A mediação biográfica. Acompanhar adultos em processos-projetos de si

O uso de narrativas autobiográficas,em Educação, criou uma situação completamente nova: a formação do formador para realizar a delicada tarefa de ajudar o adulto a narrar sua vida, ou parte de sua história, com fins educativos. Na perspectiva da abordagem (auto) biográfica[3], parte-se da hipótese que o ato de narrar experiências existenciais e/ou profissionais, devidamente mediado, permite transformar saberes implícitos em conhecimento (pesquisa) e promover, nesse intervalo, a reinvenção de si (formação).

Maria da Conceição Passeggi, Pierre Dominicé

 

Nos últimos seis anos, essa tem sido uma das minhas principais preocupações nas pesquisas desenvolvidas, na área de Educação e Saúde, especificamente, na formação inicial e continuada de professores e nutricionistas.

Neste trabalho, apresento, em suas grandes linhas, a noção de mediação biográfica[4], que interroga os processos mediadores postos em jogo ao longo da elaboração da narrativa autobiográfica e seu impacto (trans) formador sobre a pessoa que narra.

A mediação biográfica

Uma das características da formação de adultos é que ela se realiza entre adultos. Uma das grandes dificuldades encontradas pelos adultos é desconstruir a representação de uma educação prescritiva. Herança que os leva a conceber a formação num movimento descendente: da teoria para a prática, do professor para o aluno. Custa-lhes, portanto, valorizar o caminho inverso: o da teoria que emerge da reflexão sobre um saber prático, tácito e difuso, e a consciência de que é possível aprender consigo mesmo a aprender.

O conceito de mediação biográfica inspira-se nos estudos de Vygotsky (1989, 1991) sobre a lei geral no desenvolvimento das funções psíquicas superiores, as quais se desenvolvem, através de uma série de micro transformações, ao longo do tempo e num duplo movimento. Um movimento de interação entre pessoas (interpsicológico), e um movimento de apropriação interna (intrapsicológico). O primeiro corresponderia a um saber-fazer com o outro, e o segundo a um saber fazer sozinho. Mas pouco se sabe ainda sobre os processos mediadores que operam a passagem de um movimento para o outro. A mediação biográfica pretende se situar na seqüência dessa reflexão. O objetivo é melhor compreender as relações que se tecem entre o formador (mediador) e o adulto em formação e destes com a narrativa de vida ao longo do processo de escrita autobiográfica. Nesse sentido, ela investiga o saber-fazer com o outro, heteroformação, e o saber-fazer sozinho, autoformação.

Trata-se de clarificar para o adulto que a formação não é monolítica, mas se realiza, conforme teoriza Pineau (2004), em diferentes movimentos de aprendizagem: com alguém mais experiente, heteroformação, com os pares, co-formação, com o entorno natural, social, institucional, eco-formação, e, essencialmente, no processo laborioso do (re) conhecimento da capacidade de aprender consigo mesmo a aprender: a autoformação.

As três dimensões da mediação biográfica

Os estudos realizados sobre a mediação biográfica, numa perspectiva longitudinal[5], sugerem uma estreita relação entre o processo de reinvenção de si e a evolução das representações da escrita autobiográfica, aos olhos do próprio narrador. Analisei as metáforas relativas ao ato de narrar, no início, durante e após a escrita autobiográfica, e pude identificar três momentos-chave de um percurso ‘exitoso’ de escrita[6]. No início do processo, o ato de narrar configura-se como uma “luta” contra ‘um bicho-de-sete-cabeças’, a imagem do narrador emerge então sob a forma de um “eu-submisso”, ameaçado. Num segundo momento, a simbologia evolui para a imagem do “parto”, e aquela do narrador transmuta-se, ao mesmo tempo, num “eu-criador”, em vias de se (auto) conceber, de (re) nascer. Finalmente, a escrita de si é percebida como uma “viagem”. O narrador ressurge, então, como viajante, um “eu-autor-autônomo”, que decide sobre os rumos do seu percurso e da história de sua vida.

Essa simbologia, profundamente enraizadas em nosso universo cultural, ajudou-me a conceber as três dimensões da mediação biográfica, denominadas: mediação iniciática, mediação maiêutica, mediação hermenêutica.

