Nunca me defrontara com a velhice. Quando minha mãe e minha tia, com mais de 90 anos precisaram de meus cuidados, senti-me perdida, não estava preparada para isso. Quase ao mesmo tempo percebi que também eu, meu marido, nossos amigos, todos por volta dos 70 anos ou mais, também estávamos envelhecendo. Foi então que surgiu a oportunidade de participar da Oficina de Memória Autobiográfica coordenada pela Vera Brandão, na PUCSP.
Vera Brandão
Recente reportagem da jornalista Paloma Oliveto, publicada no Jornal o Correio Brasiliense aborda um aspecto interessante ligado à longevidade – o valor do bom humor! Em pesquisa realizada na Sardenha, campeã mundial de longevidade, pela pesquisadora Maria Chiara Fastame, foram ouvidos 191 idosos mentalmente saudáveis, na faixa etária entre 60 e 99 anos.
Afirma a pesquisadora que em estudo comparativo, e considerado fatores como gênero, estilo de vida, hábitos alimentares e prática de exercícios, entre outros, verificou que a felicidade e o bom humor, são características comuns entre os longevos habitantes da Sardenha, enquanto na Lombardia, onde o percentual de centenários é três vezes menor, os idosos tendem a ser mais deprimidos. Afirma Fastame:
“Especialmente entre os muito idosos, com mais de 75 anos, os traços depressivos são muito grandes entre os lombardos […] por outro lado, os participantes do mediterrâneo demonstravam níveis elevados de satisfação pessoal. Eles descreveram aos pesquisadores que se sentiam muito respeitados, valorizados e admirados pelos mais jovens. Mesmo os que estão próximos de se tornar centenários exibem a disposição de quem têm a vida pela frente: eles relataram aos cientistas que não abrem mão de se envolver em atividades sociais, recreativas e culturais em suas cidades”.
Esta região da Itália tem sido motivo de muitos estudos sobre a longevidade, mas que ainda não podem ser generalizados. Esta reportagem me fez refletir sobre como o impacto que uma visão mais pessimista ou mais otimista, ao longo da vida, pode afetar a longevidade saudável.
Um acontecimento recente trouxe este tema novamente à minha reflexão. No Grupo de Pesquisas da Memória (GEM) do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (Nepe) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), temos na equipe uma pesquisadora sênior: Celina Monteiro. Ela nos escreveu, respondendo ao lembrete de nossa reunião mensal:
“Vou tentar ir à reunião nem que seja só para matar as saudades e saber das novidades. É que…Lembram da velha surda da Praça da Alegria? Pois é…Estou cada vez mais surda e assim fica difícil participar de reuniões, eu que já não participava do trabalho de campo! É uma perda importante, mas, como no caso da Velha Surda, traz situações engraçadas que nos faz dar boas risadas em família. Para que também riam comigo, envio em anexo uma brincadeira que fiz lembrando episódios do passado (sempre a memória!) que já prenunciavam o presente.”
Mas antes de passar ao trecho que segue a estas palavras apresentamos Celina…por Celina:
“Nasci em São Paulo, a 22 de dezembro de 1926, e fui registrada como Celina Maria Street Bacellar, mesmo nome de minha mãe. Para evitar confusões minha avó sugeriu que me chamassem de Celita, diminuitivo de Cela, apelido de minha mãe. Em 1934, aos 7 anos, entrei para o Colégio ‘Des Oiseaux’, na rua Caio Prado (onde hoje é o Parque Augusta), cursando o primário, ginásio e colegial (1934-1945). Depois, entre 1946-49, cursei Geografia e História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ‘Sedes Sapientiae’ (rua Marquês de Paranaguá).
Um ano antes de me formar já lecionava no próprio ‘Des Oiseaux’, dando aulas especialmente de História. Depois, quando fecharam o colégio, lecionei no Sagrado Coração de Maria, na Av. Nove de Julho, até 1978 quando me aposentei.”
Ao longo do tempo Celina envolveu-se, como voluntária, em movimentos sociais.
“Aos poucos, fui adquirindo consciência da carência da educação no Brasil, não me satisfazendo mais apenas com meu trabalho em colégios da elite. Procurei então alguns trabalhos voluntários, primeiro junto a mães solteiras na APAM (Associação Paulista de Amparo à Mulher), depois, verificando que a maioria dessas mães era de jovens do interior que vinham a S. Paulo na esperança de uma vida melhor, empregando-se como domésticas, trabalhei na AED (Associação de Empregadas Domésticas). Fiz ainda um estágio, sempre como voluntária, na maternidade do Hospital Pérola Byington, junto a mães carentes e seus bebês.”
