Leda nasceu em São Paulo no dia 01de abril de 1941. É a filha mais velha dos 5 filhos do Dr. Carlos Ribeiro de Mendonça (a voz do idoso/janeiro de 2006) e Dona Angelina Ribeiro de Mendonça. Fala com muito carinho dos irmãos, diz que são muito amigos e solidários uns com os outros, que isso é fruto do amor entre os seus pais. É coordenadora das voluntárias do Setor de Oncologia do Hospital Sírio Libanês.
Marisa Feriancic
Leda me conta sua história
Quando eu nasci, meus pais moravam numa chácara de meu avô. Depois mudamos várias vezes de residência. A convivência com os irmãos sempre foi muito boa. Eu sou a mais velha de 5 filhos. Se por um lado minha mãe me colocava muita responsabilidade, por outro dizia que eu ainda era criança, que não tinha idade suficiente para determinadas tarefas. Fomos criados com muito afeto, com muita atenção. Os nossos pais se gostavam muito e isso foi importante na nossa criação. Eu nunca presenciei uma briga entre meus pais. Acho que eles só brigavam dentro do quarto porque todo casal tem uma briguinha. Eu e meus irmãos tivemos uma bela infância, nasci em São Paulo, meus irmãos também, Nos brincávamos muito. Minha mãe era um pouco brava. Meu pai não. Ele era tranqüilo. Era ela quem ditava as normas. Comecei a ter problemas com minha mãe quando comecei a namorar. Tudo era proibido, tudo era errado, ela não deixava nada. Imagine que eu não podia andar de mão dada com o meu namorado porque a mão dele poderia roçar na minha perna. Eu tinha 16 anos.
A Escola
Estudei no Colégio Caetano de Campos que era uma escola modelo. Um espetáculo de escola. Aprendi coisas naquela época que até hoje eu me lembro. Tive professores extraordinários. Quando terminei o ginásio eu já namorava meu marido. Queria fazer o curso colegial. E meu namorado na época não queria que eu fizesse. Achava que eu tinha que fazer o curso de magistério. Chamava-se normal na época. Discutimos e falei com meu pai que não queria fazer o curso normal. Ou eu faria o colegial ou não faria nada. Meu disse: Está bem então não faz nada. Hoje acho a atitude dele foi absurda. Ele deveria ter falado para eu fazer o que eu quisesse. Hoje que eu já sou mãe e avó, eu não faria isso com meus filhos. Não tem querer de namorado. Acabei não fazendo nada. Fiz um curso de prática de enfermagem e outros cursos. O curso de enfermagem me serviu bastante e até hoje eu aplico injeção quando é necessário
O casamento
Comecei a namorar com 15 anos e casei com 19 anos. Casamos muito jovens, ele tinha 22 anos. O casamento civil foi na casa dele. Teve um coquetel, foi um evento gostoso. No dia seguinte eu casaria no religioso. Eu quis ir com o meu marido, até minha casa para ver alguns presentes que tinham chegado e minha mãe não deixou irmos sozinhos. Tive que levar meu irmão junto. Disse para minha mãe que já estava casada, mas não adiantou. Ela argumentava que eu ainda iria me casar na igreja. Eram coisas absurdas, mesmo para aquela época.Minha mãe sempre colocava alguém para sair com a gente. Claro que nós dávamos um jeitinho de dar nossos beijinhos. Meu filho que já é casado, quando tinha 15 anos, um dia falou:
– Mãe, é verdade que você casou virgem?
– Eu falei: é verdade sim filho mas não conta para ninguém.
Nesse ponto foi um tormento e tive alguns problemas com minha mãe. Inclusive, eu acho que isso foi muito ruim para o meu casamento. Eu passei 5 anos namorando e não podia nada. Essa repressão repercutiu muito mal no meu casamento. A parte de sexualidade me atrapalhou.Meu marido não tinha jogo de cintura pra levar essa situação. Nós éramos muito novos. Ele também teve uma educação parecida. Isso foi um aspecto que eu considero negativo na minha educação. Depois minha mãe foi amolecendo com minhas irmãs. Elas não tiveram essa repressão. Não posso falar muita coisa ruim. Nossa família sempre foi ótima, a gente se gosta muito entre os irmãos. Temos a liberdade de telefonar para qualquer um dos irmãos a qualquer hora. Se estiver precisando de alguma coisa, nem precisa dizer o motivo.