A mediação iniciática

O momento inaugural da escrita autobiográfica responde implícita ou explicitamente à pergunta: Que fatos marcaram a minha vida (pessoal, profissional, intelectual e/ou alimentar)? Trata-se da instância de evocação, momento em que as lembranças, coloridas pela emoção, instalam um conflito existencial: Terei mesmo uma história? Simbolicamente, a escrita é vivenciada através de duas visões paralelas: as de luta e luto. A luta trava-se na resistência ao desvelamento de si e contra demônios interiores. O luto é vivido na tensão da morte de si e o anúncio do renascimento como um outro. “É preciso submeter-se à prova, perder-se para se reencontrar” (FABRE, 1994, p.136). Este é o desafio do ritual iniciático da escrita e da mediação. O papel do formador é partilhar com o adulto “o pão e o passo”, acompanhá-lo na viagem que ele inicia na busca de si mesmo. O formador é mentor, conselheiro e confidente.

A perspectiva teórica que utilizo para fundamentar a mediação iniciática é a do acompanhamento, desenvolvida por Pineau (2002; 1998); Paul (2004), Lainé (2005), para citar apenas os mais próximos de meus estudos. Para Pineau (2002), a atualidade da noção de acompanhamento responde à necessidade de melhor conceber a formação de formadores, seu papel, seu estatuto, sua profissionalização, dentro dos princípios epistemológicos da formação ao longo da vida e da concepção do adulto como ser histórico, autônomo, capaz de tomar em mãos seu trajeto-projeto de vida.

A mediação maiêutica

O segundo momento configura-se como instância de reflexão e está centrado na questão: O que os fatos evocados fizeram comigo? Observo que a elaboração de sucessivas versões de sua história ajuda o adulto a vencer as primeiras resistências. Nessa segunda etapa, o ato de narrar é simbolicamente representado pela imagem do “parto”. Tal transmutação sugere que a escrita de si passa a ser experienciada através da sensação corpórea da fecundação. O que era percebido como luta, imposição externa, é ressignificado. Autobiografar-se é autoconceber-se. É saber-poder ficar prenhe de si mesmo, renascer. A tarefa do formador na mediação maiêutica é, portanto, ajudar o adulto a explicitar saberes implícitos, a tomar consciência das experiências de vida e transformá-las em conhecimento. Ou ainda, nas palavras de Paulo Freire (1997), superar a “curiosidade ingênua”, sobre si mesmo, para alcançar a “curiosidade epistemológica” sobre o que fez e o que se está sendo.

A perspectiva teórico-metodológica com a qual trabalho para explorar a mediação maiêutica é a da explicitação biográfica, elaborada por Lesourd (2005), na convergência das histórias de vida em formação e da entrevista de explicitação, concebida por Vermesch (2000). O formador auxilia o adulto a fazer um zoom sobre suas vivências e a transformá-las em experiências epifânicas, entendidas como descobertas depois das quais não se é mais o mesmo.

A mediação maiêutica configura-se, portanto, como um momento de passagem do saber-fazer com o outro, heteroformação, para o saber-fazer sozinho, autoformação. “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”, tal é a máxima do modelo socrático e por extensão da mediação maiêutica.

A mediação hermenêutica

O terceiro momento da escrita autobiográfica responde à pergunta: O que faço agora com o que isso me fez? A mediação hermenêutica, como o nome indica, é o momento da interpretação, da ressignificação do sentido da vida e da reinvenção de si. Para Bruner, a construção das representações identitárias é análoga à elaboração de um texto que se escreve e se reinterpreta, segundo as situações de transação social. Assim é a narrativa de si, tal um palimpsesto no qual o narrador vai se reescrevendo continuamente sobre o eu-texto anterior, apagando e/ou realçando as marcas ali encontradas.

