O mundo do pequeno Moncho estava se transformando: começando na escola, vivia em tempo de fazer amigos e descobrir novas coisas, até o início da Guerra Civil Espanhola quando rebeldes fascistas abrem fogo contra o regime republicano. O povo se divide. O pai e o professor do menino são republicanos, mas os rebeldes ganham força, virando a vida do garoto de pernas para o ar.
“A Língua das Mariposas”, filme dirigido pelo espanhol José Luis Cuerda, conta a história da inocência – tristemente perdida – de um menininho e seu dedicado professor, tudo acontecendo no cenário da Espanha dos anos 30.
Então, feche os olhos e mergulhe neste “era uma vez” sobre pessoas de verdade – uma singela homenagem àquele que com extrema dignidade e profunda generosidade luta diariamente para que acreditemos que homens como Don Gregório (a quem vocês irão conhecer) ainda são possíveis e acessíveis a todos nós.
O filme…
Ah, ter seis anos não é nada fácil, principalmente quando sabemos que o dia seguinte nos reserva alguns sopapos, surras e inúmeras repreensões. Dormir, impossível! Então, o que fazer com esse assustador amanhã?
Estamos no início das aulas. O pequeno Moncho ouviu falar que o professor tem o hábito de bater nos alunos. Bem, o professor em questão é o velho Don Gregório, um homem gentil e dedicado ao extremo a seus jovens alunos. Republicano, ele compartilha dos mesmos ideais políticos do pai de Moncho, Ramón.
Preocupada, a mãe do menino, já no primeiro dia de aula, alerta o professor: “Ele é como um pardal fora do ninho”. Cercado pelos colegas, curiosos com a chegada do novo aluno, ele não desgruda de seu enorme aparato, uma bombinha para asma. Nunca se sabe, pensa o garoto, uma urgência pode surgir, a qualquer momento.
Depois da tradicional saudação “Bom dia, Don Gregório!”, o professor pede que o menino se apresente aos colegas. Mas, com uma timidez sem tamanho, ele nada responde, sua expressão é de terror. Claro, todos riem e o chamam de Pardal. O medo é tanto que o pequeno acaba fazendo xixi nas calças, fato este imediatamente notado pelos garotos. Envergonhado, ele foge. A floresta se torna seu refúgio. Lá, com certeza, ninguém o encontrará. Já, tarde da noite, seu irmão, Andrés, a quem Moncho tem muito afeto e confiança, o resgata da tristeza e da dor.
No dia seguinte, algo incomum acontece: Don Gregório procura os pais de Moncho. Sim, ele realmente se ocupa dos sentimentos de seus pequenos alunos.
– Ramón: Como eu disse, o plano dele era ir para La Coruña, subir num barco e ir para a América.
– Don Gregório: Pequeno demônio. Por que ele acha que eu bato nos alunos? Eu não bato, nunca bati em ninguém, muito menos numa criança. Diga a ele que eu vim pedir perdão. Ele é um garoto muito sensível, gostaria de me desculpar e também convidá-lo para voltar para a escola.
Moncho decide aparecer. “Gosto desse nome, Pardal, mas se o senhor não gosta, não o usaremos de novo. E perdoe seus colegas, eles não são maus. Outro dia você poderá rir deles”, diz o professor.
Assim, no dia seguinte, Moncho é recebido pelos colegas com aplausos, tudo conduzido pelo gentil professor. Ele o coloca sentado a seu lado, qualquer coisa para dar confiança ao menino amedrontado.
– Don Gregório: Hoje começaremos com um poema: “Memórias da infância” de Antônio Machado.
Prontamente um aluno se dispõe a ler com todos os alertas costumeiros de um professor que zela pelo correto aprendizado de seus alunos: “Devagar e claramente, e tome cuidado com a pontuação”.
Quando o professor inicia o ditado, Don Avelino, o pai de um aluno, invade a sala. Reza a lenda que o tal é um tipo poderoso, mais importante que o prefeito. Ele se queixa que o filho não sabe matemática, e ordena a Don Gregório: “Bata nele, professor, bata. Ponha esses números na cabeça dele”. De repente, dois frangos são despejados na mesa do mestre que, indignado, diz: “Eu não posso aceitá-los”. O tal não aceita: “Está me esnobando?” Depois do embate, o homem sai, visivelmente nervoso, contrariado com a afronta do professor.
– Don Gregório: Bem, falando em aves… se um galo bota um ovo entre a fronteira da Espanha e a França, a qual país pertence o ovo?
– Um aluno responde: À Espanha. Porque temos bolas maiores.
Toda garotada explode em risos, mas Moncho levanta a mão, e diz: “Os galos não põem ovos”. – Don Gregório: Muito bem, essa é a resposta certa.