A maternidade
Eu estava doidinha para engravidar. Eu queria muito ter um filho. Com 20 anos tive minha primeira filha e com 22 tive a segunda. Quando a mais velha fez 5 anos entrou na escola, logo mais a outra também foi e aí me deu uma pane: O que eu vou fazer agora? Perdi 3 bebês depois das meninas. Foram abortos espontâneos. As crianças passavam a tarde toda na escola e eu tinha tempo sobrando. Tinha muita vontade de estudar, mas meu marido não apoiava a idéia. Em 1968 comecei a pesquisar sobre o assunto e decidi fazer o supletivo. No final dos exames eu engravidei do meu filho. Em 1969 tive meu menino que eu tanto queria, porque já tinha duas meninas. Continuei estudando, e meu marido não gostando da idéia. Fui prestar os exames com uma barriga enorme, perto de dar a luz. Passei nos exames e consegui concluir o segundo grau. Queria continuar os estudos, mas estava difícil, aí começou o conflito, fiquei num drama. Depois que meu filho nasceu ficou mais complicado e eu resolvi que daria um tempo e depois voltaria para os estudos. O bebe era novinho e precisava de muitos cuidados, mas não descartei os estudos. Na gravidez eu tive um problema no ouvido, e perdi 50% da audição. Os médicos falaram que era problema genético. Minha avó paterna também teve. Quando meu filho tinha 8 meses eu operei o ouvido. No ano seguinte, contra a vontade do meu marido prestei vestibular na PUC e entrei na Faculdade de Serviço Social. Foram quatro anos muito difíceis.Tinha três filhos, eu não podia contar com o apoio dele. Tudo que acontecia na casa era culpa da faculdade. Sumia uma meia, era culpa da faculdade; a criança tinha dor de barriga, era problema da faculdade. Eu não podia faltar na Faculdade. Existia uma rigorosa fiscalização com relações às faltas. Eu tinha que dar conta. Se perdesse um dia de aula, teria 4 faltas, porque tinha 4 aulas por dia da mesma disciplina. Eu sempre pensava em largar a faculdade, mas sempre aparecia alguém para me incentivar, dizendo para eu não desistir, pois eu gostava muito do curso. Tive aula com a Profa. Dras Suzana Medeiros. Ela dava aula de comunidade. Lembro-me muito bem de uma aula interessante onde ela contou sobre uma fábrica e seus operários. Era uma fábrica de tintas e os funcionários tinham sérios problemas pulmonares, tipo tuberculose. A fábrica encaminhava para tratamento em Campos de Jordão e dava um enxoval para eles. Eles achavam a fábrica maravilhosa porque dava tudo isso. Eles não percebiam que os problemas de saúde eram causados por falta de segurança no trabalho, não tinham proteção nem filtros. Eles não tinham consciência do risco que estavam expostos e ainda achavam que o patrão era bom. Achei tão interessante que nunca esqueci. Tive aula também com a Luiza Erundina, na verdade a Luiza acompanhava e orientava a gente nos trabalhos de TCC (trabalho de conclusão de curso). O nome das outras professoras eu não lembro. Quando fiquei sabendo que teria estágio obrigatório, 3 vezes por semana, coloquei meu filho na escola. Meu marido achou um absurdo. Naquela época tudo era absurdo para ele. Meu filho tinha 3 anos. Hoje você coloca na escola com 1 ano. Eu morava em frente à casa da minha mãe e ela me ajudou muito.