O processo de interpretação das experiências, segundo Delory-Momberger (2005), é uma hermenêutica prática, e como lembra Ricoeur (1998), a hermenêutica já é propriamente crítica, pelo necessário distanciamento do texto e do mundo reinventado pelo texto. O adulto em formação é o primeiro e mais importante intérprete de sua narrativa. E de sua interpretação, mais ou menos cuidadosa, dependerá seu processo emancipatório. O formador assume aqui a delicada tarefa de ajudá-lo a se distanciar cada vez mais de si para saber-poder tomar decisões e projetar seu vir a ser.

Do ponto de vista teórico, encontro na conduta clínica em educação e em formação (Cifali, 2001; Lani-Bayle, 2002) um suporte para trabalhar a mediação hermenêutica. Como arte da escuta sensível, essa perspectiva entra em sintonia com a atitude do mediador nessa etapa final. As metáforas utilizadas no momento em que o adulto encerra sua narrativa simbolizam a escrita de si como uma “viagem” de retorno e de reconhecimento de si para si e pelo outro. Toda a arte do formador, na mediação hermenêutica, consiste na negociação do sentido sobre as experiências revisitadas, reconceitualizadas. Pela ação da linguagem, a vida transforma-se em obra. O processo de mediação é exitoso quando o mediador se retira da cena e o adulto toma em suas mãos, mesmo provisoriamente, os rumos de sua vida.

Em aberto

A mediação biográfica com suas três subcategorias sugere que o processo de escrita de si, como afirma Cifali (2001, p.116), é de ordem cognitiva, de uma inteligibilidade reflexiva, cujo “benefício adicional é favorecer a auto-estima, sem a qual não há estima do outro”. A idéia de “percurso de reconhecimento”, retomada de Ricoeur (2004), constitui a chave da mediação biográfica no acompanhamento do adulto no seu processo-projeto de si como “herói-narrador-autor” e no reconhecimento de sua capacidade de aprender consigo mesmo a aprender. O equilíbrio almejado pela mediação biográfica consolida-se na noção de kairos, como arte de usar o tempo propício às mediações: iniciática, maiêutica, hermenêutica, para criar ou expandir zonas de autonomização.

A complexidade da situação analisada requer do formador habilidades sobre as quais ainda resta muito a investigar. Nesses últimos seis anos de trabalho com formadores, em suas atividades de mediação biográfica, tenho perseguido essa “missão impossível” de desvendar saberes tácitos e difusos, construídos na ação, e que resistem às tentativas de formalização. Parece-me que a formação do formador requer a mesma ruptura exigida na formação do adulto. Ou seja, ela pressupõe a consciência de que essa formação se faz também na direção inversa: da experiência para a abstração teórica. Nesse sentido, a mediação biográfica não se apreende fora da prática. Ela exige, ao contrário, a implicação do formador nos mesmos procedimentos por ele utilizados na formação do adulto com o qual interage. Daí a necessidade de proceder aos registros de suas práticas para refletir sobre elas. Observar os princípios éticos e deontológicos da abordagem (auto) biográfica e vivenciar a experiência da escrita e de reescritas sucessivas de sua própria história de formador. Senão, como compreender os desafios cognitivos, afetivos, sociais, vivenciados pelo adulto sem a passagem obrigatória dessa viagem para si? Como conhecer, de outra maneira, essa passagem da heteroformação para a autoformação?

A mediação biográfica trata, em suma, dessa reconciliação quase mística do adulto consigo mesmo. O caminho é longo. E o sentimento de uma coerência perdida na vida e nas ciências parece exigir como sugere Ferrarotti (1988, p.136, grifos do autor) “uma ciência das mediações que traduza estruturas sociais em comportamentos individuais”. A dificuldade maior é saber, desde já, que a formação é “um movimento que é preciso saber captar no ar”.

Referências

BRUNER, Jerome. Atos de significação.Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

Recebe as últimas notícias!

Não perca nenhuma notícia, receba cada matéria diretamente no seu e-mail!

CIFALI, Mireille. Conduta clínica, formação escrita. In: PAQUAY, L. et al. Formando professores profissionais. Que estratégias? Que competências? Porto Alegre: Artmed. 2001, p.103-107.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Histoire de vie e recherche biographique em Education.Paris: Anthropos, 2005.

DOMINICÉ, Pierre. L´Histoire de vie comme processus de formation.
Paris: L´Harmattan, 2000.

