Em julho ela fará 70 anos. Uma vida de mudanças, amores, religiosidade, trabalhos e amizades. Advogada formada fazia cinco anos, decidiu largar tudo e tentar uma vaga quando estava sendo criada a revista Veja. Conseguiu. Daí em diante teve uma vida profissional entre os Civita e os Bloch. Deve ao teólogo Leonardo Boff, depois de uma entrevista, o seu retorno à Igreja Católica, via Teologia da Libertação. Faz as contas e se assusta: nestes 70 anos já se mudou de casa 48 vezes. Sem erro de revisão: 48 vezes. Agora está em Petrópolis, “onde me sinto em casa”. Alegre, amiga, inflexível diante das injustiças. Há 70 anos, uma grande mulher.
Texto: Guilherme Salgado Rocha / Fotos: arquivo pessoal
Portal – Dia 3 de julho serão 70 anos. Quem é a Marilda?
Marilda – Sou filha de Elza Meirelles Varejão e Accácio d’Almeida Varejão, nasci no Rio de
Janeiro, na Tijuca, no Hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no dia 3 de
julho de 1943. Ou seja, sou uma carioca da gema. Mas vivi na Cidade Maravilhosa somente
depois de adulta: a família morava em Teresópolis, onde fiz o curso primário no Ginásio São
Paulo, das irmãs Angélicas. Aos dez anos, para fazer o ginasial, vim para Petrópolis, onde
estudei no Colégio Santa Catarina, também de freiras.
Portal – O sobrenome Varejão suscitava muitas piadas dos amiguinhos de escola?
Marilda – Acredita que não?! Quando menina, nunca tive apelidos. Mais tarde, adulta, as amigas começaram a me chamar de Marildex e Marildetes. Atualmente sou a Didiz ou Diz. Isso começou há quase 30 anos, quando Joana, filha mais velha da minha irmã, Elizabeth, queria se comunicar com a madrinha. Cinco anos depois, Juliana, caçula da Beth, inventou a Diz. E o carinho da Jo e da Ju criou a Didiz: volta e meia alguém me chama assim. Coleguinhas delas e as respectivas mães me conheceram por esse nome à época em que estudavam na escola Favo de Mel, aqui em Petrópolis. Já para os filhos do meu irmão, Carlos Manoel, sou a tia Dinda: Fabiana, a sobrinha mais velha e afilhada, começou me chamando assim, e seus irmãos, Gabriel e Flávia, por serem mais novos, a imitaram. Agora, para encerrar este capítulo:
hoje, melhor que tudo neste mundo é ouvir, do alto do seu 1 ano e 8 meses, Bernardo – primeiro sobrinho-neto e paixão maior da minha vida, filho da Joana, me chamar quando quer minha atenção: Didiz, Didiz, Didiz! Ah, já ia me esquecendo: nunca tive filhos. Daí sempre ter querido ser uma tia militante.
Na Foto, a tivó coruja brinca deitada no chão com seu 1º sobrinho neto Bernardo.
Portal – Como foi a adolescência?
Marilda – Na adolescência fui bastante religiosa. À época do ginásio era Jufista, da Juventude Franciscana, e catequista do então frei Evaristo, mais tarde cardeal Arns, na Favela do Lixo, em Petrópolis. No segundo ciclo, para fazer o Curso Técnico de Contabilidade (queria ser
advogada) com as irmãs do Santa Catarina, pedi a meus pais para me internarem no colégio delas em Juiz Fora, Minas. Naquele ano, aqui em Petrópolis, elas haviam aberto somente o curso Clássico. E, na minha cabeça, colégio misto nem pensar. Em Juiz de Fora, aos sábados, ensinava catequese numa instituição destinada aos filhos dos portadores da Doença de Chagas. Ali, provavelmente sentada na grama com as crianças, algum inseto me mordeu as pernas, o que resultou numa piodermite braba. Como a doença de pele exigia curativos diários feitos por minha mãe, voltei a Petrópolis e fui para o tão temido Colégio Carlos Alberto Werneck. Melhor impossível: lá descobri que menino não morde e a bossa-nova. Foi um tempo inesquecível.