Fui fazer o estágio numa Instituição, chamava-se Centro de Orientação à Família. Aprendi muito nesse lugar. Participei do planejamento e implantação do serviço social. Em 1974 me formei, fui contratada e fiquei trabalhando na Instituição. Minha chefe era portuguesa e o pai na época era presidente da Casa de Portugal. Em 1975, quando teve a Revolução dos Cravos em Portugal[1] vieram muitos portugueses para o Brasil, e foram recebidos na casa de Portugal que ficou funcionando como um albergue. Ela me colocou lá para atender os portugueses. Depois de algum tempo, fui trabalhar como assistente social numa escola do Guarapiranga, atendia as crianças carentes. Tinha dificuldade para conversar com as mães porque a maioria não comparecia às reuniões. Uma parte dos alunos era carente por quem eu era responsável e os outros eram pagantes. Tive a idéia de montar um bazar usando a seguinte estratégia: pedia para as mães pagantes que trouxessem peças de roupas e utensílios domésticos para a escola e fui organizando as doações. Comecei um trabalho com as mães das minhas crianças. Contei à elas sobre o bazar, e disse que as mercadorias só seriam pagas (trocadas) com pontos. Cada vez que elas fossem às reuniões elas ganhariam 5 pontos. Elas poderiam ir ao bazar e trocar os pontos por mercadorias. O método deu certo. Todas começaram a participar das reuniões. Eu colocava preços, ou seja, pontos, baixíssimos. As mães não faltavam mais às reuniões. Elas iam ao bazar e trocavam os pontos por mercadorias. Saíam com sacolas cheias de roupas. Propus cursos, organizei oficinas de costura, tricô, confeitaria. Algumas falavam que não queriam fazer nada. Só queriam ficar ali sentadas conversando e descansando. Eu concordava, pois achava que era uma oportunidade rara na vida delas. Elas começaram a fazer roupas para os filhos. Faziam cabides decorados, doces e vendiam. O presidente da instituição mantenedora da escola, era chegado aos militares da época e não gostou da minha atitude. Disse que eu estava desvirtuando a Instituição com os meus projetos. Fiquei preocupada, ele quase me arrumou uma encrenca séria. A minha sorte foi que meu sogro era desembargador e mandou uma carta para ele falando que me conhecia. Mesmo assim ele me despediu. Esse foi meu último trabalho como assistente social. Depois fui trabalhar com uma amiga que fazia assessoria de imprensa. Fiquei durante um tempo. Aí inventei de fazer musse de chocolate para restaurante. Isso era uma novidade na época. Foi em 1982. Morava no bairro de Moema numa casa grande com um salão muito bom e lá eu trabalhava. Cheguei no limite máximo de uma produção caseira. Eu fazia 1200 musses por semana. Eu tinha 2 empregados, era um casal e 2 dias da semana eles me ajudavam a trabalhar.Teria que partir para uma produção industrial. Minhas filhas já estavam casadas e eu queria mudar para um apartamento. Em 1985 nós mudamos para o apartamento e acabei com a história dos musses porque não tinha espaço.
