Menino veste azul e menina rosa… e, na instituição, que cor eles vestem?

Menino veste azul e menina  rosa… e, na instituição, que cor eles vestem?

M.G., você se foi, mas deixou em mim um aprendizado que estarei levando adiante na minha prática com idosos, o de respeito, tolerância e acolhimento a todas as velhices, na instituição e fora dela.


São tantas as definições e discussões hoje sobre a questão de gênero, ser homem ou mulher, heterossexual, bissexual, homossexual, gays, lésbicas, travestis, transexuais,  transgêneros, intersex e o que mais existir e desejar ser, ou seja lá o nome que é utilizado para definir a expressão de quem nós somos.  Mas o que estamos tentando falar são formas de existência que fogem a uma pseudo normalidade, ou naturalidade como algumas pessoas buscam colocar.

O que é normal? O que é natural?

Podemos definir como normal algo que corresponde a norma, e a norma é algo construído pelo social e até mesmo podemos dizer pelo imaginário. Quando falamos de gênero, pode fugir a norma heterossexista. Nem sei se existe esta palavra, mas o que quero dizer que é tudo que não heterossexual. Natural ou naturalidade, também é uma definição baseada em estatísticas, que considera normal o que corresponde a uma maioria. Sendo assim, tudo que é diferente desta norma ou naturalidade é encarado com desprezo e indiferença pela maioria, não levando em conta o desejo e o prazer de cada um. Sendo assim não acredito que nenhuma destas definições que tratam a existência de nós humanos, muitas vezes desumana e violenta. Como podemos dizer que a relação com o desejo e o prazer não são naturais, uma vez que são expressões de uma existência.

Ser diferente na sua escolha do objeto que nos dá prazer e desejo, na maioria dos casos é um ponto de discriminação, exclusão e recusa que pode acompanhar o indivíduo ao longo da sua vida, da infância à velhice, e como podemos ver recentemente até a morte, como é o caso da mulher que viveu como Lorival toda a sua existência, não sendo possível ser sepultada como sempre viveu, com uma identidade masculina, por ter a marca de outro sexo em seu corpo, que ocupa as páginas dos jornais.

Parando para pensar, como deve ter sido a vida deste homem, escondendo-se do mundo na tentativa de ser o que sua existência demandava.

Já estava pensando em escrever sobre este tema, e a sua relação com a velhice, pois há muito tempo venho querendo trazer um personagem à cena, que marcaram minha trajetória profissional na Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e na vida, sendo fonte de ensinamentos. Ensinamento este de que seja lá a trajetória de desejos e prazeres que os marcaram ao longo da vida, vai estar junto também na velhice.

Escrever sobre como é a vida na instituição de longa permanência para idosos dos que tiveram outras formas de desejo sexual ao longo da vida e chegaram à velhice, é um desafio, pois estes já são marcados como locais de exclusão social, isto se agrava quando falamos de homossexualidade.

O caso de M.G.

M. G. era um homem alto, loiro, de porte atlético, elegante e educado que chegou à instituição jogando na cara de todos sua sexualidade, não escondendo sua opção de prazer e desejos ao longo da vida. Sentia atração e desejo por outros homens, era gay assumido. De modos delicados, mas muito elegante, volto a ressaltar, surgiu na cena da ILPI como uma bomba para todos, residentes (outros idosos) e profissionais. Nos profissionais conhecíamos outros idosos onde haviam suspeitas de serem gays, mas que buscavam manter discrição, camuflando seus desejos. Como diz minha amiga blogueira Christiane Pomeranz, estavam em seus armários, trancados em suas existências, talvez com medo da rejeição das pessoas, idosos e profissionais que lá estavam.

M.G., jogava na cara de todos de forma escancarada o que era, gay, e assumia isto a todo istante.  

Não preciso dizer que imediatamente a reação dos outros idosos que moravam na instituição foi de recusa em ter junto, vivendo e dividindo os espaços, alguém que para eles representava uma anomalia, mas que o único “defeito” era o de ter seu desejo e prazer fora da “norma”.  