Portal – E aí entra no curso de Direito?
Marilda – Quando me preparava para o vestibular, conheci meu primeiro marido, Almir Platz, falecido há uns dois anos. Entramos juntos na UCP – Universidade Católica de Petrópolis, e assim concluímos o curso de Direito. Já estávamos separados: fiquei noiva quando entramos na faculdade, e do 3º para o 4º ano nos desquitamos. Essa ação de desquite foi minha primeira causa. Advoguei cinco anos. Inscrita na OAB como solicitadora acadêmica e depois como advogada, trabalhei nas comarcas de Petrópolis e Teresópolis. Fui chefe do Contencioso da Prefeitura de Teresópolis e, vestindo beca, cheguei a fazer uma defesa no 1º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro.
Portal – Mas você é jornalista. Deixou o Direito?
Marilda – Aconteceu assim: um dia, estava redigindo uma petição. Era uma jovem e bem- sucedida advogada. Mas decidi, do nada, tomar outro rumo. É que meu pai entrou no escritório de Teresópolis com uma revista Realidade na mão, me dizendo: “Olha que coisa interessante para quem tem peito!”. Vi o anúncio e respondi: “Ora, peito por peito sua filha tem”. Dito isso,tirei a petição da máquina, coloquei ali uma folha em branco e escrevi uma carta endereçada à Editora Abril, em São Paulo, que recrutava jovens com curso superior de todas as áreas para lançar uma nova revista.
Na foto, com Roberto Civita e alguns colegas da Abril na festa surpresa “A Não Despedida de
Marilda Verejão”, quando se aposentou.
Portal – E veio?
Marilda – Devo àquele nem tão pensado gesto e a São Paulo o que a vida fez de mim. Eram 1700 jovens que se candidataram ao 1º Curso Abril de Jornalismo, e foram aprovados 100 para fazer a revista Veja, no emblemático ano de 1968. Comecei na Abril no dia em que a empresa se mudava das salas ocupadas na rua João Adolfo, no Centro de São Paulo, para o seu novo prédio, na Marginal Tietê. Estava no Hotel Amália, na rua Xavier de Toledo, quando prenderam ali a atriz Norma Benguel, e próxima o suficiente para testemunhar a repressão na rua Maria Antonia. Sou um dos poucos jornalistas da imprensa brasileira que trabalharam para três gerações de Civitas: “seu” Vitor, o inesquecível VC; seu filho RC, Roberto Civita (no cursinho da Veja, no auditório do Terraço Itália, ele era chamado de Robert e fumava cachimbo…), e com o Gianca, Giancarlo Civita. Sou do time dos “mamãe, voltei!”, que era como o RC chamava aqueles que saíam da casa, trabalhavam em outras empresas, mas voltavam sempre à sombra da arvorezinha, símbolo da Abril. Comigo isso aconteceu quatro vezes nos mais de 25 anos que trabalhei lá.
Na foto, Marilda em recente encontro com ex-colegas do Grupo Abril: Ana Paula Dondon,
Maria Duprat e Roseli Belaparte, de pé; Sílvia Candal, Marília França e Helena Gomes de
Oliveira, sentadas.
Portal – E o que você fazia?
Marilda – No Grupo Abril dirigi revistas, trabalhei na sucursal do Rio, tenho textos publicado sem quase todas as suas revistas, e remodelei a comunicação interna com o informativo PSC – Para Seu Conhecimento, que mereceu três Prêmio Aberje consecutivos, que é a Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, e um Prêmio Acelp – Associação de Comunicação Empresarial de Língua Portuguesa, como o melhor veículo de comunicação empresarial da língua portuguesa. Um trabalho que foi reconhecido: quando me aposentei, me ofereceram uma baita festa surpresa. E trabalhei em dois momentos na falecida Bloch Editores. Lá dirigi por quatro anos a revista Pais & Filhos, comandei a redação da sucursal de São Paulo e fui redatora da Manchete por outros quatro anos.
