Gilberto Gil e o envelhecer

Eis que, no último domingo (27/11), encontramos Gilberto Gil na coluna de Mônica Bergamo (Folha de S.Paulo) falando sobre a velhice: “A memória não é tão aguda, a gente não lembra mais de tanta coisa como antes. Tem muitas modificações de energia, de disposição geral. Pode ser sentido como perda, mas também como iniciação para um outro modo do ser”.

Luciana H. Mussi

 

gilberto-gil-e-o-envelhecerÉ estranho porque pensamos nos nossos ídolos, sempre, eternamente jovens e, um dia, um tanto surpresos, percebemos que eles envelhecem e com isso nós também. Parece que eles funcionam como uma espécie de espelho de nós mesmos, nos contando sobre a passagem do tempo, mergulhos em acontecimentos que, há muito, julgávamos perdidos. Uma música, um gesto, um cheiro e tudo volta, em verdadeiras avalanches de emoções. Ver Gil falando e vivendo a velhice dessa maneira energética, como uma fase “iniciática, é incrivelmente reconfortante. Nos convence que o mesmo pode acontecer conosco, e por que não?

Estando prestes a completar 70 anos (o que acontecerá em junho de 2012), ele diz que já está “vivendo a idade”. E vê “novos ganhos, novas aquisições, novas configurações”. Compara a juventude e a maturidade ao ruído e ao silêncio.

“Quando o ruído desaparece, deixa um vácuo, que é seguido pelo silêncio. E este preenche tanto quanto o ruído preenchia. É algo de outra natureza, que se constitui também como plenitude”, diz ele ao repórter Diógenes Campanha. “Certos aspectos da atividade cerebral ganham outra forma de se apresentar. Fisicamente, não me sinto debilitado. Resumindo, estou gostando da velhice.”

Que efeito é este que o silêncio proporciona a certas pessoas? O mestre da atmosfera silenciosa, o falecido cineasta sueco Ingmar Bergman (1918 – 2007), não se considerava uma pessoa solitária. A Ilha de Farö, local onde ele passou os últimos anos de vida, não representava a solidão, mas o prazer de estar com ele. É apenas isso – o maravilhoso mundo do silêncio. Gil, de certa forma, sente da mesma maneira: a ausência de ruídos – o silêncio como um estado delicado e pleno de ser e viver as coisas.

E neste rememorar de todos os anos vividos por ele, ou ao menos aqueles registrados em uma foto, um bilhete, um desenho, um vídeo, uma letra, uma partitura, serão apresentados ao público. Segundo a reportagem, este acervo digital do artista será disponibilizado através do site (www.jobim.org/gil/) mostrando mais de 30 mil documentos de sua vida.

Gil conta como o rico e extenso material foi reunido ao longo dos anos: “Isso vem sendo construído há 15, 20 anos, quando a Flora [referindo-se a sua esposa] mandou encadernar minhas anotações. Ela vinha arquivando sistematicamente todo o material, correspondências, comandas”. O acervo foi organizado pelo Instituto Tom Jobim, que já fez o mesmo com a obra do maestro, além de Dorival Caymmi e Chiquinha Gonzaga. O patrocínio é do projeto Natura Musical.

“O acervo contém uma parte relativa à vida pública, mas também a parte pessoal, como é a própria vida de todo mundo”, diz Gil. “É um acesso desejado por nós, uma invasão benigna. Com Twitter e Facebook, é tão comum mostrar sua vida às pessoas que esse arquivo estático não chega a ser novidade”.

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Gil chega aos 70 anos em paz com a mídia, com as eventuais invasões, que ele define como “benignas”, e bem resolvido com sua produção, vida afetiva e lembranças. Ele se revela intimamente, sem reservas e orgulhoso pelo caminho traçado.

A foto de 1992 mostrando Gil rodeado por Flora, com quem está casado há 31 anos, e as três ex-mulheres, Belina de Aguiar, Nana Caymmi e Sandra Gadelha mostra sua forma, especial, de se relacionar, principalmente com as mulheres. Era o seu aniversário de 50 anos. “Minha relação com elas se deve muito à gestão da Flora. Quando chegou, ela compreendeu que isso era uma grande família da qual passou a fazer parte”. A filha Preta já disse que vê o pai como um rei africano, que tem as mulheres em volta e delega funções à prole – os príncipes.

Ele diz: “Não é de todo equivocada. Deve ser genético”. Conta que quando tinha “dois, três anos”, a mãe lhe perguntou o que queria ser na vida. “Falei que seria ‘musqueiro’, minha corruptela infantil para músico, e pai de menino”. E a vida lhe foi bem generosa: gerou oito filhos em três casamentos.

A primeira foto da qual Gil tem lembrança foi tirada por ele aos quatro anos. Foi levado pelos pais para um estúdio em Salvador. Ele lembra: “As máquinas não eram portáteis, ficavam em uma sala. Era uma coisa meio ameaçadora, como ir ao consultório do dentista”. O estúdio era “muito esmerado. Tinha um doce, um suco, pra gente ficar relaxado”.

Voltou outras vezes ao local para cliques ao lado da irmã, Gildina. “Éramos muito ligados. Lembro da gente amassando barro no fundo do quintal. Moldávamos tijolos com caixa de fósforos e fazíamos pequenas edificações. E eu participava com ela das brincadeiras de boneca. Fazia comida e roupas”. Foi com ela que Gil formou a primeira dupla musical, aos 11 anos. Apresentavam-se em concursos de cantores, ganhando prêmios como pinguins de geladeira, arranjos de flores e, às vezes, dinheiro. “Seriam cinco, dez reais hoje em dia”.

E como não podia deixar de ser, as letras de música e repertórios de shows dividem o site com política. Lula, Ciro Gomes, ACM, Collor e ideias, visões particulares do cantor/artista.

Com relação ao ex-senador Antonio Carlos Magalhães (ACM), morto em 2007, a reportagem conta: ACM aparece numa “carta aberta a um velho triste como eu”. Era resposta a uma “carta queixosa” de ACM. “Ele disse que, ao contrário de mim, meu pai sempre foi correligionário fiel a ele”. Gil diz ter “a impressão” de que o desentendimento ocorreu porque discordou de uma crítica de ACM à nomeação de Pelé como ministro do Esporte no governo FHC. “Nossas divergências eram em questões técnicas, não afetivas”.

Como Ministro da Cultura, Gil recebeu carta de ACM pedindo apoio a um livro sobre as igrejas da Bahia, “porque sei que os assuntos de nossa terra têm não só sua boa vontade como também a prioridade”, disse ACM. Um dia ele disse que eu precisava olhar mais a Bahia. Tinha uma série de projetos lá e fiz uma lista rápida. E ele disse: “Precisa olhar ainda mais”.

É natural que um homem como Gilberto Gil tenha tanto para lembrar e contar. Viveu como qualquer um de nós, teceu seu próprio caminho e se fez, coerente com suas ideias e eventuais desconfortos.

Gil, um homem que navegou por muitos mares: viveu a arte, fez política, sentiu a religião e amou. Talvez, Gil já seja um “Mensageiro entre Dois Mundos” [em referência ao documentário sobre a vida e obra do fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger], o mundo daqui, que conhecemos e o de lá, para onde caminhamos.

Referências
BERGAMO, M. (2011). Aos 69 anos, Gilberto Gil diz que gosta da velhice. Disponível Aqui. Acesso em 27/11/2011. FOTO: imagem do arquivo pessoal de Gilberto Gil, extraído do site: Acesse Aqui 

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