O quarto nunca foi de muitas cores mesmo. Agora, sem nenhuma mudança nas altas temperaturas do mês de dezembro, parecia frio. Na parede, duas fotos em preto e branco “coloriram” dias passados. Uma delas, Robert Capa sorri ao lado da namorada Gerda Taro, na guerra Civil Espanhola; a outra, minha, da festa do Pau da Bandeira, no município de Barbalha-CE, mostrava homens carregando um pau que serviria de mastro para hastear a bandeira do casamenteiro Santo Antônio. A foto “cortava” a metade da parede na horizontal. Por quase um ano, fechado a chaves, o quarto do pequeno apartamento, agora aberto, não cheirava a nada. Lembranças e traições, todas aparecem de uma só vez. Mesmo com a porta aberta, nada quis sair de lá. Da cama, principalmente. Nem a mais insignificante delas.
Alcides Freire Melo. Texto e Fotos
O travesseiro apoiava fragmentos de tempo e desorganizava as verdades quando exalava ainda um pouco do Brit-Burberry, perfume extremamente delicado, brincalhão feminino e luxuoso. Exatamente assim, era quem deixou todas as marcas e perfumou o que hoje virou um passado sem união, a nenhuma época. As leves lembranças “perfumadas” conseguiram acertar o tempo, provocar a liberdade, incitar a traição, desconsertar a memória. Não acreditava que, fazendo tanto tempo assim, ainda detivesse todos os poderes. Controlasse o presente por meio do passado e ativasse todos os cinco sentidos de uma só vez. Os perfumes são deuses loucos e descontrolados na forma líquida. Irresponsavelmente provocam paixões, tesões. Falam de amor. Irresponsáveis deuses.
Tudo ficara sob a égide do tempo. Nenhum cuidado. No quarto, poucos elementos existiam para desvalorizar mais ainda o cenário. Impossível voltar. Mais impossível ainda seria levar estas lembranças para sempre. Um registro fotográfico imortalizaria talvez, esta involuntária inspiração do quarto de Van Gogh. A câmera! Sempre inseparável companheira, que ficara involuntariamente até agora adormecida dentro da mochila. Chegara o momento de “sacar” e, através da minúscula janela, miniaturizar tudo, ativar o obturador, sensores e esperar as luzes fracas que cortam, e fazem leves sombras serem transformadas em pixels para garantir a eternidade de tudo que não poderia sustentar mais somente na memória.
Uma das funções da fotografia, quando chega a questões pessoais e familiares, seria não deixar nunca morrer, por exemplo, uma breve passagem do tempo de uma criança que joga suas primeiras partidas de futebol. Deixá-la suspensa no ar quando brinca até chegar aos braços e abraços confiáveis do amigo adulto. O uniforme branquinho no primeiro dia de aulas e na volta, completamente embarrado. Fotografar a Monster High, boneca preferida da filha. Monstrinho, boazinha e horrorosa que dorme agasalhada na improvisada cama de papelão até ser “acordada” ao final do dia, para depois das tarefas feitas, fazer esqueléticos desfiles na “passarela” sobre a mesa.
Fotografar a namorada que usa um vestido leve, colorido e corre sobre um fino riacho de águas claras ou rodopia de braços abertos à contraluz do pôr-do-sol da praia. Todos os grandes amores para um dia, conquistaram espaço na carteira e, quando descolorizadas pelo tempo, serem substituídas pela mesma foto por não poderem mais ser refeitas, nunca mais. Fotografar as primeiras rugas. Depois, todas elas. Os cabelos que começaram a perder as cores e ficaram brancos. A mudança para o louro ou outras cores. As nossas fotografias saíram dos álbuns, gavetas e bauzinhos. Elas, as nossas fotografias, estão agora na tela de todos os computadores do mundo, nas nuvens e juntas a todas as palavras viajando pelo espaço cibernético.
No fotojornalismo, a dimensão da fotografia supera e vai além de todos os sentimentos individuais. É uma fotografia que nunca mais poderá parar de “falar”. Sobreviver a todos os tempos. Ser eterna e contar, em várias línguas, a história que só o fotógrafo viu e ouviu. Poderá, sem nenhum esforço, desfazer equívocos, convocar a justiça, um povo e a verdade em todos os idiomas falados ou até mesmo os silenciados do planeta. O fotojornalismo poderá por vezes encontrar dificuldades de fotografar e sem ajuda de legendas falar sobre o final de Brit-Burberry, deixado, “esquecido”, num travesseiro. E nunca, dependendo de quem “escreve” com pixels, deverá encontrar dificuldades de fotografar a dor de uma família que encontrou o corpo do filho assassinado, embora venha a se somar à lágrima presa do repórter fotográfico.