Memória e sensações nos levam de volta ao passado, quase sempre. É o que Cony nos convida a fazer ao nos convidar a embarcar numa viagem para fora de nossa realidade, a um tempo / espaço vivido, em que se amou, sofreu, conquistaram-se pequenas glórias, e forjou-se o caráter de um homem, o próprio autor, o filho do herói diário, quixotesco e por isso mesmo grande. Uma história, trazida pela memória, na qual vemos um pouco da muita fragilidade humana e da busca que é de todos nós… com nossos truques e manias…
O Tempo parou. Entretanto, nunca o Tempo foi tanto tempo. Carlos Heitor Cony
Novembro de 1995. Rio de Janeiro. O cronista e escritor recebe um embrulho. Um envelope. Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão. Sem remetente. Ele reconhece a letra e o modo do embrulho. Seu pai era o remetente. Seu pai. Morto aos 91 anos em janeiro de 1985. Dez anos. Além do modo, da letra, o cheiro – o envelope tinha um cheiro – era o cheiro dele, de fumo e água de alfazema que gostava de usar. Recente, feito e amarrado há pouco, tudo no envelope o revelava: ele, o pai inteiro, com suas manias e cheiros.
Esse é o início de um quase romance, no qual, nas palavras do autor “personagens reais e irreais se misturam”, em que Cony, “quase” autobiografado, fala-nos de sua vida entrelaçada com a de seu pai, e nos leva por caminhos de quase realidade, quase sonho, uma reflexão sobre memória – realidade e ficção.
De início, a letra desperta no autor as primeiras lembranças de sua estada no seminário, parte tão importante em sua vida:
[…] se tudo era ele no papel, no barbante e no nó, havia a letra. Fosse eu cego, mergulhado na treva mais profunda da carne, bastaria passar a mão sobre ela para saber que a letra era dele. A mesma letra que vinha nos envelopes quando ele me escrevia para a fazenda do seminário…”. (CONY, 1996, p. 12)
Na sequência desta recordação reaparece, como em outras passagens ao longo da obra, misturada com ternura, a saudade, certa admiração, um travo de amargura:
[…] a rigor, nem precisaria abrir o embrulho para saber quem o enviava. Era ele. Ele mais uma vez e sempre, querendo ser útil e necessário, querendo agradar, mas conseguindo apenas embaralhar meu caminho – e digo ‘embaralhar meu caminho’ para ser isento comigo e delicado à sua memória”. ( p.11)
Essa sequência nos reporta às reflexões de Bergson (1990), quando diz que o passado se conserva independente no espírito e seu modo de existir é inconsciente (1). Toda a lembrança vive em estado latente e potencial, podendo ser chamada pelo presente a qualquer momento, em forma de uma imagem fugidia, uma música, um sabor, um odor.
Ao mergulhar a madeleine no chá e saboreá-lo, Marcel Proust (1992) descreve essa sensação fugaz: “invadiu-me um prazer delicioso, sem noção de sua causa” – que leva-o de volta ao passado ou, melhor, presentifica-o e, a partir desse instante, ele tentará, laboriosamente, reconstruí-lo. É diferente, mas não menos intensa a reação de Cony ao reconhecer, no pacote, seu pai: “sentia um calor estranho, a cabeça latejando, sentia até mesmo um início de suor na testa” (p. 11).
Como Proust chamado pelo sabor, Cony é imediatamente subjugado pelo odor “o cheiro” e vai, por meio dele, mergulhar lentamente no mar, ora revolto ora tranquilo, das recordações e que, como no movimento das marés, no fluxo e refluxo das águas, ora aproxima, ora afasta aquilo que no mar do passado havia sido lançado.