Mudanças
Meu casamento nessa época começou a ficar ruim. Não por causa da mudança, quando comecei a faculdade ele já não estava bom. Resolvemos construir um sítio em Bragança para tentar melhorar nosso relacionamento. Compramos um terreno e começamos a construir. Foi uma época muito boa. È como se fosse um filho nosso. Começamos mandando cortar o mato, passar trator, íamos escolher pedras, comprar móveis, decorar o jardim, criar bichos. Sitio é um espaço onde você sempre está mexendo, não termina nunca. Isso é bom, revigora. Coisas que eu não gostava aprendi a gostar e apreciar coisas novas. Construímos forno à lenha, aprendi fazer leitão pururuca. Comprava livros sobre criação de animais e aprendia um monte de coisas. O sítio ficou lindo. Eu lembro de que quando era jovem e não gostava de sítio. Meu avó paterno tinha um e eu era obrigada a ir para lá todos os finais de semana. Eu ficava muito brava, estava na idade de encontrar as amigas, ir aos bailinhos, festas do clube e minha mãe me obrigava ir para o sitio. Eu ia reclamando, torcendo para o carro quebrar, atolar, e nada disso acontecia. Hoje eu entendo que para minha mãe devia ser bom, mas ela bem que podia me deixar com uma tia. Nunca tinha tido vontade de ter um sítio. Mais velha, comecei a ir para o do meu pai em Bragança e comecei a gostar. Fiz curso de jardinagem, de horta, de queijos, curso de pães, sabia fazer um pouco de tudo no sitio. Dava injeções nas galinhas, cuidava dos bichos. O sítio foi crescendo e ficando bonito. A grama cresceu, os canteiros que eu fiz estavam com flores. Nessa época, que foram mais ou menos uns 12 anos, nosso casamento melhorou. Quando chegava sexta-feira eu já ficava feliz porque ia para o sítio. Depois que ficou pronto, os filhos, os netos iam para lá. Era uma convivência gostosa. Aqui em São Paulo é mais difícil. Nós íamos todos os finais de semana. Quando eu levava meu neto para a escola, passava num lugar que tinha planta chamada: amor agarradinho. Por causa desse nome eu plantei na entrada da garagem do sítio. Quando eu via essa planta na rua ficava triste. Essa separação foi um corte na minha vida. Eu já era avó, era uma vida de família muito melhor, mais completa. Eu encontro meus filhos hoje. Nós estamos bem, mas era diferente.
As perdas
Meu filho casou em 1995. Um dia, em 1996, eu ia com meu ex-marido de carro para o sítio, ele me disse que queria se separar, que o nosso casamento não estava bom. Eu não acreditava no que ouvia.Tentei conversar com ele, mas ele estava irredutível. Nos separamos e eu fiquei um ano muito mal. Fiquei péssima. Meus filhos me ajudaram muito. Meus filhos e meus irmãos. Meu pai também. Não sei como eles me agüentaram. Eu chorava muito. A psicoterapia também ajudou. Uma das coisas importantes que eu perdi com a separação foi esse convívio com o sítio. Sinto muita tristeza quando lembro daquele espaço. Meus filhos ainda vão para lá. Eu não vou mais. Até hoje me dói o coração quando lembro. Só de pensar fico triste. Era uma parte da minha vida, uma parte de mim. Uma parte boa. Eu escolhia pedra por pedra. Foi uma perda muito grande. Antigamente, nas férias de janeiro e julho, eu viajava com meus netos para o sítio, depois disso comecei a viajar com eles para outros lugares. Estou separada há 9 anos, mas acho que não consegui superar até hoje. Uma época eu estava melhor, depois piorei outra vez. Não sei te dizer o que foi que aconteceu. Nos primeiros anos de separação eu não podia nem ouvir falar o nome dele. Perto de completar um ano, resolvi fazer uma viajei sozinha para Ubatuba. Coisa que eu nunca tinha feito. Conheci novas pessoas, fiz novas amizades e grandes descobertas. Minha vida começou a melhorar, comecei a sentir-me mais segura. No segundo ano de separação eu e meu ex-marido voltamos a conversar e ele me convidou para fazermos uma viagem juntos. Fomos para Cancun. Foi uma viagem maravilhosa, ficamos muito bem, até parecia lua de mel e ele falava em voltar. Durante 2 anos nós saímos, viajávamos, íamos para o sitio, com os filhos, sem os filhos, mas eu tinha certeza de que não iríamos voltar. Fui viajar para a Europa com uma amiga e quando voltei soube de fatos que não me agradaram e rompemos definitivamente. Meu ex-marido casou novamente e mora em outra cidade. Parei de ir para o sítio. Nunca mais fui lá.
