“A gente sente, ainda vive, tem vontades, tem imaginação e o corpo não obedece” Eva Rath, 72 anos

Meu nome é Eva Rath, tenho 72 anos. Nasci no dia 7 de agosto de 1934, em Budapeste, na Hungria. Vivi lá até os 10 anos de idade. Sou filha única e sofri pra caramba por não ter irmãos. Saímos de lá por causa da guerra. Com a vinda da segunda Guerra Mundial sofremos muitos bombardeios e ficamos refugiados na Alemanha.

 

 

Minha mãe chamava-se Helena e meu pai Lajos (Luis). Ele nasceu em 1903, na Transilvânia, e minha mãe em 1908, em Budapeste.

Vivemos na cidade de Budafok. É um distrito de Budapeste. Meu pai era navegador do Danúbio. Ele navegou durante 13 anos. Quando ele saiu da navegação, conheceu minha mãe e eles se casaram. Tiveram uma vida muito difícil. Em 1933 era convulsão mundial. Meu pai tinha saído recentemente da navegação, estava sem emprego, e em 1934 eu nasci nessas condições. Tumulto, falta de comida, e outras dificuldades. Minha mãe sempre contava que eles compravam algumas gramas de toicinho defumado e eu comia junto com eles. Aquela era a minha comida de bebezinho. Não tinha jeito, era o que tinha para comer. Depois foi melhorando, mas sempre tinha algo agitando, perturbando o ar. Eclodiu a segunda guerra mundial e, de repente, todos os países entraram na guerra. Em 1944, com a aproximação das tropas russas, conseguimos embarcar num trem que era muito difícil naqueles tempos. Cada um fugia do um jeito que podia com carroças ou mesmo a pé. Fomos em direção à Alemanha. Tínhamos muito medo da ocupação dos russos e dos americanos também, porque eles viviam bombardeando a gente. Enquanto eles se aproximavam pelo Leste, nós íamos fugindo para o Oeste.

Foi assim que eu, meu pai e minha mãe, deixamos a nossa Pátria. Na verdade éramos muitos. Todos fugindo dos russos. Guerra é assim: quem perde, perde mesmo. Perde honra, perde casa, perde pátria, perde tudo. Execução sumária, estupros é normal.

Minha tia foi estuprada, duas semanas depois ela morreu. Ela tinha um bebezinho de 6 meses. Não é nenhum sonho, nenhum susto, é a realidade mesmo. Não dá para ficar e esperar para ver os acontecimentos.

Refugiada de guerra

Nós fomos para a Alemanha e a guerra logo terminou. Conseguimos até escapar. Os americanos eram mais humanos, nunca forçaram nada conosco. Se eles queriam moças era à base de chicletes, chocolates, cigarros, a base de trocas. Na tropa que vinha dos EUA tinha muitos húngaros. Em 1925 vieram muitos húngaros para o Brasil e foram também para os Estados Unidos. Esses já eram os filhos de húngaros. Entre a tropa de ocupação da Alemanha tinha muitos deles. Eram mais humanos conosco.

Vivemos quatro anos refugiados na Alemanha. Ali não tinha perigo de colesterol, não tinha nada. Não tinha comida para ter colesterol alto. Eu era menina, tinha 10 anos.

Durante a época em que ficamos refugiados, mudávamos muito de lugar. Íamos de um lugar par outro. