Exultar quando alguém diz que não se aparenta a idade real é uma atitude comum entre os brasileiros. Isso porque nossa cultura valoriza em excesso a juventude. É o que garante o médico carioca Alexandre Kalache, doutor em saúde pública pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Ele próprio já ouviu frases do gênero, mas não demonstra entusiasmo com esse tipo de elogio. Kalache se orgulha de seus 56 anos e da experiência que o tempo lhe trouxe. Pudera. Há quase três décadas, o médico se dedica à terceira idade. Em 1995, assumiu a coordenação do Programa de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), que acabava de ser criado. O projeto consiste em trocar informações com outras iniciativas da entidade, inclusive as dedicadas à infância, para desenvolver trabalhos que ajudem as populações a envelhecer com saúde, mantendo a autonomia e vivendo em harmonia com a sociedade.
Lena Castellón
Kalache defende que para assegurar o envelhecimento saudável é preciso investir não apenas em políticas de saúde, mas também em educação, programas sociais e até no meio ambiente. “Não adianta convencer as pessoas de que ser sedentário não é uma boa se elas vivem numa cidade violenta, com iluminação inadequada, com péssimo transporte público”, afirma. Essas são condições que tornam o idoso vulnerável, mesmo que esteja saudável. Ele pode tropeçar num buraco da calçada, por exemplo. Para evitar riscos, não sai de casa. Isolado e sem conseguir caminhar, a qualidade de vida só pode piorar. Por isso, Kalache conclui que qualquer projeto de envelhecimento deve envolver diversos setores e sensibilizar toda a população, de jovens a velhos.
ISTOÉ – Qual é a diretriz do Programa de Envelhecimento e Saúde da OMS?
Alexandre Kalache – Ele procura influenciar as políticas da entidade, sempre lembrando que existe o envelhecimento. Faz com que o programa de saúde mental pense no idoso. Que o programa de saúde da mulher, o de adolescentes e outros tenham a percepção de que o envelhecimento virá. Por outro lado, estimula pesquisas para responder quais os determinantes importantes para o envelhecimento com saúde. Aos 75 anos, por exemplo, ninguém terá a mesma capacidade funcional dos músculos de quando tinha 20.
ISTOÉ – Quando essa capacidade começa a declinar?
Kalache – Depende. Para a capacidade respiratória ou cardiovascular, o pico ocorre aos 22, 25 anos. O Guga (Gustavo Kuerten, jogador de tênis) está começando a ficar velho. Um jogador de futebol, aos 30 anos, está se aposentando. Perde-se 1% da força muscular a cada ano depois das duas primeiras décadas. A partir dos 40 anos, o ritmo dessa perda se acelera. Tentamos evitar que esse declínio seja rápido. Procuramos fazer com que os projetos que mexem na primeira etapa da vida – a infância e a adolescência – estimulem a capacidade funcional para que ela possa ser a mais alta possível. Há fatores que influenciam nesse aspecto: a nutrição (para a criança ter desenvolvimento normal e evitar problemas como infecções), a atividade física adequada nos primeiros anos, os estímulos intelectuais e os emocionais.
ISTOÉ – O que é necessário fazer para garantir um bom envelhecimento?
Kalache – É preciso envolver a sociedade civil, conversar com entidades não-governamentais, com a mídia, a escola primária. Não é uma atitude isolada. E você tem de sensibilizar políticos. Não adianta as pessoas estarem convencidas de que ser sedentário não é uma boa se elas vivem numa cidade violenta, com iluminação inadequada, com péssimo transporte público. Você não pode pegar uma bicicleta e sair por aí porque o trânsito te mata. Se não for o trânsito, é a poluição. E, se não for a poluição, você corre o risco de ter sua bicicleta roubada. Então, é preciso pensar num esforço multissetorial para que as políticas sejam adequadas a esse conjunto. Depois de fazer tudo isso, evitando ao máximo que as pessoas atinjam cedo o limiar de incapacidade, você tem de pensar naqueles que já perderam essa capacidade. Como a minha madrinha, de 102 anos, mas com a capacidade mental preservada. Ela vivia só com uma empregada e uma atendente porque tinha mal de Parkinson, doença que começou a dificultar sua mobilidade. Isso é autonomia, porém dependente de alguém. Ela tinha sua casinha, recebia visitas. Então, uma sobrinha, a quem havia passado o título de propriedade da residência, resolveu vender a casa. Não por necessidade financeira, mas porque estava cansada de cuidar. Ela faz parte de uma burguesia sem sensibilidade e solidariedade, que esquece que um dia será idosa. Essa sobrinha passou por cima da autonomia da tia. E, em seis meses, transformou aquela pessoa que tinha uma qualidade de vida dentro do possível em uma pessoa deprimida, carente, com a auto-estima reduzida.