Durante a leitura desse quase romance, entre tantas “pistas” lançadas para o deslindar dessa quase-memória, sobressaiu o aspecto da memória chamada pelo odor. O odor é imaterial. Não se registra como a escuta. Não nos chama, pelo olhar, como uma foto. Não se materializa em uma música. É apenas uma lembrança, muito leve e tênue e que só existe, podemos assim pensar, na imaginação. Como a maior parte das lembranças é trazida pelos sentidos, pessoal, intransferível. O cheiro sentido pertence ao universo sensorial intransferível do autor, mistura de memória e imaginação, subjetivo – nada tem a ver com a realidade. No entanto, tão forte para despertar o passado.
Retomando as lembranças de Cony (1996, p.17), no trecho que se segue, surge novamente um cheiro, o de brilhantina, tornando presente os preparativos de sua ida para o seminário, onde permanecerá por 8 anos
[…] um cheiro vivo, mas distante da brilhantina que ele usava, um potezinho pequeno e redondo com bonito rótulo dourado… e ao sentir agora, tantos anos depois, esse cheiro de brilhantina, percebo que me incomodava aqui dentro outra lembrança também antiga e que tinha tudo a ver com ele”.
Esta lembrança traz outra, mais profunda e amarga,
[…] mas houve um problema – e como quase todos os problemas da minha vida – por culpa dele. Nem sequer me avisou que havia colocado, no pequeno baú… (com o enxoval do seminário) um pote de brilhantina igual a que usava… o pote de brilhantina causou escândalo […] era um emblema de luxúria, quase um pecado […] padre Cipriano que me apontou à execração pública – ‘Esse aí trouxe brilhantina’”. ( p. 20)
O trecho acima mostra claramente como a lembrança é chamada pelas sensações subjetivas, geradoras de imagens – do passado para o presente – que filtradas pelo próprio corpo, situa-o em relação ao momento atual vivido. Como afirma Bergson (1990, p. 125) “é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere a vida”.
Esses flashes do passado trazem, além da figura do pai, suas “técnicas”, manias e truques, uma nesga da sociedade da época. Resgate do Rio de Janeiro, capital do Brasil, na década de 30 a 40, da boemia, da vida tranquila, das casas com quintais, mas também da Revolução de 30, da ditadura de Vargas, da clandestinidade do pai e suas tentativas sempre malsucedidas de arranjar outro trabalho, que não o de jornalista que “fazia parte de seus truques interiores partir de uma realidade estéril para um sonho grandioso”. Lembrança marcante também do grupo que trabalhava na sala de imprensa da Prefeitura com o pai:
[…] essa gente toda reunida, tinha um cheiro específico, um cheiro que os acompanhava onde quer que se reunissem […] o cheiro dos rapazes da sala era impossível de ser confundido com qualquer outro cheiro […] De repente, todos estes fantasmas, todos estes mortos pareciam estar ali, não na sala de Imprensa da Prefeitura, mas em minha sala, olhando o embrulho, apreciando a última do pai, que todos esperavam não ser a última de verdade, pois as histórias em que ele se metia nunca tinham fim, ligavam-se umas às outras, entravam uma dentro da outra, como aquelas bonecas que fabricavam na Rússia”. (p. 89)
A imagem das bonecas russas que se encaixam umas nas outras pode servir de metáfora para o aparecimento dessas lembranças encadeadas que, no caso das bonecas são semelhantes, mas no das lembranças, não. Partindo de um sentido como o odor, no caso de Cony, surgem as imagens do passado, não e sequência lógica ou cronológica, mas desordenadamente pois ora se fala da infância e juventude, ora se fala do presente. O tempo passado se presentifica no momento, o espaço reaparece com detalhes – mas é uma sensação fugidia. O que fica realmente presente é a emoção, não a mesma que foi vivida, mas outra, reconstruída, filtrada pelo presente, mas nem por isso menos intensa, dolorosa até. É o presente que chama o passado – foi um pacote real, recebido com data e hora – e neste instante ele se vivifica – daí a sensação de prazer ou dor, o suor, a cabeça latejando.
Como trazer o passado para o presente?
