O jogo da memória sempre foi um dos passatempos preferidos da família de Lucca. O campeão imbatível na brincadeira é vô Pietro, um italiano bem-humorado que adora reunir todo mundo em torno do tabuleiro.
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Por isso, quando o vovô-craque começa a perder o jeito da disputa, é sinal de que algo de muito errado está acontecendo. Em pouco tempo, o patriarca estaria confundindo o nome de filhos, netos e da própria mulher.
O mais recente livro da premiada escritora Laura Bergallo, porém, não tem nada de sombrio. Pelo contrário: é uma história eletrizante, cheia de aventura e de surpresas. Tudo isso porque, inconformado com o problema, Lucca acaba descobrindo que a memória de seu avô foi roubada por uma quadrilha de perigosos bandidos, que ganham dinheiro vendendo as lembranças alheias. Ou seja: apesar do diagnóstico médico, ele acredita que a perda de memória de seu avô e de outras pessoas seria, na verdade, culpa de uma organização criminosa.
Com a ajuda de seus primos Gabriela e Rafael, e uma mãozinha extra do computador, Lucca arma um plano para recuperar a memória de vô Pietro. O garoto, afinal, tem um incentivo a mais para se arriscar tanto: só ele sabe o quão ricas são as recordações de seu avô.
Inserindo crianças em contextos adultos
Mais do que narrar contos de fadas ou histórias totalmente fantasiosas, os livros infantojuvenis acabam servindo para inserir as crianças e pré-adolescentes em contextos adultos e ensiná-los a lidar com problemas bastante complexos. A premiada escritora Laura Bergallo faz isso de maneira primorosa em “Jogo da Memória” (Escrita Fina, 2010). A trama narra a relação de Lucca com seu avô Pietro. Os dois costumam se divertir com um jogo da memória dos famosos mosaicos de Aquileia, uma cidade do norte da Itália. Enquanto estão reunidos em volta do tabuleiro, o garoto ouve com atenção as recordações do avô sobre seus primeiros amores, as aventuras juvenis e a guerra. No entanto, depois de um tempo, o patriarca da família não só começa a perder o jeito para o jogo como também passa a confundir o nome de filhos, dos netos e da própria mulher.
Enquanto a medicina credita o incidente à Doença de Alzheimer, Lucca desconfia de que a memória de seu avô foi roubada por uma quadrilha de perigosos bandidos, que ganham dinheiro vendendo as lembranças alheias. Junto com seus primos, ele tenta desmascarar a organização criminosa e se envolve em uma aventura eletrizante e cheia de surpresas.
Leia abaixo um pequeno trecho extraído do livro.
– Lucca, vai ver se está tudo bem com seu avô lá na varanda – pediu vovó, que conversava com mamãe na sala de jantar lá de casa, numa tarde em que eles passaram pra nos visitar depois de uma ida ao supermercado.
Eu larguei o videogame na mesma hora e fui ver vovô. Cheguei em silêncio, porque achei que ele podia estar dormindo. E lá estava ele, sentado na cadeira de balanço de que tanto gostava, mas bem acordado.
E fazendo uma coisa que me surpreendeu bastante, conhecendo vô Pietro como eu conhecia: lendo atentamente um livro de poesias de mamãe, que ela havia deixado sobre a mesinha da varanda. Logo ele, que sempre achou ler poesia a maior perda de tempo.
Continuei chegando perto devagar, pra não interromper aquela cena tão rara. Me aproximei por trás e, sem que ele notasse, pude ler o poema que chamava tanto sua atenção. Era do livro Muitas vozes, de Ferreira Gullar, que mamãe tinha ganhado do papai. O poema era curtinho, e uma parte dizia assim:
Aqui me tenho Sem mim
Nada lembro Nem sei
À luz presente Sou apenas um bicho Transparente
E ele não virava a página. Desde que eu estava ali, já tinha dado tempo pra ler o mesmo texto umas dez vezes, mas vovô não mudava de página ou desviava os olhos, como se estivesse fascinado por aquelas palavras.
Foi quando eu percebi que ele estava chorando.
Não consegui entender bem por que, e fiquei sem saber o que fazer. Não queria que ele soubesse que eu, mais uma vez, o tinha visto com o nariz vermelho e os olhos inchados de choro. Então fiquei o mais quieto que pude, e fui saindo pé ante pé, até chegar na sala e tentar disfarçar, pra mamãe e pra vovó, o nó na garganta que quase não deixava minha voz sair.
– E aí, Lucca? – perguntou mamãe, meio desconfiada do meu jeito estranho. – Está tudo bem com seu avô?
– Tudo – eu disse, tentando parecer o mais normal possível. – Ele está tirando um cochilo, só isso.
Então as duas, mais tranquilas, retomaram o papo animado que estavam tendo antes. Mas eu não consegui tirar da cabeça as palavras do poema que tanto impressionaram vovô.
Foi nesse dia que eu desconfiei seriamente que ele estava indo embora pra sempre.
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