Portal – Ficava entre as duas famílias, os Civita e os Bloch…
Portal – Por favor, cite outros jornalistas que a influenciaram.
Marilda – Há alguns que não posso deixar de fora. E procuro imitá-los pela grande cultura que têm, além da honradez e ética, como Zuenir Ventura, Mino Carta e Alberto Dines. Faço o contraponto com essas qualidades às pessoas, jornalistas e não jornalistas, que “ostentam” o que mais abomino: falta de escrúpulos, vaidade, desfaçatez, mentiras e frivolidade.
Portal – Ali acima, ao se referir ao Almir, citou-o como ‘primeiro marido’…
Marilda – O amor é meu combustível. Quando relembro o passado, como não poderia deixar
de ser, a memória logo vai buscar quem, de um modo ou de outro, foi importante na minha
vida. Então, as figuras do grande jornalista Luis Edgar de Andrade e do fotógrafo Heitor Hui
surgem de imediato. Nem podia ser diferente. Vivi com o Luis Edgar cinco anos, guardando
dele as mais ternas e doces lembranças; fui casada com o Heitor quase dez anos. E essas
relações seguramente são as grandes responsáveis por tantas mudanças entre São Paulo e
Rio. Embora mudar deve ser coisa do meu DNA: se contar as feitas ainda criança, com minha
mãe, já troquei de endereço 48 vezes.
Portal – E agora em Petrópolis, é mudança definitiva?
Marilda – Foi a última e certamente a definitiva. Não sei explicar muito bem, mas aqui me sinto em casa. E foi aqui que conheci Leonardo Boff, em 1979, quando ele dirigia a Editora Vozes e eu trabalhava na revista Claudia, da Abril. Entrevistei-o sobre o livro O rosto materno de Deus, que acabava de lançar. E, desde então, me tornei próxima dele: nosso papo mereceu um Destaque na categoria Entrevista do Prêmio Abril de Jornalismo daquele ano e as ideias do teólogo fizeram a minha cabeça. Por intermédio dele voltei à Igreja, da qual me afastara havia muitos anos. E acompanhei todo o sofrimento que o Vaticano lhe impôs por obra e graça principalmente do cardeal Ratzinger, mais conhecido hoje como Bento XVI.
Portal – Na linha da Teologia da Libertação?
Marilda – A Teologia da Libertação desde então é o norte da minha vida, que divido em duas:
uma antes dele e outra depois do Boff. Razão pela qual, em 1999, de novo em São Paulo, me aproximei do frei Betto e dos seus grupos de oração. Uma caminhada que cada dia busco ampliar, seja em nossos encontros e retiros, seja pela leitura dos textos desses mestres e na minha prática diária. Há quem diga que a espiritualidade e o apego a Deus e às religiões se tornam maiores com o avanço da idade. Pode ser. No meu caso, acho que isso acontece em função de uma fé que foi sendo fortalecida nessa caminhada.
Na foto, com Margarida Genevois, na comemoração dos 90 anos da amiga e companheira de
grupo de oração.
Portal – E fazer 70 anos?
Marilda – Envelhecer é ótimo quando se atinge a paz que hoje vivencio. Mas também é muito chato: a gente vai se tornando mais morosa, preguiçosa, demora mais para fazer as coisas.Vou me sentindo mais cansada. A pele, que sempre foi seca, resseca ainda mais, obrigando a usar hidratantes constantemente, especialmente nas mãos e nos pés. São frequentes os lapsos de memória: começo fazendo uma coisa, mudo para outra, e para outra, e mais outra, e só muito mais tarde me lembro que devia ter regado as plantas da varanda. Além disso, preciso tomar vários remédios de uso contínuo: anti-hipertensivos, cálcio, para artrite etc.
