A previdência brasileira está desequilibrada e possui um enorme déficit atual (presente) e atuarial (futuro). Isto significa que algo precisa ser feito para tornar o sistema sustentável e evitar a inadimplência ou até mesmo a falência. Mas não existe consenso nem sobre o diagnóstico do problema e nem sobre as prescrições.
A reforma da previdência é absolutamente inevitável. Ela vai acontecer, de uma forma ou de outra, pelo simples fato de que não há como manter regras fixas, quando a economia e a demografia estão mudando de forma acelerada. Tudo na vida e na sociedade é impermanente. Não existe mágica capaz de eliminar a matemática. Não há como fazer mágica para apagar a diferença entre receitas e despesas. Resta saber: qual o tamanho do problema e qual a reforma que se quer para atender as necessidades das pessoas e do país.
A previdência brasileira tem como base o sistema de “repartição simples”, onde a cobrança de contribuições das pessoas que estão engajadas nas atividades econômicas financia as aposentadorias, pensões e assistência social das pessoas inativas (beneficiárias do sistema).
A repartição simples envolve uma tensão permanente entre solidariedade e conflito intergeracional. Evidentemente, as gerações mais novas só financiam as gerações mais velhas se houver perspectiva de receber de volta, no futuro, no mínimo, o montante equivalente aos benefícios recebidos na atualidade. A solidariedade intergeracional é o cimento que liga o passado, o presente e o futuro.
Mas paralelamente, existe um conflito latente, pois as gerações mais novas querem pagar o mínimo possível e as gerações mais velhas querem receber o máximo viável. Em geral, o conflito é reduzido quando a economia e a produtividade crescem, mas é acirrado quando há recessão ou estagnação do Produto Interno Bruto (PIB). Não é fácil achar o ponto de equilíbrio.
A previdência brasileira está desequilibrada e possui um enorme déficit atual (presente) e atuarial (futuro). Isto significa que algo precisa ser feito para tornar o sistema sustentável e evitar a inadimplência ou até mesmo a falência. Mas não existe consenso nem sobre o diagnóstico do problema e nem sobre as prescrições.
A Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, realizou um seminário sobre a Reforma da Previdência no dia 20 de fevereiro de 2017. São divergentes as opiniões apresentadas, como se pode ver nas apresentações que estão disponíveis no link apresentado nas referências no final desse artigo.
O déficit da previdência pode ser visto na tabela abaixo, apresentada no estudo de Barbosa Filho e Ottoni (20/02/2017). Nota-se que o déficit estava em torno de 40 bilhões de reais até 2012, o que representava 0,8% do PIB. Porém, a partir de 2013 o déficit cresceu rapidamente e “explodiu” com a grande crise econômica de 2014 a 2016, quando houve redução da renda per capita brasileira e redução da taxa de ocupação no mercado de trabalho. Em percentagem do PIB o déficit da previdência estava em 2,1% do PIB, o que é muito alto para o estágio atual da estrutura etária da população brasileira. O Brasil gasta muito mais com a previdência (em proporção do PIB) do que os demais países do mundo, inclusive aqueles com o índice de envelhecimento muito maior do que o brasileiro.
Se o déficit da previdência já é elevado atualmente, ele tende a ficar muito maior no futuro devido às mudanças da estrutura etária e o fim do bônus demográfico. A população em idade ativa vai diminuir nas próximas décadas e a população idosa vai aumentar rapidamente. Ou seja, a percentagem de contribuintes vai cair e a percentagem de beneficiários vai aumentar. No ano 2000 havia 7,5 pessoas em idade ativa para cada idoso e esta relação deve cair para 1,6 pessoas em 2060, conforme as últimas projeções do IBGE.
Diante do quadro crítico, o governo lançou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287. Um ponto central na proposta de Reforma é o estabelecimento de idade mínima para aposentadoria, pois a média das aposentadorias no Brasil é muito precoce comparada com outros países do mundo. Aumentando a idade média de aposentadoria abrandaria o problema pelos dois lados: as pessoas passariam mais tempo contribuindo e menos tempo como contribuintes. Isto aliviaria o déficit atual e reduziria as projeções de desequilíbrios futuros. Ao contrário do que se diz, os maiores perdedores não serão os trabalhadores de baixa renda, mas as pessoas que recebem elevados salários e que aposentam por tempo de contribuição e vivem muito mais do que a sobrevida média.