A saúde
Em setembro do ano passado eu resolvi fazer uma cirurgia de catarata. Já tinha feito em uma vista e resolvi fazer a outra. Fiz os exames requisitados pelo médico, estavam todos normais. Durante a cirurgia, comecei a sentir muita dor de cabeça. Conversei com o cirurgião e ele me deu um analgésico. A dor de cabeça não passou. Ao contrário, foi aumentando. Terminada a cirurgia, fui para a sala de recuperação, mas a dor aumentava. Eu segurava a cabeça de tanta dor, era uma dor horrível. A enfermeira disse que devia ser de fome. Por causa do jejum. Eu sabia que não era. O jejum era de 6 horas e eu tinha tomado um super café. Não conseguia pisar no chão de tanta dor. Queria ir para casa, deitar, ficar quieta. Minha prima, quase minha irmã, que me acompanhava insistia para subir no meu apartamento e eu dizia que não precisava. Subi sozinha e pedi para a empregada ligar para minha filha e avisar que já tinha terminado a cirurgia, que eu já estava em casa, mas que não poderia falar com ela porque estava com dor de cabeça. Ela não conseguiu falar com minha filha e já estava indo embora quando eu pedi para ela deixar a porta aberta. Eu pressentia que era uma dor de cabeça muito estranha. Muito forte. Minha outra filha estava passando próximo da minha casa e ligou-me, dizendo que já tinha ligado várias vezes e eu não atendia. Eu não consegui falar direito com ela. Falava bem baixinho que estava com muita dor. Ela perguntou se queria que ela fosse em casa eu disse que sim. Ela entrou em contato com a outra irmã e elas foram para lá. Eu nem as vi chegar. Eu comecei a ter um derrame ali. Vomitei, desmaiei, elas me levaram para o Hospital. Eu tive um aneurisma hemorrágico. O médico me explicou que a gente já nasce com isso. O sangue foi para a meninge. Tive que operar a cabeça. Fiquei no centro cirúrgico 11 horas. Depois soube que meus familiares passaram o dia inteiro esperando o término da operação. Fiquei com dó deles. Passei 32 dias no Hospital. Fiquei 15 dias na UTI. Pelos exames constataram 4 aneurismas. Um estourou e ficaram 3 para operar. Na cirurgia eles eliminaram só três. O outro tinha que operar depois.
Nesse momento, Leda me explica que usa uma faixa na cabeça, para cobrir o corte da cirurgia. O cabelo ainda está curto, pois foi raspado.
Quando voltei ao consultório do médico para tirar os pontos, ele me disse que eu ainda tinha mais um aneurisma. Completou dizendo que tem gente que passa toda uma vida e não sabe nem da existência dele. Morre idoso sem saber que tem o aneurisma. E que eu deveria pensar se queria ou não fazer outra cirurgia. Eu respondi na hora que queria. Que não precisava nem pensar. Eu não queria era pensar que eu poderia ter outra dor de cabeça e correr o risco de outro derrame. Não queria passar por isso. Todos acharam que eu era corajosa por ter tomado essa decisão. Mas eu fui para a cirurgia com muito medo, sabia dos riscos. Fiz a segunda cirurgia no final de Janeiro deste ano e saí do hospital no começo de Fevereiro.
A recuperação
Fiquei impressionada com meus filhos. Mesmo com família, trabalho, todos conseguiram me dar muita atenção. Fizeram tudo por mim quando eu fiquei doente. Eles foram extraordinários. Todos se revezavam no hospital. Meu filho mora em Bragança, vinha à noite depois do trabalho, saía tarde daqui. Eles foram de uma dedicação incrível. Passavam a noite comigo no hospital. As duas filhas ainda me acompanham para ir ao médico até hoje. Não deixam eu ir sozinha. É horrível ficar dependente. Se tenho um aniversário, alguém tem que me buscar ou tenho que pensar com quem eu vou. Ainda estou me recuperando. O neurologista clinico, na primeira consulta me dizia que eu não podia fazer quase nada. Não podia dirigir, não poderia sair sozinha, não poderia dançar, não poderia beber, fumar, nada. Fui ficando com raiva. Eu, ingenuamente pensando que teria alta. Eu andava com alguém me segurando. Não andava sozinha. Precisava que alguém me levantasse do sofá, não conseguia fazer nada sozinha. Não falava quase nada. Só gesticulava com a cabeça sim ou não. O médico dizia que meus filhos tinham que me fazer falar. Eu falava muito devagar com voz pastosa. A voz não saía, não conseguia falar. Não consegui abrir a boca direito para comer. Quando eu colocava o garfo na boca ele batia no meu dente. Quando retornei ao cirurgião da primeira cirurgia, ele me disse:
– Dona Leda eu não posso ajudar a senhora se a senhora não responder às minhas perguntas.