“Em 1952 casei-me com Moacyr Pinheiro Monteiro, dentista, professor de Histologia na USP. Meu nome passou a ser Celina Maria Bacellar Monteiro, mas, para simplificar, assino apenas Celina Monteiro. No período entre 1954 e 1964 nasceram nossos oito filhos: Ana Maria, Maria Inês, Maria Beatriz, Pedro, Maria Zélia, Paulo, Maria Priscila e Maria Tereza. Temos agora 17 netos, duas bisnetas e outra a caminho. O humor nunca foi uma característica minha e sim, marcante, do Moacyr, que os filhos e netos herdaram e que eu, em mais de 60 anos de amoroso convívio, acabei por assimilar, numa dessas simbioses misteriosas.
Em casa e no trabalho sempre minhas atividades foram voltadas para crianças, adolescentes e adultos jovens, especialmente mulheres. Nunca me defrontara com a velhice. Quando minha mãe e minha tia, com mais de 90 anos precisaram de meus cuidados, senti-me perdida, não estava preparada para isso. Quase ao mesmo tempo percebi que também eu, meu marido, nossos amigos, todos por volta dos 70 anos ou mais, também estávamos envelhecendo. Foi então que surgiu a oportunidade de participar da Oficina de Memória Autobiográfica coordenada pela Vera Brandão, na PUCSP. Era o ano de 2005 e, pela primeira vez, aos 78 anos, eu refletia sobre a questão do envelhecimento e, ao terminar a Oficina, havia perdido o receio de lidar com ela. Fazer parte do GEM a partir do ano seguinte para mim foi uma coisa natural. O tema da pesquisa realizada pelo grupo – espiritualidade – muito me interessava. Espiritualidade e Memória – dois temas que sempre me fascinaram! Novidade para mim era só a reflexão sobre envelhecimento, mas também aí já tivera minha iniciação na Oficina. Assim, desde 2006, participo ativamente do GEM e hoje, aos 88 anos, tenho bem consciência de quão enriquecedora tem sido essa participação.”
Se a experiência foi enriquecedora para Celina, para nós do grupo sua presença sempre foi um “ponto de luz”! Sua sabedoria, expressa em sólidas opiniões, mas em doce tom de voz, sempre nos guiou. Em meio a muitas discussões no processo de pesquisa ficava calada. Quando pedia a palavra analisava, com lucidez e especial lógica, a problemática debatida indicando uma ou duas questões que colocavam “ordem na casa”. Agora Celina quer participar apenas das discussões e análises devido as suas condições atuais. Sentiremos por cada reunião em que não estiver presente, mas tê-la como parte do “conselho consultivo” será uma honra e grande privilégio!
Seu modo de ”dizer-se”, como no exemplo abaixo, mostra o bom humor de quem viveu e aprendeu a longeviver.
X i f r i t o s
– Não, Celita, não é João Pelfudo, é João FELpudo!
– Foi isso que eu disse: João PELfudo! (amuada, mas convicta).
Minha mãe, minha babá, tentavam em vão me ensinar a pronúncia correta. Para meu ouvido, eu estava falando certíssimo!
Muitos anos mais tarde: Ubatuba, Praia do Lázaro, bar do Perez. A turma faz o pedido para acompanhar a caipirinha.
Eu: “Eu nunca comi xifritos!”. Gargalhada geral. A custo me explicaram que o que fora pedido era, simplesmente, PEIXE FRITO! Então, divertida, eu também ri.
A coisa ‘pegou’: daí por diante, cada vez que alguém (eu, especialmente) entendia mal o que o outro falava, vinha a gozação: XIFRITO, XIFRITO!
Hoje, aos 88 anos, me queixo: “- Estou cada vez mais surda!”. Conversas à mesa, teatro, filmes ou novelas na televisão, palestras… Não consigo acompanhar!
Faço testes na fonoaudióloga. “- Sua audição está estável, o que acontece é que você não discrimina os sons. O problema não é no ouvido, é no cérebro.”
E eu, curiosa, me pergunto: será que essa incapacidade de discriminar sons, tornada mais aguda com a degeneração da velhice, vem desde a infância? Será congênito?
Não sei, mas o melhor é continuar a rir com os meus XIFRITOS!
Conheçam melhor Celina e sua grande família, assistindo o pequeno vídeo realizado pelos filhos e netos na comemoração de 90 anos do Moacyr, o (e)terno amor de Celina:
Jornal o Correio Brasiliense
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