ISTOÉ – Como ajudar as pessoas que atingiram o limiar de incapacidade?
Kalache – Pode-se restaurar a capacidade perdida. Há recursos na medicina para isso. Mas, após exaurir o repertório capaz de melhorar as condições de vida do idoso, muita gente continuará no limiar de incapacidade. Então, vamos diminuir esse limite. As condições do tráfego, a qualidade do calçamento, a iluminação ruim tornam os idosos muito vulneráveis. Eles não saem de casa às cinco da tarde porque têm medo de cair num buraco na calçada. Acabam ilhados e não andam. Sem andar, a capacidade física se deteriora. Seu círculo social fica restrito. Tudo isso piora imensamente sua qualidade de vida. Não porque ele tem problemas, mas porque o meio ambiente não lhe permite usar a capacidade funcional que ainda possui para continuar ativo na sociedade. No final, depois que melhorarmos as condições ambientais, mesmo assim muita gente terá problemas inevitáveis. Em razão da fragilidade do envelhecimento natural, alguns idosos precisarão de cuidados. Investir nesse campo é fundamental. O que muitas vezes significa dar suporte à cuidadora, frequentemente a filha, a esposa. Na maioria dos casos, uma mulher em idade avançada, com grau de saúde deteriorado, que precisa ser apoiada para continuar segurando a peteca. Cada vez que falhar o cuidador na comunidade, será a vez do cuidador institucional, que também pesa. Que vai custar dinheiro, talvez para o Estado, talvez para a família. Esse é o discurso que temos difundido ao máximo, dentro do nosso conceito de envelhecimento ativo.
ISTOÉ – O que é esse conceito?
Kalache – É pensar no envelhecimento como uma perspectiva de curso de vida. Você mexe nos determinantes de saúde para garantir que a maioria da população chegue bem à terceira idade. Esse determinante pode ser o serviço de saúde, mas também pode ser o lado econômico. Pode ser a nutrição, a ordem social. O conceito também combate a exclusão social do idoso, garantindo que ele possa ser um recurso de sua comunidade, de sua família e da economia. Essa pessoa pode ser parte da solução do problema se está ajudando a família, cuidando do neto ou da casa para que a filha possa trabalhar, por exemplo. Ou trabalhando no setor terciário. São idosos invisíveis porque é muito difícil quantificar a contribuição que dão à sociedade. E, como não é quantificada, ele é continuamente esquecido. Por causa do preconceito, fala-se do idoso como problema, quando na maioria dos casos, em países desenvolvidos ou não, ele é na verdade solução. E quando ele é o problema, deve-se pensar que estamos devendo a essa pessoa. Assim como espero que a sociedade e as próximas gerações cuidem de mim se eu vier a precisar desse cuidado. É um pacto de solidariedade entre gerações.
ISTOÉ – Qual a principal barreira para implantar essa idéia?
Kalache – Nos países ricos, o problema é o preconceito. Eles têm dinheiro para dar, mas não priorizam a questão do idoso. Então, o impedimento deve passar pelo emocional, pela atitude. Observe como a mídia retrata o idoso, como as campanhas de marketing sempre priorizam a imagem do jovem. Nossa sociedade não tem paciência com a diminuição da agilidade. O idoso é mais vagaroso. O que não quer dizer que ele seja menos competente, apenas que desempenha suas funções no seu próprio tempo. Mas a sociedade quer a rapidez. No entanto, é possível compensar a relativa falta de rapidez com a experiência já acumulada.