Pior: o sono demora a chegar e acaba sem haver necessidade logo de manhãzinha.
Portal – Tem do que se queixar?
Marilda – Não, não tenho do que me queixar. Juro! Vivendo sozinha há uns 30 anos – claro, tive alguns namorados nesse meio tempo –, nunca soube o que é solidão. Porque tenho amigos e atividades de sobra para preencher minha vida. Complicado, às vezes, é encontrar uma desculpa para me “livrar” deles, pois curto cada vez mais minha sozinhez, quando assisto às minhas novelas e filmes, leio bons livros e revistas, vou a palestras, faço caminhadas e cursos. Agora mesmo, depois de responder às perguntas do Portal, vou a uma palestra sobre obudismo.
Portal – Você comentava que ainda encontra tempo para atividades sociais e culturais.
Marilda – Isso não pode faltar em minha vida. Há três anos participo do Grupo Questões Humanas Contemporâneas, no Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, no qual dá aulas o sociólogo Luiz Gonzaga de Souza Lima, amigo do Boff e autor do livro A refundação do Brasil – rumo à sociedade biocentrada. Além disso, organizo, promovo e divulgo o lançamento de algum amigo aqui na cidade: já trouxe o Laurentino Gomes (1800), a Iza Salles (O coração do rei) e o Walter Diogo, cujo A história dos presidentes foi lançado no Palácio Rio Negro. E fui jurada nas três primeiras edições do Prêmio Maestro Guerra Peixe de Cultura, que visa incentivar os agentes culturais locais, premiando-os nas categorias música, canto coral, teatro, cinema, literatura, artes plásticas, dança, artes visuais, audiovisual, comunicação e notório reconhecimento (avalia a obra e seu autor ao longo dos anos). Para acompanhar tudo isso vivia em vernissages, espetáculos, eventos. Precisava muito sair, e acabei declinando da função.
Portal – E a vida em Petrópolis, essa cidade tão importante culturalmente?
Marilda – Há uns três anos moro no Centro Histórico de Petrópolis, vizinha ao Museu Imperial. Antes, vivia no bairro Mosela, próximo ao Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, do qual fui secretária executiva da Associação de Amigos do Dr. Alceu. Lá criei, com dois outros amigos, um movimento de cidadania e cultura, o Mosela Viva. Promovemos rodas de choro, cinema e artesanato na pracinha local, tornando-a um point da cidade. Mas atualmente ando bem mais caseira. Moro num prédio cuja portaria conduz ao agito da cidade, mas meu apartamento dá de frente para um pedacinho de mata atlântica com direito a passarinhos, uma coruja e árvores, vez por outra visitadas por lindos miquinhos. Levo uma vida tranquila, numa cidade segura e belíssima. Acho o máximo para uma provecta anciã! O que não excluia possibilidade de uma viagem: ano passado, por 40 dias e solita, andei por Portugal, Espanha e Itália, quando conheci Santiago de Compostela, Assis e Barcelona. E agora, no Carnaval, fui para a Bahia: fiquei dez dias na paradisíaca pousada Marau Bahia Boa, e de quebra conheci o Bataclan e o Bar Vesúvio, em Ilhéus.
Na foto, Marilda e o amado Jorge, curtindo uma noite no Vesúvio, em Ilhéus, BA.
Portal – Marilda, por favor, como você vive o amor aos 70?
Marilda – Meu amor eu o semeio em cada esquina, sempre que tenho a chance. E vejo- o retribuído na alegria dos meus dias. E sexo?, poderia me perguntar. Ah, essa já é outra história. Acredito que encontrando alguém especial, dono de ideias e ideais semelhantes aos meus, essa chama se reacenda. Mas hoje, a não ser que seja perguntada sobre isso, posso afirmar: morreu. E quer saber mais? Antes ele do que eu…!