Na medida em que a sensação, filtrada pelo corpo, desperta a percepção, esta vai buscar na memória a resposta e, identificado-a, presentifica-a. Se o processo foi desencadeado em um escritor, temos então a matéria-prima de um romance, como é o caso da presente obra. Tornam-se as lembranças, palavras, signos de comunicação de transmissão e de preservação do passado. A sensação é, no caso analisado, o fator desencadeante de uma reflexão sobre o passado que se torna uma obra de ficção (ou quase).
Tempo / espaço na memória
Observamos, então, que o tempo se presentifica e se dissipa ao sabor das recordações, mas ele se faz num universo, que tem um espaço específico – como Cony, ao descrever as passagens de sua infância, nos traz os espaços vividos. Além do espaço de um Rio de Janeiro idílico, ligado a um cheiro de manga, podemos “ver” esse pai, no cemitério do Caju, roubando mangas, “as melhores do mundo […] manga de cemitério”.
Ou, pelo mesmo motivo, o vexame no cemitério de Santa Cruz, quando ao tentar pegar as mangas chama a atenção de todos os presentes de um enterro. A sala da casa transformada em laboratório para fabricação de perfumes; o quintal onde tentava criar galinhas, depois peixes, onde construiu uma represa e tentou criar um jacaré… ou seria um lagarto? E no final da vida a casa de Correias – último refúgio onde espaço e tempo se unem – “pegava o caminho de terra que levava a seus novos domínios, começava a sentir o cheiro dele, de suas técnicas, de seus troféus, de seus truques” (p. 92).
No fluxo e refluxo das recordações somos projetados no tempo que é passado, no espaço que foi vivido, agora presentificados, e avançando e retrocedendo, a memória ilumina, como num teatro, ora uma cena, ora outra, colocando-nos face a face com o passado revisitado.
De repente, não senti cheiro algum. Nada fizera além de olhar o embrulho imóvel, no centro da minha mesa de trabalho, eu também imóvel, viajando sem pressa e sem itinerário por cheiros antigos, cheiros que sentira (ou julgara sentir), cheiros que pareciam vir do embrulho, mas que, de repente, desconfiei que vinham de mim mesmo”. (p. 32)
A fusão do tempo social, irreversível, com o tempo da memória reversível, elástico, quase atemporal fica sugerido “[ …] Olhei para o relógio para conferir. Sim, seis horas, o tempo passara e eu não desgrudara o olhar e a memória daquele pacote. O que seria um amanhã agora? Tudo fora um amanhã e tudo já era ontem” (p. 73).
Na elaboração desta reflexão, foi inevitável uma aproximação com algumas passagens da obra proustiana. Não falamos da estrutura da obra, mas dos mecanismos (sensações) que remetem esses autores ao passado. O sabor na obra de Proust e o odor – “o cheiro” – na obra de Cony são os fatores que as aproximam e que colocam a discussão das noções de tempo e espaço.
Cony nos alerta a respeito desta comparação:
[…] nada mais diferente […] entre o biscoito de Proust e o embrulho do pai. A madeleine trouxe o gosto que leva ao passado […] o biscoito abriu as portas do tempo – do tempo perdido […] o “meu” embrulho não me abre nada, muito menos o tempo. Se abria alguma coisa era o espaço – até então, nunca pensara organizadamente na única pessoa, no único personagem, no único tempo de um homem que, não sendo eu, era o tempo do qual eu mais participara. E o meu não era tempo perdido, mas tempo desperdiçado”. (p. 94)
Cony nos diz também que o tempo não fora perdido, mas sim desperdiçado. O tempo perdido da infância e juventude é visto, na idade madura, apesar da clareza do sofrimento e angústias de muitos momentos, como uma espécie de “idade do ouro”, daí a nostalgia e a ideia de tempo perdido ou desperdiçado, como prefere Cony.