ISTOÉ – E nos países pobres?
Kalache – Precisamos de um esforço coletivo para fazer com que as pessoas tenham a percepção de que vivemos um momento sem precedentes na história, que é o envelhecimento rápido de todas as populações do mundo e em particular as dos países do Terceiro Mundo. Nunca houve o fato de um país ser pobre e estar envelhecendo. Os países desenvolvidos primeiro ficaram ricos, depois envelheceram. Os países em desenvolvimento estão envelhecendo antes de ficarem ricos.
ISTOÉ – Nesse panorama, quais as chances de o Brasil implementar um programa eficaz de envelhecimento saudável?
Kalache – A nossa saída é estimular primeiro políticas que ajudem uma grande maioria das pessoas da terceira idade a manter o seu grau de saúde. É preciso investir também na saúde das pessoas que estão envelhecendo. Temos de pensar em saúde do adulto, em políticas de prevenção de doenças não transmissíveis. Isso porque, a partir dos 45 anos, seja no Nepal, seja na Suécia, os problemas são as doenças não transmissíveis. Morre-se de hipertensão, diabete, derrame, câncer.
ISTOÉ – E em relação à saúde mental, à depressão, ao stress?
Kalache – Quando se fala de ansiedade e depressão, os estudos mostram que as taxas dessas enfermidades entre os idosos não são mais altas do que as da população adulta como um todo. O problema maior é diagnosticar bem. É importante educar o profissional de saúde para que ele reconheça a depressão. Se a viúva está isolada, os filhos foram embora, está pobre, vive mal, não tem rendimento, motivação, é até difícil dizer: “Não fique deprimida.” Deve-se buscar uma resposta social para inserir novamente essa mulher na comunidade.
ISTOÉ – Como está a questão dos maus-tratos?
Kalache – Um dos programas que temos é o de prevenção do abuso e do mau-trato, uma questão vergonhosa no Brasil. Fizemos um estudo em nove países: Canadá, Argentina, Brasil, Inglaterra, Suécia, Áustria, Quênia, Líbano e Índia. Conversamos com idosos, tentando fazer que eles nos dissessem suas percepções sobre o que é abuso e mau-trato. O idoso se considera maltratado quando não é respeitado e é excluído na sua própria sociedade. Quando não tem suas considerações respeitadas e é negligenciado. Em qualquer um desses países, existe o abuso, mas o que ocasiona o problema é muito diferente. No Brasil, constatamos que a raiz principal é a falta de solidariedade entre as classes e entre as gerações. O abuso é da família. Por exemplo: o dinheiro da aposentadoria vai para os familiares. Se o aposentado não o entrega, há uma tortura psicológica em torno dele. Pode até sofrer abusos físicos. Mas a principal queixa é a falta de respeito em relação a suas opiniões. O idoso não é consultado para nada, nem mesmo sobre a programação da tevê. Não é só isso. É o ônibus que não pára para ele. É o desrespeito quando ele tem de responder a um formulário e os atendentes exigem pressa. Na Suécia, há muitos idosos e poucos cuidadores. As pessoas não têm tempo.
ISTOÉ – Como melhorar a relação entre o idoso e seus familiares?
Kalache – O profissional de saúde ou um assistente social pode ser um intermediário importante. Ele pode ajudar a conciliar essas pessoas. A mídia também tem papel de destaque. Ela tem de ser educada para não idolatrar o jovem. É necessário ainda que as instituições públicas sejam mais treinadas para aprender a lidar com o idoso e ser mais tolerante. A intolerância é grande no Brasil. Há também uma obsessão por beleza, pelo físico. O maior elogio a um brasileiro é dizer que ele parece ser mais novo.
ISTOÉ – De 0 a 10, que nota o senhor dá para a maneira como os brasileiros tratam seus idosos? E quais são os países com as melhores políticas de envelhecimento?
Kalache – Em termos de América Latina, o Brasil é medíocre. Dou 5. Meus destaques são o Canadá, a Holanda e os países nórdicos. Entre os latino-americanos, os melhores são Chile, Costa Rica e Cuba.
Fonte: Revista ISTOÉ Nº 1710 – 05/07/2002