M.G., quando procurou a Instituição estava com 68 anos de idade. Tinha uma irmã, Sra. T., viúva, doente, com quem mantinha pouco contato. Ela encontrava-se centrada nos problemas de saúde que tinha e não apresentava condições emocionais para ajudar o irmão.  Antes de sua admissão na ILPI,  era acompanhado desde a década 1960 (devido a problemas de saúde graves e adaptação social, em consequência de sua saúde precária) por uma Instituição judaica que fornecia todo tipo de assistência a ele.  Sempre residiu sozinho. No decorrer do tempo em que esteve assistido por esta instituição judaica passou por um sem número de cirurgias, tratamentos hospitalares e ambulatoriais.  Chegou a ficar numa ILPI para recuperação, visto não poder cuidar-se sozinho (na época a irmã recusou-se a cuidar dele, alegando não ter condições emocionais). Era portador de neoplasia de próstata com metástases ósseas e linfonodomegalias  retroperitoneas, nomes complicados para definir a doença que acometia M.G. , câncer de próstata que atingiu os ossos.

Com o quadro da doença agravando-se, M. G. não desejava e não devia mais viver sozinho em virtude da necessidade de cuidados.  Como era de origem judaica, e com a situação de fragilidade que se encontrava, manifestou o desejo de ingressar, desde logo, na ILPI visto necessitar de convívio social e proximidade com sua cultura.  Estes dois motivos, convívio social e proximidade com a cultura, posso dizer que para conseguir, teve que lutar muito, pois a comunidade de idosos da instituição manifestava sua rejeição descaradamente, e a proximidade com a cultura trazia nele lembranças duras da infância.

Foram quase 2 anos de convivência com M.G., de muita intensidade. Como meu trabalho era direto com o grupo de idosos da instituição, ao perceber a rejeição, busquei incluí-lo ao grupo, que não aceitava pelo simples fato de ser gay. Sendo o grupo “uma vergonha para a comunidade”.  

No restaurante onde os idosos faziam as refeições, podíamos observar nas mesas os amigos e pares que desfrutavam juntos este momento, mas M.G., sempre sozinho, não era aceito por nenhum deles. Costumava fazer suas refeições solitário e ainda sobre os olhares e murmurinhos dos outros idosos.  No jardim e nas atividades de lazer os pedidos eram, “tira esta aberração de perto de mim”, “me recuso a sentar próxima a este veado”, “por que temos que conviver com este tipo de gente?”. Eram senhoras e senhores, cabeças brancas, de caminhar lento e que também como M.G. necessitavam de cuidados. Eu me perguntava, como eles não entendem que antes de qualquer coisa, M.G. também precisa de cuidados, que como eles, a velhice pesava em seus ombros, ainda mais amplificado pela doença.

Não sei como, mas quando vi, estava totalmente envolvida com M.G., talvez buscando compensar este isolamento imposto a ele pelos outros idosos da instituição.

Na infância, seus pais de origem russa, viviam, como os imigrantes judeus que chegavam a São Paulo, no Bairro do Bom Retiro. Perdeu a mãe quando tinha 6 anos, agora não me recordo o motivo, mas segundo ele, um trauma que o acompanhou a vida toda. Pai, severo, não aceitava a sexualidade do filho, que desde muito pequeno já demostrava, através de gestos e comportamentos sua escolha de desejo e prazer.

M.G. contava com os olhos marejados, quantas vezes seu pai o agrediu, só porque sua voz era mais fina, seus gestos delicados. Que os amigos do pai aconselhavam seu pai a bater nele, falando em idishi  “bate nele que vira homem” (língua utilizada pelos judeus do leste europeu), que isto o tornaria um homem.  Lembro como se estivesse ouvindo ele falar, “os amigos do meu pai gritavam, bate nele, assim ele vai virar homem e deixar de falar fino e ter modos de mulherzinha”. Mas ela era um homem, só que delicado e doce, seu prazer estava com outros homens.