Os críticos dizem que a esperança de vida é baixa no Brasil e que muita gente iria morrer antes de aposentar ou então ficar pouco tempo na aposentadoria, se a idade mínima for 65 anos. Mas há muito desentendimento a este respeito, pois não se pode confundir a esperança de vida ao nascer com a sobrevida aos 65 anos. Segundo o IBGE, responsável pelo cálculo oficial da Tábua Completa de Mortalidade, as mulheres tinham uma esperança de vida ao nascer, em 1940, de 48,3 anos e os homens de 42,9 anos. Esta baixa esperança de vida ao nascer era devido à alta mortalidade infantil. Para as pessoas que sobreviviam até os 65 anos a sobrevida era de 9,3 anos para os homens e 11,5 anos para as mulheres. Portanto, do ponto de vista da previdência, o importante não é a esperança de vida ao nascer e sim a sobrevida na época da aposentadoria (seja 55, 60 ou 65 anos).
Ainda segundo o IBGE, as mulheres tinham uma esperança de vida ao nascer, em 2015, de 79,1 anos e uma sobrevida aos 65 anos de 19,8 anos.
No mesmo ano, a esperança de vida ao nascer para os homens era de 71,9 anos e a sobrevida aos 65 anos era de 16,7 anos. Assim, um homem que aposentar aos 65 anos terá uma probabilidade média de ficar 16,7 anos aposentado e não 6,9 anos que seria a diferença entre a esperança de vida ao nascer e a idade mínima (71,9 – 65 anos). Assim, o que vale é o tempo médio de vida que, em qualquer recorte social, é sempre maior do que a esperança de vida ao nascer.
Outro ponto polêmico da Reforma é a redução ou eliminação da diferença entre aposentadoria de homens e mulheres. Esta proposta propõe a igualdade de gênero na idade de aposentadoria, mesmo considerando que as mulheres têm um tempo médio de vida bem maior do que os homens, conforme pode ser visto na tabela acima. Porém, muitas pessoas argumentam que a menor idade à aposentadoria é uma política afirmativa de gênero para compensar os menores salários e a dupla jornada de trabalho feminina. A diferença de tempo para se aposentar é defendida com o argumento de que a mulher trabalha mais em casa no cuidado da casa, dos filhos, do marido e de outros parentes (especialmente dos idosos).
Porém, o sobre trabalho feminino com as tarefas de reprodução devem ser enfrentado com a igualdade de gênero nesta área. Ou seja, os homens precisam dividir as tarefas domésticas com as mulheres (como a Suécia tenta fazer) e não premiar esta desigualdade com regras favoráveis na previdência. Quando as mulheres são recompensadas pelo sistema previdenciário, implicitamente, o Estado convalida as desigualdades de gênero nas tarefas de reprodução. As políticas públicas devem defender a igualdade entre homens e mulheres em todos os aspectos, incluindo as condições de trabalho produtivo extradoméstico, salários iguais para tarefas iguais e repartição igualitária do tempo das tarefas no mundo da reprodução.
Para além dos aspectos acima, há quem diga que a previdência social brasileira não tem déficit e que a Reforma em curso não passa de um golpe contra os direitos dos trabalhadores para favorecer o setor financeiro. O fundamento desta crítica se baseia na proposta constitucional de ampliar as fontes de receita (impostos) para financiar a seguridade social brasileira. Além disto, houve muitos desvios (corrupção) ao longo das décadas e há muitos sonegadores que devem volumes vultosos para a previdência.
Evidentemente, se maiores parcelas dos impostos forem direcionadas para a previdência o déficit pode diminuir ou até desaparecer. Mas ai o déficit irá para outro setor e será difícil aumentar a carga tributária, que já está em 35% do PIB e é uma das maiores do mundo para países com o nível de desenvolvimento do Brasil. Muitos devedores da previdência são empresas já quebradas e não há como recuperar todas as dívidas. Além disto, este tipo de dívida é um estoque que pode contribuir, para os casos possíveis de recuperação judicial, para reduzir o déficit em um ano, mas não no longo prazo.