Depois dessa significativa vitória, o professor pede a Moncho que se sente ao lado do menino que será seu grande amigo, Roque. Para confortá-lo, o garoto lembra: “Caguei na calça no meu primeiro dia de aula”.
Chegando em casa, excitado, Moncho conta que “Don Gregório não bate”. Enquanto Andrés toca seu saxofone, o menino fala das coisas que aprendeu com seu professor, que agora diz gostar.
– Mãe: Nunca acreditei que Don Gregório fosse ateu.
– Moncho: Igual ao papai?
– Mãe: Por que você diz isso?
– Moncho: Ele caga em Deus.
– Mãe: Bem… isso é um pecado. Só um pecado. Mas ele acredita em Deus, como todo homem bom.
– Moncho: E o diabo? Ele existe?
– Mãe: Claro que existe. Ele era um anjo que se rebelou contra Deus. Expulso, rumo ao inferno foi empalidecendo, agora é o Anjo da Morte.
– Moncho: Se ele era tão mau, por que Deus não o destruiu?
– Mãe: Deus não mata, Moncho.
Depois da missa, as pessoas comentam que quebraram igrejas em Barcelona. Uma mulher acusa que “foram aqueles republicanos”. Mas a mãe de Moncho lembra: “Eles não fazem isso. Graças aos republicanos, nós, mulheres, votamos”.
O Padre incomodado com o afastamento de Moncho da igreja alerta o professor que, muito provavelmente, a escola tem parte nisso.
– Don Gregório: O senhor insinua que eu sou responsável?
– Padre: Não estou insinuando nada, mas os fatos falam por si só.
– Don Gregório: Eu entendo, o garoto esteve muito tempo trancado, é natural que se interesse por tudo.
– Padre: “Aves deixam seu calor nos ninhos”.
– Don Gregório: “A liberdade estimula o espírito dos homens fortes”.
E no armazém do Sr. Roque, um homem, já bem cambaleante de tanta bebida no espírito, conta sua experiência com a bela Carmiña de Sarandón. Moncho, Roque (filho do dono) e Aurora, sua irmã, escutam tudo, curiosos e atentos.
Como entram fregueses, o homem sai. Os garotos o seguem até a casa da moça. Roque, o menino, diz a Moncho: “Vamos ver como ele transa com ela”. E lá vão eles. Mas isto tudo está bem difícil para Moncho, que pergunta: “O que é transar?”
– Roque: Não viu os cães? Quando um cachorro fica grudado na cadela. As pessoas fazem igual. Homens transam com as mulheres quando estão apaixonados. Quando se amam.
Mas como Moncho não é nada bobo, registra ao amigo sua avaliação sobre a cena que acabara de presenciar: “Você disse que ele transava com ela porque a amava. Eles não se amam”. Falemos tudo sobre esse curioso menino, mas verdade seja dita: ele já conhece os primeiros passos da trilha que leva ao verdadeiro amor, quando é realmente amor.
No dia seguinte, na escola, a desordem impera na sala de Don Gregório: “Se vocês não se calarem, me calo eu.” Moncho vendo o descontentamento do professor, acaba por conseguir que seus colegas fiquem em silêncio. Mais tarde, ele conta ao irmão: “Em vez de nos bater, ele ficou calado. O normal seria bater”.
Depois da pelada diária e das brigas entre os garotos, Don Gregório fala da chegada da primavera: “Assim que o tempo for melhorando, faremos a aula de História Natural ao ar livre. Gostam da natureza? (todos dão de ombros). Vocês nunca sequer notaram a natureza. É o espetáculo mais surpreendente que o homem pode presenciar. Vocês sabiam que as formigas têm rebanhos de gado que dão a elas leite e açúcar? Sabiam que algumas aranhas inventaram o submarino milhares de anos atrás? Vocês sabiam que as mariposas têm línguas? A língua das mariposas é como a tromba de um elefante. Mas muito fina e enrolada como uma mola de relógio.
Encantado com os ensinamentos do professor, Moncho pergunta ao irmão: “Você sabe o que é um tilonorrinco? É um pássaro que mora na Austrália. Quando está apaixonado, dá uma orquídea para a fêmea. Uma flor muito bonita que custa muito dinheiro”.
Agora é carnaval e Andrés vai tocar com o grupo de músicos da importante Orquestra Azul. E a música começa: “Amendoins, se você quer se divertir, compre um saquinho de amendoins. Quando a noite está solitária. Apertando meu coração. O vendedor solta sua melodia e se a garota ouvir seu pregão aparecerá na sacada […]”.
Todos dançam… até a linda menina Aurora convida Moncho para bailar. Quando Don Gregório chega, encantado com a graciosidade dos pequenos, diz: “Muito bem, Pardal! Muito bem!” A festa só acaba quando a chuva dá seus primeiros sinais. É a natureza que se manifesta.