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Diante destas vivências de discriminação, violência e rejeição, M.G. tornou-se um homem “ácido” e “sarcástico” em um primeiro momento para quem o conhecia. Às vezes ficava nervoso e gritava com todos, uma reação que eu, como psicóloga, entendia como uma forma de defesa diante de um mundo de violência para com aquele indivíduo que experimentava desde seu nascimento, cujo único pecado foi estar fora da norma sexual desejada pela sociedade na qual vivia, já que nasceu com um órgão masculino e um desejo considerado feminino.

Todos os dias, M.G. chegava à minha sala e lá ficava, toda manhã, ao meu lado. Eram longas conversas, que até impediam que eu cumprisse algumas obrigações do trabalho. Mas com sua fala me levava a uma viagem no tempo, tempo onde ser gay era um crime para a sociedade até o movimento do final dos anos 70 nos EUA onde a luta LGBT inicia sua busca por reconhecimento social e político.

M.G. viveu tudo isso. Esteve nos EUA, em São Francisco nos anos 70, quando a comunidade gay americana inicia um processo de organização e de luta por reconhecimento e igualdade. Das grandes festas regadas de champanhe e lindos homens de corpos sarados e belos, ainda não assombrados pela AIDs. Era, segundo ele, um momento de liberdade e como dizia de “libertinagem”, no melhor sentido da palavra.

Foram 7 longos meses, todos os dias ao meu lado, com histórias de dor, sofrimento, prazer e alegrias. Falava dos homens que amou e dos que apenas teve prazer. Como uma “cartase”, enquanto a doença avançava, mesmo com dores, buscava refúgio ao meu lado e nas suas memórias.

Tenho muitas histórias vividas com ele, que poderia escrever longos textos, mas aqui relato algumas, de alegrias, dor e sofrimento.

Em uma destas vezes que vivemos juntos algumas histórias, de alegria e cumplicidade. 

Na sua vida, M.G. sempre gostou de glamour e sofisticação, tomando champanhe e comendo caviar, coisa que não havia na instituição e que agora com a doença ficava cada vez mais difícil. Um dia, já debilitado pela doença pediu que fizéssemos uma reunião com alguns amigos para despedida, já que sentia a morte aproximando-se.

Mas a rejeição e discriminação não era apenas dos idosos, mas também de alguns profissionais, mesmo que tentassem manter uma certa discrição, em alguns momentos se manifestavam, dizendo “este veado enche o saco”, “suas histerias não dá para aguentar”. Às vezes evitavam atende-lo, dando uma desculpa qualquer.

Como M.G. tinha dores muito intensas, foi implantado uma bolsa com substância com morfina, no abdômen, para quando ele tivesse dor apertar e uma dose seria jogada no organismo, aliviando-o. Ele estava acostumado a fazer uso de uma clínica oncológica, responsável pela prescrição desta droga que ficava na bolsa e que era reabastecida mensalmente. Durante muito tempo frequentava a clínica, que segundo ele, havia acertado na manipulação da droga, dando segurança a ele.

Esqueci de mencionar que M.G. chegou à ILPI onde trabalhava como um social, assistido pela comunidade judaica, não pagando nenhuma das suas despesas que eram custeadas pela comunidade. Por que estou relatando em detalhes esta parte da vida de M.G.? Porque o médico da ILPI era o responsável na liberação de recursos para que M.G. pudesse continuar fazendo uso dessa clínica e assim poder ter a droga que o aliviava da dor.

Certo dia, com uma desculpa de redução de custos, o médico proibiu que ele voltasse à clínica para a obtenção da droga, obrigando-o a fazer uso de outro local mais barato, mesmo que o resultado de alívio de sua dor não fosse igual da que ele estava acostumado.  M.G. argumentou, gritou e bravejou, mas não foi atendido. Acabou indo para a clínica escolhida pela instituição, aceitando fazer uso de outra droga, que não tinha a mesma eficácia da anterior, deixando-o exposto a episódios de dor intensa e sofrimento. Era evidente que o médico recusou-se a atender às súplicas de M.G., não por uma questão de custo, já que a diferença não era tão significativa, mas como um castigo por ele não ser o que esperavam dele, que era ficar quieto e aguentar todo o sofrimento calado.