Eu disse a ele que eu não falava porque não lembrava das palavras. Acho que ele entendeu. Queria um copo de água e quando ia pedir não lembrava o nome do copo. Esquecia o nome das palavras. Comecei lentamente a andar e a falar. Tive que fazer muita fisioterapia e faço ainda. Não fiquei com nenhuma seqüela. A segunda cirurgia foi um pouco mais fácil porque não era hemorrágico.
Estou mais distraída, mais esquecida do que eu era. Quando retornei ao neurologista, achei que ele me daria alta. Comecei a perguntar o que eu poderia fazer e ele respondia não a tudo. Enquanto ele falava não a tudo, fui ficando com raiva dele. Fiquei com tanta raiva que comecei a pensar em consultar outro neurologista. Ao mesmo tempo, eu sentia que precisa falar alguma coisa para expressar minha raiva, alguma coisa agressiva, sei lá. Então falei para ele.
– Tem uma coisa que eu quero te dizer: acho que você me deu algum remédio estranho que está me dando muito tremor nas mãos e tem coisas delicadas que eu não consigo fazer.
– O que por exemplo?
– crochê. .
Ele começou a sorrir. Eu fiquei com mais raiva, olhei bem nos olhos dele e perguntei:
– Posso saber do que você está rindo?
– Ele levantou, ficou em pé, continuou sorrindo e disse:
– É porque eu sou médico. De cada 100 pessoas que tem o que você teve, 95 saem do hospital ou mortas ou com grandes seqüelas. Das 5 que sobram, 4 saem com pequenas seqüelas. E somente 01 sai como você, sem nada. E você vem me falar de crochê?
Fiquei olhando na cara dele e começamos a dar risada. Achei incrível a resposta. Ele não falou bravo, falou firme e eu achei sensacional. O Dr. Rogério Tuma é um grande neurologista. É extremamente cuidadoso.
O clínico disse que até um ano após a cirurgia ainda tem risco de ter convulsão. Tomo anticonvulsivo diariamente. Mas acho que não vou ter não. Achei que minha recuperação terminaria agora em julho, mas terminará só em fevereiro. Até lá eu não posso dirigir, não posso sair sozinha, a minha vida ficou limitada. Tinha uma vida muito ativa. Era dona da minha viva, freqüentava aulas de sapateado no clube, ia fazer visitas, viajava. Não sou dependente total, mas tenho uma certa dependência das pessoas para sair. Logo depois da cirurgia, eu nem banho conseguia tomar sozinha. Tinha 24 horas de companhia. Nem sei como fiquei boa. O médico me falou que só uma, em 100 fica bem como estou. As pessoa me falam:
– Agradeça a Deus. Eu digo, agradecer o que? Eu ter tido um derrame nessa idade? Não vou agradecer nada!
– Agradeça você ter saído bem.
– Então tá, então eu agradeço.
Dentro do azar eu tive muita sorte. Hoje minha vida é mais dentro de casa. Tenho mais dificuldade para sair.Tenho muita dor no corpo por causa da fribromialgia, mas não posso tomar mais remédio. O médico falou que depois do incêndio é que vemos as pequenas coisas estragadas. Eu sei que não tive grandes seqüelas, nem pequenas.Mas eu tive micro seqüelas. Por exemplo, eu não lembro tudo. Meus filhos controlam mais minha vida. Principalmente financeira. Às vezes eu esqueço de pagar alguma conta.
