, intensa e às vezes a esmo, e que precisava de um condutor para canalizá-la e transformá-la em boas reportagens. Ele dava o foco e aplaudia o resultado. A convivência com os mais novos era tanta que muitos colegas, em tom de brincadeira, chamavam Zuenir de “doce vampiro da juventude”.
Mas ele sabia lapidar o que encontrava e dava as asas necessárias para a criação. Foi daí que surgiram páginas memoráveis no Caderno B (nas quais os repórteres tinham até a licença de “dialogar” com as matérias dos colegas-amigos) e no Ideias, que causava inveja em outras editorias e nos jornais concorrentes. Bons e educativos tempos, com aprendizagens que se leva para uma vida inteira.
Gracias a la vida
Mas esse não é um texto de reminiscências pessoais – o fato é que Zuenir é marcante na biografia de todos que conviveram com ele. Porque chefiava ensinando. E entre seus ensinamentos estava o de ser sempre repórter, pensar e agir como tal. E foi justamente como repórter que ele cobriu o assassinato de Chico Mendes – como já foi dito aqui e que o levou a abrigar em sua casa, indo contra todos os manuais de redação, uma testemunha de 13 anos – e a primeira Caravana da Cidadania, comandada por Lula em 1993.
Foram trabalhos assim, junto com os seus livros – um deles, Minhas Histórias dos Outros, que ele chama de “alterbiografia”, acaba de ser relançado –, que o levaram a assumir, em março de 2015, a cadeira número 32 da Academia Brasileira de Letras, a mesma que havia sido de Ariano Suassuna. Talvez nem precisasse – a imortalidade se conquista por outros caminhos, e Zuenir os conhece como poucos –, mas o fardão lhe caiu bem.
E, ao mesmo tempo que saboreia os ventos nonagenários, Zuenir continua praticando suas habilidades. Uma, a generosidade, como já foi dito aqui: no dia em que publicou sua coluna falando de seu aniversário, ele encontrou espaço para uma homenagem a Milton Coelho da Graça – outro dos grandes jornalistas de sua geração –, que morreu recentemente: “Ele foi o melhor exemplar da minha geração, o mais combativo”.
Capa do recém-reeditado livro Minhas Histórias dos Outros: “alterbiografia” do Mestre Zu – Foto: Reprodução
E, ao mesmo tempo que saboreia os ventos nonagenários, Zuenir continua praticando suas habilidades. Uma, a generosidade, como já foi dito aqui: no dia em que publicou sua coluna falando de seu aniversário, ele encontrou espaço para uma homenagem a Milton Coelho da Graça – outro dos grandes jornalistas de sua geração –, que morreu recentemente: “Ele foi o melhor exemplar da minha geração, o mais combativo”.
Uma outra habilidade é o olhar sensível e arguto sobre a realidade brasileira, um toque de civilização tão necessário. “O Brasil atravessou anos dourados, rebeldes e anos de chumbo. Hoje, eu diria que vivemos anos descarados, com a hipocrisia se impondo em meio à terrível sensação de impunidade total. O cinismo é declarado e nem durante a ditadura militar vi um deboche tão grande pela vida humana”, disse ele ao Estado de S. Paulo.
Mas, apesar dessa situação amarga, Zuenir Ventura – já devidamente vacinado contra a covid-19 com as duas doses, frise-se – não se abate. Ele prefere se manter otimista. E aos 90 anos, “saudável”, otimista apesar de tudo, humilde sobre suas conquistas – “tive muita sorte” –, Zuenir Ventura, o Mestre Zu do jornalismo brasileiro, encontra espaço para agradecer. Em espanhol, entoando com sua voz mansa, vez por outra, Gracias a la Vida, de Violeta Parra. Mas é a vida quem deveria agradecer.
Foto destaque: jornalista Zuenir Ventura (Mestre Zu) – Foto: Alice Vergueiro
(*) Marcello Rollemberg – Escreve para o Jornal da USP, publicada em 04/06/2021.