Como prometido, Don Gregório está com os alunos explorando a floresta: “Esperem, lembram do que lhes disse sobre a língua das mariposas?
– Moncho: É como uma mola de relógio.
– Don Gregório: Isso mesmo. E para quê? Para alcançar o néctar que as flores possuem no cálice. Vamos, com cuidado, sem incomodá-las.
– Moncho: O que é néctar?
– Don Gregório: Néctar é um suco doce que as flores têm para atrair os insetos. Em troca, os insetos espalham as sementes das flores. Quando você enfia no açucareiro o dedo molhado não parece que você sente o doce como se a ponta do dedo fosse sua língua? A língua da mariposa é assim. Cheirando o néctar, a mariposa desenrola a língua e alcança o fundo do cálice da flor.
No dia seguinte, todo orgulhoso, Moncho leva o presente, um terno novo que seu pai confeccionou especialmente para Don Gregório, em sinal de gratidão pelo carinho e atenção dispensados ao menino.
Já na casa do professor, Moncho olha o retrato de uma jovem mulher. Don Gregório conta, um pouco, de sua história ao pequeno: “Essa é minha pobre esposa. Eu a perdi quando ela tinha apenas 22 anos. E como disse o poeta: ‘Deixou uma cama deserta, um espelho velho e um coração vazio’ – significa que acabei totalmente sozinho. Gosta de ler? Está na hora de ler livros de verdade. Os livros são como um lar. Nos livros nossos sonhos se refugiam para não morrer de frio. Aqui, pegue este: La Isla del tesoro de R.L. Stevenson. Você vai gostar deste. Ah! Tenho um presente para você”.
E lá na floresta, o pequeno descobre…
– Moncho: Peguei-a!
– Don Gregório: Com muito cuidado. Não devemos machucá-las. É uma íris, é linda! Está vendo? Tem quatro asas. A cor e o brilho vem de uma série de escamas sobrepostas, uma ao lado da outra, como telhas de um telhado.
– Moncho: E a língua?
– Don Gregório: A língua chama-se “tromba espiral”. Não podemos ver, agora está enrolada. De outro modo, ela não voaria. Precisamos de um microscópio.
Depois do funeral da mãe de Carmiña (sua meia irmã recém-descoberta), Moncho caminha, pensativo, confuso até encontrar o professor: “Venho de um funeral. Quando as pessoas morrem, elas morrem mesmo, ou o quê?”
– Don Gregório: O que dizem em sua casa?
– Moncho: Minha mãe diz que as pessoas boas vão para o céu e as más vão para o inferno. Meu pai diz que, se houvesse Juízo Final, os ricos iriam com os advogados. Eu… tenho medo.
– Don Gregório: Poderia guardar um segredo? Só entre nós dois: O inferno não existe. Ódio e crueldade… isso é o inferno. Às vezes, nós mesmos somos o inferno.
Agora estamos em 14 de abril de 1936 – “Longa vida à República!” Todos brindam com música e muitos comes e bebes. À frente da banda, lá está Moncho. Eles cantam: “O rei perdeu sua coroa ela virou papel. O ouro foi levado, levado por Berenguer. O rei já não tem coroa, ela é só de papelão. A coroa espanhola não será usada por ladrões […]”. Enquanto isso, a guarda civil espreita.
Na homenagem a Don Gregório: “Hoje, depois de uma vida inteira dedicada ao ensino, Don Gregório está se aposentando. Como prefeito desta cidade, e em nome de todos, autoridades locais, alunos, pai e vizinhos quero deixar clara nossa gratidão pelo que ele fez por nossas crianças. Preparando-as para a vida e especialmente para serem bons cidadãos. Don Gregório, você sabe que não sou bom com discursos. Tudo que posso realmente dizer é: obrigado. Muito obrigado do fundo do meu coração!” Alguns, como Don Avelino, se incomodam com as palavras elogiosas dirigidas ao professor e saem revoltados e pior, ameaçadores.
– Don Gregório: Honoráveis autoridades, queridas crianças e distintos cidadãos. Na primavera, os patos-selvagens retornam às suas casas para procriar. Nada os detém. Se cortarem suas asas, eles nadarão. Se cortarem seus pés, eles se arrastarão com o bico, como um remo contra a corrente. Essa jornada é a razão de sua existência. No outono da minha vida, devo ser cético e, de certo modo, eu sou. O lobo nunca se deitará ao lado do cordeiro. Mas tenho certeza de uma coisa. Se permitirmos que somente uma geração, somente uma geração, cresça livre na Espanha, então ninguém nunca poderá tomar sua liberdade. Ninguém poderá roubar esse tesouro deles! Muito obrigada. Agora vocês, voem!