Quando Leda fala sobre que sua memória já não é como antes, eu tenho vontade de rir (tal como seu médico). Mas me contenho. Ela é de uma coerência incrível. Não se atrapalha com nada. Sorri das coisas sérias. Tem um ótimo humor. Só soube do acidente vascular porque ela me contou. Nem o lenço amarrado em volta da cabeça me chamou a atenção. Achei que era mais um charme dela. Então, nem conto para ela que quando estamos um pouco mais velhos (e eu me incluo nessa categoria), nossa memória vai ficando um pouco pior, e isso não significa que estamos doentes, só estamos mais velhos.
Novos tempos
Enfrentei muitas coisas, mas hoje estou bem melhor e tenho um namorado. Começamos o namoro há 2 anos. Ele tem colaborado muito na minha recuperação, mas ainda tenho receio de me magoar. Eu o conheci na escola de dança de Ivaldo Bertazzo. Ele também estudava lá. Meus filhos sempre me incentivaram a ter um namorado. Eu sempre dizia que não queria saber de ninguém. Insistiam que seria bom ter uma companhia. Um dia ele me ligou e me convidou para assistir o espetáculo do Ivaldo Bertazzo. Pensei no que meus filhos falavam e aceitei. Ele veio me buscar, fomos assistir ao espetáculo e começamos a namorar. Estamos indo muito bem. Ele é uma ótima pessoa, compreensiva e está me ajudando bastante na recuperação. Meus filhos estão bem, meus netos, e meus irmãos também. Minha filha que é advogada lançou um livro[2] sobre os direitos dos homossexuais. Já participou de vários programas de televisão, falando sobre o livro. Saiu na “Folha de São Paulo”, na Revista “Isto É” e no jornal “O Estado de São Paulo”. Ela tem um site chamado ”amorlegal”. Tenho muito orgulho de todos eles.
Sobre o envelhecimento
Não estou velha, mas já estou a caminho. Eu penso minha vida dividida assim: uma antes do derrame e outra após o derrame. Hoje eu sou mais pessimista com relação a velhice. Não é uma coisa racional. É que eu sinto o que é ser dependente. Não acho nada bom envelhecer. Cada vez fica mais limitado, mais difícil, tem que tomar não sei quantos litros de água por dia, ir 10 vezes por ano ao ginecologista, fazer um monte de exames. Atualmente faço uma pilha de exames.
Leda fala tudo isso sorrindo.
Eu acho que o envelhecimento queira ou não, é uma limitação. Você vai ficando cada vez mais limitado. Vejo meu pai. Tudo bem que ele tem um bom humor e tem 91 anos. Ele está bem para a idade dele, mas enxerga pouco, anda com dificuldade, escuta mal. Eu não quero viver até os 90. Acho que até os 80 anos está muito bom. Não quero ter essa dependência. Antes de eu ter o derrame, eu escrevi uma carta no computador, fiz três cópias, assinei e encaminhei para os meus filhos. Na carta eu dizia assim: “ Enquanto eu estou lúcida e independente, quero dizer a vocês que quando estiver velha eu não quero morar com nenhum filho. Eu quero ir para uma clínica de repouso e não dar trabalho para a família.”
Meus filhos riram e não deram a mínima. Meu filho disse que eu não reconheci firma então não tinha valor. Algumas pessoas têm tempo, tem dinheiro, mas não podem usufruir por causa da idade. Meu pai, por exemplo, queria para ir para a Espanha conosco. Ele chegou à conclusão que a viagem era muito longa, cansativa. Ele tem razão. Depois de uma certa idade é muita dependência.Tem que andar pendurado no outro ou usando bengalinha, eu não quero esse negócio de usar bengala depois de velha. E aí fica um apoiado no outro? E depois dos 80 anos você não vai querer namorar mais.
Não sei.
Agora tenho uma vida mais limitada, mas é temporário. Tenho a Clara, minha cachorrinha, que é minha filha caçula, tem 7 meses, que não larga de mim, porque eu fico muito em casa e ela acostumou com a minha presença.
