Haiti é aqui. Pelo menos para a freira gaúcha Santina Perin que está, há décadas, ligada ao Haiti. Nos anos 90, vivendo naquele país, enfrentou, além da pobreza do povo que aprendeu a amar, uma feroz ditadura militar, que perseguiu implacavelmente religiosos, oposição, estudantes. Nada diferente das demais ditaduras latino-americanas, se não estivesse permeada pela extrema pobreza da imensa maioria dos haitianos, cuja única saída, naqueles tempos, era o mar, em direção à Flórida.
Guilherme Salgado Rocha / Fotos: Celso Aranha Júnior
E Santina, então com 54 anos, decidiu, em 1994, em um gesto da mais plena solidariedade, entrar em um fragilíssimo kannteè (barco, em creole, a língua haitiana) e enfrentar o maior desafio de sua vida. Lançar-se à aventura, ao lado de 66 haitianos, forma de denunciar o que estava se passando no pequeno país do Caribe. O kannteè comportava 33 pessoas, nele viajavam 66. Mar infestado de tubarões, Santina não sabia dar uma braçada. Nele também estavam dois padres – um guatemalteco, o outro canadense. Foram 14 horas em alto-mar.
Ao menos aquele barco foi salvo da morte, depois da intervenção do então presidente Itamar Franco. Ao saber, pela televisão, de que uma freira brasileira estava em alto-mar, correndo risco real de morte, telefonou ao governo norte-americano, que enviou um “navio enorme”, segundo as palavras de Santina, e levou a bordo todos os ocupantes do kannteè.
De volta ao Brasil, sua história rendeu o livro “Pense no Haiti, reze pelo Haiti”, escrito por mim.
Depois de muitos anos sem contato com a irmã Santina, emocionado a reencontrei nas páginas do jornal O Estado de S.Paulo, vivendo em Manaus. Trabalhando, é fácil concluir, em favor dos milhares de haitianos que entraram no Brasil, pela Amazônia, na mesma luta: a sobrevivência.
Consegui falar com Santina, agora com 71 anos, em um telefonema de 40 minutos, transformado nesta entrevista para o Portal. As fotos foram feitas por um amigo, Celso Aranha Júnior, que trabalha em Manaus. Ao enviá-las, Celso pediu “desculpas pelo atraso”. “Ela é muito ativa, foi difícil marcar um horário”. Santina impressiona. E emociona.
Irmã Santina, sua vida parece mesmo um grande giro de 360º. Nos anos 90, no Haiti. Agora, com os haitianos, no Brasil.
São situações diferentes, claro, mas não muito. Pois nelas, lá e aqui, está a extrema fragilidade desse povo. Vivi 22 anos no Haiti, e vi a ação terrível da pobreza, mas enfrentada com grande coragem pelos haitianos, e aqui vemos a ação dos coiotes.
O que são os coiotes?
São esses que ganham em cima da miséria alheia, esses malfeitores que verdadeiramente traficam seres humanos, sempre por dinheiro. Os coiotes facilitam a vinda dos haitianos, com promessas vãs, e os entregam à própria sorte.
Qual o trajeto percorrido pelos haitianos que vêm para o Brasil?
Saem do Haiti em direção à República Dominicana, país vizinho. Depois até o Panamá, em um pequeno avião. E vêm de ônibus, descendo pelo Equador, Peru, pegam barco até a Colômbia, chegam a Tabatinga, que fica a dois dias e meio de barco de Manaus. Já entraram cerca de 3 mil, e as notícias dizem que eles não param de chegar a Tabatinga. Mas a presidente Dilma já limitou a entrada, não sabemos o que será desses que chegaram. É um drama, é um drama…
Irmã: e em quais atividades os haitianos trabalham, quando conseguem emprego, evidentemente?
As mulheres vão trabalhar como empregadas domésticas. Mas há a dificuldade da língua. Os homens na construção civil, em uma fábrica de plásticos. Encontramos, graças a Deus, nessa luta em favor dos haitianos, alguns empresários fraternos, solidários, que percebem o que se passa e não se omitem. Dão emprego, buscam meios de colocar os haitianos.
E há, por parte dos desempregados da cidade, algum tipo de preconceito em relação aos haitianos?
Apenas resquícios, felizmente. Muito pouco, e isso nos fortalece.
Qual é o seu trabalho, como é o dia a dia?
Pertenço à congregação do Imaculado Coração de Maria, cuja sede é em Porto Alegre. Nosso carisma, seguindo o que quis a fundadora, Bárbara Maix, é perceber a vontade de Deus no rosto do pobre, de quem sofre. Então, todos os dias, eu e outras três queridas irmãs visitamos as casas das famílias haitianas, alugadas com muito sacrifício. Tentamos saber o que precisam. Saber falar o creole ajuda enormemente, pois converso muito com eles. Agora mesmo estamos às voltas com a urgência em conseguir uma cadeira de rodas, para uma haitiana que chegou muito debilitada ao Brasil.
Há muitos idosos entre os haitianos?
Pouquíssimos. Talvez uns 15, 20, somente.
E crianças?
Muito poucas também. Pois a maioria que chega ao Brasil é composta de homens, em busca de trabalho, para poder mandar dinheiro ao Haiti, ajudando a família que ficou lá. Ou, quem sabe, depois de certa estabilidade, conseguir trazer todos.
Aos 71 anos, como vive essa sua fase de vida?
Com muita, mas muita energia, coragem e esperança. Sinto-me fortalecida pela presença de Deus em minha vida, e pelos haitianos, que nos mostram como o dom da vida é infinitamente belo.
E em relação aos diversos governos – municipal, estadual e federal, o que se pode esperar?
Esperar somente não. Temos que esperar, mas ir à luta. Agora, confiamos que as autoridades tenham discernimento, decisão e atitude diante dessa dramática situação.