Acompanhei todo o processo de agravamento da doença, que o enfraquecia a cada dia. Quando chegou à IPLI, ia andando para a minha sala e, depois de quase dois anos, já bem fraco, com a morte o rondando, já de cadeiras de rodas, ainda vinha todos os dias para conversarmos. A dor, o sofrimento, o medo da morte, as coisas que não fez, os amores que viveu, a solidão, a existência sem o colo da mãe, a ambiguidade de amor e ódio pelo pai, a rejeição da única irmã… M.G. trazia tudo isso na sua fala e, eu, na escuta, ouvinte, me sensibilizava com a situação vivida por aquele sujeito, que talvez se não tivesse como desejo outros homens ao longo da sua existência teria uma outra história.

M.G. ficou até o fim na instituição, e em seu leito de morte, em uma das visitas que fiz a ele, o mesmo pedia para eu tentar interceder junto aos médicos, para que ele não morresse, pois sentia que a morte estava próxima. Diante da minha impotência frente a morte, buscava consolar sua angústia, estando próxima a ele, acolhendo e amparando seu sofrimento. Foram quase 4 meses assistindo M.G., vendo-o morrer um pouco a cada dia.

Ele morreu em um domingo e em seu sepultamento eu estava lá, ainda a seu lado.

Até hoje, quando lembro dele, meus olhos se enchem de lágrimas e penso como a vida dele teria sido diferente caso não fosse gay, além de me perguntar por que tanto sofrimento apenas por que seu desejo estava fora da norma?

Há pouco tempo, a ONG Eternamente Sou, um local que trata de assuntos LGBT (ou LGBTTT – sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, que consistem em diferentes tipos de orientações sexuais) e velhice – que tem à frente jovens que já vivem uma outra realidade, diferente de M.G. – procurou o apoio da minha empresa para seus eventos que abordam este tema e que abracei imediatamente e que me remeteram à situação de sofrimento e discriminação vivida pelo público LGBT nas instituições, de assistência e saúde, apenas pelo fato de estarem fora da caixinha, das normas de sexualidade vigentes.

M.G., você se foi, mas deixou em mim um aprendizado que estarei levando adiante na minha prática com idosos, o de respeito, tolerância e acolhimento a todas as velhices.

VIVA M.G, VIVA! Viva em mim e nas ações dos jovens e velhos LGBTs que lutam incansavelmente pelo reconhecimento e respeito social.

Margherita de Cassia Mizan

Margherita de Cassia Mizan – Psicóloga com Especialização em Teoria Psicanalítica-PUCSP, Terapeuta sistêmica Casal e Família _ UNIFESP-SP, Especialista em Gerontologia Hospital Israelita Albert Einstein, Especialização em Psicogerontologia – Instituto Gerações, Mestre em Gerontologia Social PUCSP, com quase 14 anos de trabalho em ILPI, referência na cidade de São Paulo. Idealizadora da Empresa Senior Services Gestão e Cuidado a Idosos, com 6 anos no mercado. Email: [email protected]

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Margherita de Cassia Mizan – Psicóloga com Especialização em Teoria Psicanalítica-PUCSP, Terapeuta sistêmica Casal e Família _ UNIFESP-SP, Especialista em Gerontologia Hospital Israelita Albert Einstein, Especialização em Psicogerontologia – Instituto Gerações, Mestre em Gerontologia Social PUCSP, com quase 14 anos de trabalho em ILPI, referência na cidade de São Paulo. Idealizadora da Empresa Senior Services Gestão e Cuidado a Idosos, com 6 anos no mercado. Email: [email protected]

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