Preferimos ver esse passado como um tempo vivido, possível a cada um, que pode (e deve) ser reconstruído a partir dessas lembranças trazidas ao presente pelas sensações. Poderíamos pensar que trazemos à tona sensações adormecidas, ou “esquecidas” no inconsciente, mas já vividas – seria então reviver, reconstruir o passado, mas filtrado pelo indivíduo que nos tornamos – resultado de todas as alegrias e decepções, erros e acertos, lutas e vitórias. Nada foi perdido, tudo foi vivido e sentido e pode ser reaproveitado num minucioso e delicado trabalho de bricolage – reconstruir a partir dos restos, do que sobrou consciente ou inconscientemente na nossa memória. Esse trabalho tem uma luz própria que vem iluminar nosso passado e nosso futuro, que vem da consciência que temos da nossa trajetória.
A luz que ilumina, metaforicamente, o trabalho de Cony vem de um balão que lança luzes às noites de sua infância. A memória dele e seu significado vêm também pelo cheiro do papel de seda “[…] um cheiro civilizado de papel importado, o pai só usava papel sueco […] as resmas caíam na mesa numa cascata de cor – o cheiro era tanto que me tonteava de prazer… e impedia que eu dormisse de vez” (p. 95).
Essa lembrança, que nos parece a mais densa e importante de toda a obra, mostra-nos o fundamento da relação pai-filho. A proximidade, a cumplicidade no sonho e no prazer: “se tínhamos que ser felizes, queríamos ser felizes já”. Esse pai extravagante, sonhador com suas técnicas, truques e manias, mas sempre presente, às vezes até de maneira incômoda. Esse pai, que é ao mesmo tempo o anti-herói e um gigante, e que aparece de forma sutil e metafórica na redação do menino que se preparava para o seminário “um gigante que morava longe, onde moram o vento e as coisas do mundo, que apesar de morar tão longe nunca deixava de chegar, em horas estranhas, mas sempre chegando, porque sabia que eu precisava dele” (p. 110).
Estas ternas palavras se completam com a doce lembrança do pequeno balão que o pai fez, de surpresa, para enfeitar a sua cama “[…] esse balão, que nunca soltei, ficou amarrado a minha infância, se um dia eu chegasse a rei ou bispo e tivesse direito a um escudo, nele mandaria gravar esse balão, logotipo do meu mundo, emblema de mim mesmo” (p. 100).
Cony, nesta belíssima e comovedora obra intitulada Quase memória, nos leva de volta ao passado. Com ele embarcamos numa viagem para fora de nossa realidade, a um tempo / espaço vivido, em que se amou, sofreu, conquistaram-se pequenas glórias, sofreram-se muitas decepções mas, principalmente, forjou-se o caráter de um homem, o próprio autor, o filho do herói diário, quixotesco e por isso mesmo grande. Uma história, trazida pela memória, na qual vemos um pouco da muita fragilidade humana e da busca que é de todos nós… com nossos truques e manias…
Saber que o meu balão não existia doeu. E só não doeu mais porque esse balão frequenta meus sonhos, frequenta sobretudo – e até hoje – minhas insônias. É quando, de repente, iluminado e silencioso, ele se ergue, roxo e branco, e passa pela minha memória, lentamente, cobrando-me o legado que me deixou, um legado de tristeza, mansidão e fragilidade”. (Cony, 1996, p. 101).
Notas
(1) Henri Bergson (1859-1941) e Maurice Halbwachs (1877-1945) são os teóricos clássicos para os estudos da memória nos quais nos baseamos para esta reflexão.
Referências
CONY, Carlos Heitor. Quase Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido – No caminho de Swann (vol. 2). Porto Alegre:, Globo, 1992.
Para saber mais
BENJAMIN, Walter. “A Imagem de Proust”. In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Revista dos Tribunais, Edições Vértice, 1990.
___________ Les Cadres Sociaux de La Memoire. Paris: Albin Michel S.A, 1994.
MAUROIS, André. Em Busca de Marcel Proust. São Paulo: Siciliano, 1995.
POLLACK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos nº. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
POULET, Georges. O Espaço Proustiano. São Paulo: Imago, 1992.
(*) Parte deste texto foi publicado na revista Kairós –Gerontologia, vol 4, nº2, 2001. Revisado para a presente publicação.