Enquanto as outras crianças correm e brincam, Moncho caminha, pensativo, sua expressão é triste. Sensível, o professor nota que algo não está bem com o menino: “O que foi, Pardal?”
– Moncho: Nada. Não vamos mais caçar insetos?
– Don Gregório: Quem disse que não? Com suas férias, e eu aposentado, podemos ir todos os dias. Olhe, antes tarde do que nunca. O Ministério da Educação nos deu um microscópio!
O tempo passa, professor e aluno desvendam os mistérios da floresta. “O que é isso?”, pergunta o menino.
– Don Gregório: É um lucanus cervus, cervo voador. É chamado assim, pois suas mandíbulas lembram os chifres dos cervos. Lutam pelas fêmeas. São os maiores besouros da Europa. Ali tem uma! Cuidado. Muito cuidado. Agora veremos a língua pelo microscópio.
Mas Moncho ignora o professor quando ouve as brincadeiras das meninas que se banham no lago. Sua Aurora está lá: “Não quer nadar?”, ela pergunta, graciosamente.
– Don Gregório: Lembra-se do tilonorrinco?
– Moncho: Aquele pássaro que dá à namorada uma flor que é linda e muito cara, uma orquídea.
O professor pega uma flor e a entrega ao menino: “Venha, seja como um tilonorrinco”.
Moncho tira sua roupa, fica só de calçola e vai até Aurora, com sua flor encantada. Agora são só os dois. Ela pede para que ele feche os olhos. Rouba-lhe um beijo e corre… O professor, tendo a luz do sol como companheira, dá liberdade à borboleta, aprisionada em sua mão.
No rádio do armazém, o anúncio: “Durante seu discurso recebido com hostilidade pela Câmara, o Senhor Gil Robles disse que um país pode viver sob monarquia ou república, sob sistema parlamentarista ou presidencialista, sob regime comunista ou fascista, mas não sob anarquia. Ele afirma que a Espanha passa pelo enterro da democracia. O Sr. Calvo Sotelo falou, mais uma vez: ‘Um governo decente não pode ser baseado na constituição vigente. E, em vez de um Estado estéril… eu ergo meu nome sobre este Estado que o chamam de Estado Fascista. E, se eu faço parte de um Estado Fascista, então eu sou um Fascista’”.
Andrés, preocupado, chama o irmão: “Há uma guerra com a África. Eu ouvi no rádio da drogaria”.
– Moncho: Por quê?
– Andrés: Algo sobre Espanha e Deus
Em casa, os irmãos percebem que a mãe está desesperada, queimando tudo que possa incriminar seu marido e a família. Todos são orientados por ela a negar qualquer contato com os republicanos: “Se perguntarem, digam que papai nunca criticou padres e nunca foi republicano! Moncho, preste muita atenção no que vou lhe dizer. Papai nunca deu nenhum terno ao professor. Entendeu? Ele não o presenteou! Entendeu? Ele não o presenteou!”
E as descobertas de La Isla del Tesoro chegam ao fim…
Moncho não consegue dormir. Ele vê a movimentação de policiais na rua: violência e prisão de pessoas inocentes.
No dia seguinte, a família vai à missa. O pai visivelmente abatido.
“Viva a Espanha! Viva!” E o Padre, não tendo a quem recorrer, lamenta: “Deus, perdoe-nos. Perdoe todos nós…”
Ouvimos vozes aqui e ali que crescem, na medida em que a ameaça aumenta: “Traidores, comunistas, bastardos…” A mãe de Moncho endossa o coro: “Ateus!”
Outros dizem: “Vamos executar todos! Comunistas, filhos da mãe!”
– Don Avelino grita: Palhaço! Comunista sem-vergonha!
A mãe não deixa por menos: “Ateu! Ateu!” Ramón, pelo amor de Deus, Grite!
– Ramón: Traidores! Criminosos! Comunistas!
– Andrés: Traficantes! Safados! Seus…
Logo atrás dos “condenados” vem o dono do armazém (pai de Roque e Aurora). Por último, o professor, Don Gregório, há alguns poucos dias homenageado pela população. Quanta ironia… E a mãe, insiste: “Grite agora, Ramón, grite!”
– Ramon, chorando, grita: Assassino! Anarquista maldito! Filho da mãe!
“Você também, Moncho. Grite também!”
O último olhar incrédulo e triste do professor vai para Moncho, que retribui com as palavras: “Ateu! Comunista! Comunista! Comunista!”
O caminhão se afasta, segue seu curso, o caminho da morte aos pecadores. As crianças, e principalmente Moncho, atiram pedras: “Tilonorrinco! Tromba espiral!” Com um olhar de profundo ódio, o pequeno se despede de Don Gregório e suas delicadas mariposas libertas…
A guerra civil espanhola começou…