Estão corretas as pessoas que apontam para o fato de que as despesas com juros da dívida pública provocam um déficit público maior do que o déficit da previdência. Ideólogos do governo argumentam que primeiro é preciso fazer a reforma previdenciária para depois reduzir juros, o que é uma espécie de argumento cínico. Os críticos do governo dizem que primeiro se deve reduzir os juros para depois fazer reforma da previdência, o que também é inviável, já que as taxas de poupança são muito baixas no Brasil. O correto seria reduzir os juros e reduzir o déficit da previdência ao mesmo tempo, pois o Brasil está em meio à uma grande crise fiscal e não tem recursos para aumentar os investimentos depois de quatro anos de queda da renda per capita (de 2014 a 2017).
Há também aqueles que apresentam bandeiras atraentes, mas de cunho demagógico, como: “Nenhum direito a menos”. Acontece que na situação de crise atual o que menos se tem são os direitos respeitados. Quem mais sofre com a crise atual são as jovens gerações que não possuem emprego, mesmo com a Constituição Federal garantindo o direito ao trabalho. O Brasil tem hoje, segundo a PNADC, um montante de mais de 12 milhões de pessoas no desemprego aberto e cerca de 25 milhões de pessoas desocupadas ou desalentadas (conceito de desemprego ampliado). Este número é maior do que toda a força de trabalho da Espanha. Se estas pessoas estivessem empregas e com trabalho decente haveria um grande aumento das receitas previdenciárias e o déficit poderia ser reduzido drasticamente.
O Brasil deixou de fazer as reformas necessárias no período bom do superciclo das commodities. Agora, a reforma da previdência é uma realidade inexorável. Mas ela não é uma panaceia. Outras reformas são necessárias, como a tributária e a financeira. Reduzir os juros reais para os patamares internacionais é urgente (há vários países com juros negativos), para propiciar a volta dos investimentos e a criação de emprego com aumento da produtividade. É um erro ficar procrastinando as reformas. O Brasil precisa de um conjunto amplo de medidas para evitar o empobrecimento geral da população como tem acontecido nestes últimos quatro anos. São necessárias, por exemplo, políticas para diminuir e erradicar a violência que prolifera nos presídios, nas cidades e no campo. Inclusive a violência contra os animais e contra os ecossistemas.
A crise fiscal brasileira é dramática, pois o déficit nominal chegou a 10% do PIB e a dívida púbica cresce de forma exponencial. O Brasil já está revivendo a tragédia grega e, se nada for feito, pode caminhar rumo ao colapso da Venezuela. O país já está passando pela segunda década perdida (a primeira foi nos anos 1980) e pode chegar aos 200 anos da Independência numa tendência submergente irreversível. O Estado do Rio de Janeiro é um exemplo a não ser seguido.
No atual estágio de desenvolvimento e de impasses crescentes, a nação está parindo uma geração perdida, pois há milhões de jovens que avançaram na educação, mas não encontram oportunidades no mercado de trabalho. Sem a contribuição dos jovens a previdência não se sustenta e faltará recursos para viabilizar o bem-estar dos idosos. O conflito intergeracional pode eclodir de maneira imprevista.
Evidentemente a reforma da Previdência, conforme a PEC 287, não resolve todos os problemas e poderia ser melhor formatada no Congresso. Porém, as diversas denúncias de corrupção da operação Lava-Jato, a falta de legitimidade e popularidade do atual governo e as propostas populistas à esquerda e à direita podem inviabilizar qualquer solução sensata para a crise fiscal.
O clima de confronto e de disputa política que tem prevalecido nacionalmente não vai ajudar o país a achar um rumo para a situação de calamidade atual. O seminário ocorrido na Fundação Getúlio Vargas foi uma contribuição. Outros debates civilizados e democráticos precisam ocorrer. O material disponível no link abaixo pode ajudar a esclarecer o assunto. O tema é complexo, envolve muita paixão, mas só a análise objetiva dos fatos pode apontar uma saída para os impasses atuais. Indubitavelmente, é preciso uma nova repactuação nacional.
Referências
FGV, Reforma da Previdência: Análise da PEC 287/2016, Rio de Janeiro, 20/02/2017. Disponível em: https://epge.fgv.br/conferencias/seminario-reforma-da-previdencia-2017/downloads.html
Fernando de Holanda Barbosa Filho e Bruno Ottoni. Previdência: Números, Simulação, Fatos e Custos, FGV, Rio de Janeiro, 20/02/2017 https://epge.fgv.br/conferencias/seminario-reforma-da-previdencia-2017/files/Fernando-Holanda-Filho-seminario-reforma-da-previdencia-2017.pdf