Há muitos anos costumamos nos reunir no mês de dezembro para celebrar. Celebrar o Natal, o nascimento de Jesus, mas também a nossa amizade. Quando começamos, éramos jovens. Como disse uma amiga do grupo, temos o privilégio de envelhecer juntos!
Celina Monteiro *
Nessa época não tínhamos carro e, ao final da missa, íamos esperar o bonde que passava pela rua da Consolação onde morávamos. Um dia – será que chovia? – uma kombi parou junto de nós para nos oferecer carona. Era um casal com duas meninas mais ou menos da idade das nossas. Foi o início de uma amizade duradoura, preciosa!
Logo descobrimos afinidades e interesses comuns, e outras pessoas com ideais semelhantes, foram se agregando a nós. No momento, às vésperas do golpe de 64 e das mudanças na Igreja trazidas pelo concílio Vaticano II, o elemento catalisador entre nós foi o desejo de um Brasil mais justo, com menos desigualdades.
Fizemos parte de alguns movimentos da Igreja católica, com reuniões mensais e regulamentos próprios, mas acabamos por nos tornar independentes, formando nosso próprio grupo. O número de participantes variou ao longo dos anos, alguns deixaram o grupo, outros vieram, sempre a partir do mesmo núcleo. Outros morreram… Hoje somos quatorze, a maioria com mais de 80 anos.
O que nos mantém unidos? Creio que é a busca de sentido para a vida, a busca de Deus.
Somos muito diferentes entre nós, e também nessa busca temos trilhado caminhos diversos. Mas acho que posso dizer que a inspiração, o traço de união, está na vida de Jesus.
Uma ocasião em que eu acompanhava um dos amigos, hospitalizado em estado terminal, a acompanhante da doente do quarto vizinho me disse, um dia, interrogativa e admirada ao mesmo tempo: “Mas afinal, vocês não são parentes, o que é que une vocês dessa maneira?”
Não me lembro o que respondi, mas acho que posso afirmar que o que ela via em nós, era o mesmo que fazia aqueles que observavam os primeiros cristãos dizerem: “Vede como eles se amam”!
Abaixo o a Meditação que escrevi para o último encontro deste grupo, em 8 de dezembro do ano que finda.
Advento, tempo de espera:
Estamos no Advento, tempo de espera do nascimento de Jesus.
A espera de uma criança é sempre um tempo de preparativos para a chegada do bebê, de expectativas e emoções novas compartilhadas na família e com pessoas amigas.
Como teria sido esse tempo para Maria e José?
Maria deve ter se ocupado em preparar com carinho o enxoval do bebê; José, carpinteiro, certamente caprichou em fazer um bercinho para recebê-lo. Os vizinhos, provavelmente, fizeram suas ofertas, presentes de pobres, mas sinais de solidariedade e afeto.
E eis que, justamente quando estava chegando a hora, veio o decreto de Cesar que obrigou o casal a deixar o aconchego de seu lar para empreender a viagem de Nazaré a Belém. Viagem sem conforto, de gente pobre, para uma cidade hostil, em que não conheciam ninguém.
E foi aí que nasceu Jesus!
Maria “envolveu-o em panos e o deitou numa manjedoura porque não havia lugar para eles na estalagem” (Lc.2,7).
Certamente não faltou a Jesus recém-nascido o calor do amor de Maria e José e, para compensar a ausência da vizinhança, vieram pastores e reis trazendo suas ofertas.
Mas não haviam terminado ainda os imprevistos obrigando a deslocamentos, agora para proteger a vida do menino ameaçada por Herodes. E desta vez a viagem é longa, para uma terra estrangeira e por tempo indeterminado, tendo que atravessar um deserto para chegar da Palestina ao Egito! (Mat. 2,13-15).
Como Maria reagiu a esses acontecimentos?
S. Lucas nos diz que Maria “guardava todas essas coisas em seu coração” (Lc 2,19 e 51). Guardava-as em seu coração, em sua memória e, ao longo da vida, na medida em que recordava, aquilo que não pudera compreender, que lhe parecera obscuro, ia adquirindo sentido.
A infância é uma idade frágil, a criança depende em tudo dos pais, precisa de sua proteção para sobreviver.
Também a velhice é frágil e requer proteção. Mas aí cessam as semelhanças.
A criança depende dos mais velhos, os velhos dos mais novos. Enquanto a criança caminha para a independência, o velho tende a se tornar cada vez mais dependente. A criança tem pouco passado, quase não tem memória, seu presente se projeta para o futuro; cada dia que passa ela adquire novas aptidões, tudo para ela é novidade na vida, está sempre aumentando seu círculo de relações. O presente do velho se volta para o passado e recordações desse passado emergem em sua memória. Adquiriu muita experiência, mas, com o passar do tempo, sofre perdas em suas capacidades, em suas relações.
Como reagir a essas contingências, às mudanças (inesperadas) que surgem em nossas vidas e que abalam nossa segurança?
Maiores ou menores todos nós temos sofrido perdas ultimamente: em nossos corpos, na família, entre os amigos. Esse é o nosso presente. O futuro? Não sabemos. Mas podemos, sem nostalgia, olhar para o passado e descobrir nele o quanto ganhamos vivendo, e como podemos encontrar nele uma explicação para nosso presente e ajuda para esperar o futuro.
Podemos, por exemplo, nos lembrar do que vivemos juntos, o quanto aprendemos uns com os outros – cada qual com seu carisma – partilhando alegrias e tristezas, preocupações, ajuda mútua, momentos sérios e brincadeiras, degustações e muito mais. E, sobretudo, compartilhando a busca de sentido para nossas vidas, a busca de Deus!
As lembranças ocorrem como flashes, uma leva à outra. Não podemos nos lembrar de tudo, nossa memória é seletiva. Mas o que aflora é justamente aquilo que, a exemplo de Maria, guardamos em nosso coração, aquilo que é realmente significativo, que dá sentido a nossa vida e nos revela nossa identidade: é isso que eu sou!
Cabe a nós aceitar com serenidade e confiança as mudanças que o envelhecimento nos impõe e dar graças a Deus pelo dom da memória e pela vida, tão bela, e que se renova a cada criança que nasce.
* Celina Monteiro, 84 anos, profª aposentada, é pesquisadora-sênior do Grupo de Estudos da Memória (GEM) do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE-PUCSP).