Leda no Hospital Sírio Libanês – O trabalho voluntário
Eu não quis mais trabalhar como assistente social. Desde que parei de trabalhar resolvi que queria fazer um trabalho voluntário. Tenho uma grande amiga que trabalha no Hospital Sírio Libanês. Me inscrevi , fiz um curso, passei por uma entrevista, eles me ofereceram alguns setores. Tinha uma vaga na oncologia, eu fiz um estágio e depois de um tempo fiquei na coordenação das voluntárias. Hoje tenho outra coordenadora trabalhando comigo. Eu sinto um pouco de cansaço. Mas acho que vai passar. Trabalho no hospital 1 ou 2 vezes por semana. Nós oferecemos balas aos pacientes e acompanhantes. A bala é o nosso instrumento de trabalho. A bala é um pretexto para nos aproximarmos dos pacientes. Nem todas as voluntárias percebem isso e acham que o serviço é pouco. Às vezes eu ofereço bala e as pessoas recusam. Eu faço um comentário para elas: Desse jeito vou perder o emprego. Elas sorriem pedem a bala e aí já se fez um primeiro contato. Elas chamam a gente de fada madrinha ou anjo cor de rosa por causa da cor do uniforme. Nosso objetivo é humanizar o hospital, dar um colinho, é tirar o foco da doença do paciente. Uma vez, eu ofereci bala para uma senhora, ela não aceitou e depois me chamou e disse que queria a bala. Virou para mim e falou:
– Fiquei pensando: bala tem açúcar e açúcar é calmante, eu estou tão nervosa, eu estou com câncer no cérebro e eu não sei se vou conseguir vencer isso. Queria ver meus netos crescerem.
Ela começou a chorar e eu falei:
– Você têm netos?
Ela respondeu que tinha e dali a pouco começou a contar sobre os netos, os filhos, a família, etc. Ficamos conversando, falando das gracinhas das crianças e o tempo foi passando até chegar a hora dela ser chamada. Aquela horinha que ela estava angustiada, aflita, esperando o atendimento foi minimizada. Acho que os médicos estão com uma formação mais humana. Os hospitais estão mais humanizados, os médicos também.
A religião
Sou católica tecnicamente. Fui batizada, acredito em Deus, mas não freqüento missa. Não pratico a religião.
Você quer deixar uma mensagem?
Quero deixar um beijo para meus filhos. Posso falar mais alguma coisa? Eu acho que as pessoas têm que ser otimistas, mas também tem que ser realistas. Existe uma frase que diz: “A pessoa feliz não é aquela que não tem problemas, é que ela enxerga os problemas de outra forma. Deixa o problema menor”. È importante a pessoa pensar nisso mesmo durante o envelhecimento. Você acaba se descobrindo com outros talentos, noutras atividades, como eu que descobri o voluntariado. Podemos ter coisas interessantes na velhice. A mulher, principalmente, é mais habilidosa em práticas manuais e pode ter vários tipos de trabalhos. Fazer exercícios, dançar, procurar ver a vida de uma forma mais leve.
Mas penso também que otimismo é característica de cada um. Não adianta só falar para visualizar as coisas diferentes e você obedece. Acho que é uma sorte ser mais otimista. Eu sou otimista. Não só nasci com aneurisma, mas nasci também com otimismo, mas não faço esforço para ser assim, é uma coisa que brota naturalmente. Gostei de falar, é bom fazer uma revisão da vida.
[1] No dia 25 de abril de 1974, caiu a ditadura fascista que dominou Portugal ao longo de 48 anos. Deflagrado pelas Forças Armadas, o movimento recebeu o apoio do povo, e o que era para ser um levante militar tornou-se de fato uma revolução. Os soldados se surpreenderam ao receber flores e uma ovação popular. O evento ficou conhecido como Revolução dos Cravos. O dia entrou para a história por marcar a queda de um governo autoritário e corrupto. Segundo o autor da narrativa, Lincoln Secco, nessa data alguns sonhos se transformaram em realidade – como a chegada da liberdade – e outros foram odiados em busca de uma vitória para salvar o país.
[2] Sylvia Mendonça Amaral, Manual Prático Dos Direitos De Homossexuais E Transexuais. Editora Ediçoes Inteligentes (www.amorlegal.com.br).