FABRE, Michel. Penser la formation.Paris: PUF, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997.

JOSSO, Marie-Christine. Os relatos de historias de vida como desvelamento dos desafios existenciais da formação do conhecimento: destinos sócio-culturais e projetos de vida programados na invenção de si. In: SOUZA, E. C.; ABRAHÃO, M.H.M.B. (Orgs). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p.21-40.

________. Experiências de vida e formação.São Paulo: Cortez, 2004.

LAINÉ, Alex. V.A.E, quand l´expérience se fait savoir. L´accompagnement en validation des acquis. Ramonville Saint-Anges : Éres, 2005.

LANI-BAYLE, Martine. La clinique en perspective… Les sciences de l´education em question, 2002. (versão digitada cedida pela autora).

LESOURD, Francis. L´épiphanie comme ré-orchestration des temps. Chemins de formation au fil du temps, n.8, octobre, p. 56-65, Nantes : Ed, du petit véhicule, 2005.

PASSEGGI, Maria da Conceição. A formação do formador na abordagem autobiográfica. A experiência dos memoriais de formação. In: SOUZA, E. C.; ABRAHÃO, M.H.M.B. (Orgs). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006a, p.203-218.

________.As duas faces do memorial acadêmico. Odisséia, v. 9, n.13-14, p.65-75, 2006b.

________. … car l´autobiographie donne forme et sens à la vie. Chemins de formation au fil du temps, n.8, octobre, p. 178-185, Nantes : Edition du petit véhicule, 2005.

________. Representações sociais da escrita. Uma abordagem processual. In: CARVALHO, M.R.; PASSEGGI, M.C.; DOMINGOS, M. (Orgs). Representações Sociais.Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 2003, p. 45-59.

PAUL, Maëla. L´accompagnement: une posture professionnelle spécifique. Paris: L´Harmattan, 2004.

PINEAU, Gaston. As histórias de vida como artes formadoras da existência. In: SOUZA, E. C.; ABRAHÃO, M.H.M.B. (Orgs). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p.41-59.

________.Temporalidades na formação. São Paulo : Triom, 2004.

________. L´accompagnement en formation : de l´avant-naissance à l´après-mort. Education Permanente. Condé-sur-Noireau, n.153, p.29-40, 2002.

PINEAU, Gaston (Éd.) Accompagnement et histoire de vie. Paris : L´Harmattan, 1998.

RICOEUR, Paul. Parcours de reconnaissance.Paris : Gallimard, 2004.

VERMESCH, Pierre. L´Entretien d´explicitation. Issy-le-Moulineux: ESF, 3e. ed. 2004.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1989.

________. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

*Maria da Conceição Passeggi – Professor Adjunto IV – Departamento de Educação e Pós-graduação em Educação. Pós-dutorado em Fundamentos da Educação – Université de Nantes, UN, França. (2004-2005). Doutorado em Lingüística Geral – Université Paul Valéry Montpellier 3, U.M.III, França. (1981). É líder do grupo de pesquisa: “Processos discursivos, mediação et representações sociais”, Diretório Nacional CNPq. E-mail: [email protected]. Site Acesse Aqui (em construção).

[1] Agradeço à colega Vera Brandão pela oportunidade de disponibilizar no Portal do Envelhecimento essa reflexão em plena gênese.

[2] DOMINICÉ, P. 2000, p.38, tradução minha.

[3] Cf. JOSSO (2006) e PINEAU (2006) para uma síntese atualizada dessa abordagem.

[4] PASSEGGI, 2006 a.

[5] PASSEGGI, 2006b, 2005, 2003.

[6] PASSEGGI, 2003.

Portal do Envelhecimento

Compartilhe:

Avatar do Autor

Portal do Envelhecimento

Portal do Envelhecimento escreveu 4197 posts

Veja todos os posts de Portal do Envelhecimento
Comentários

Os comentários dos leitores não refletem a opinião do Portal do Envelhecimento e Longeviver.

LinkedIn
Share
WhatsApp
Email

Descubra mais sobre Portal do Envelhecimento e Longeviver

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading