O curta “Olhos de Ressaca” traz cenas de um casal casado há mais de 60 anos que falam de como se conheceram, suas histórias e lembranças de uma vida. Mesclando a troca de olhares, confidências e pequenos detalhes de uma vida a dois, o filme narra as sensações do envelhecer em meio a arquivos pessoais confundidos com o tempo presente, tecendo assim um cenário de sonho e memória.
…e do amor, fez-se a nossa vida, e do carinho, o estímulo que nos faz continuar. (Mussi, 2018)
“Olhos de Ressaca”, direção de Petra Costa (2009), é um delicioso curta-metragem que fala das emoções e sentimentos de uma certa Vera e um certo Gabriel, uma história comum sobre o amor… que bem poderia ter sido a minha e a sua, se tudo tivesse sido diferente.
Um homem e uma mulher casados há 60 anos que divagam acerca da própria história: os primeiros flertes, o nascimento dos filhos, a vida e o envelhecer.
A história nos remete a ideia de “liberdades do espírito” como expõe Morin (2005, p.282):
“O espírito/mente (mind) é, ao mesmo tempo, o centro das sujeições e das liberdades. É centro de sujeição quando prisioneiro da hereditariedade biológica, da herança cultural, dos imprintings sofridos, das ideias impostas e de um poder como superego imperativo no seu próprio interior”.
Quando alguns deixam de estar submetidos às ordens, mitos e crenças impostos e tornam-se, enfim, sujeitos questionadores começa a liberdade do espírito.
As cenas com Vera e Gabriel, libertos, expõem como se conheceram, suas histórias e lembranças. Mesclando a troca de olhares, confidências e pequenos detalhes de uma vida a dois, o filme narra as sensações do envelhecer em meio a arquivos pessoais confundidos com o tempo presente, tecendo assim um cenário de sonho e memória.
Refletir sobre o desejado Forever Young torna-se “quase” uma obrigação em “Olhos de Ressaca”.
Gabriel vive as poesias que recita, mescla sua própria história e crenças com Machado de Assis e a heroína Capitu. Assim, Vera, segundo ele, também tinha olhos de ressaca que o atraíram, capturaram e arrastaram para o fundo do mar. Neste cenário evidenciam-se diálogos e rememorações imersos na troca constante de olhares, flertes e beijos, dignos dos apaixonados, em todas as fases da vida.
A viagem do casal em “Olhos de Ressaca” pode ser resumida pelas lindas palavras de Machado de Assis, na voz de Gabriel:
“Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios”.
Neste rememorar, imagens de arquivo familiar se confundem com imagens do presente, tecendo um universo afetivo e onírico. Através de impressões e relatos, o filme apresenta um diário pessoal e existencial sobre o amor e o inevitável fim. Gabriel confessa “A ressaca puxa para o fundo do mar”, igualmente: as memórias tecidas pelo tempo nos puxam para as nossas próprias profundezas, para a descoberta de nós mesmos.
Faço minhas, para você, as palavras de amor de Vera para Gabriel:
“[…] não é qualquer pessoa que tem momentos assim, como os que eu tenho com você, a gente sente o apoio um do outro só de cruzar o olhar, sem precisar falar nada […]”.
Neste caso, a vida se antecipa à poesia.
Trailer “Olhos de Ressaca”: https://www.youtube.com/watch?v=4vLAFodiu5M
Referências
MORIN, E. O Método 5: a humanidade da humanidade. 3ª edição. Porto Alegre: Sulina, 2005.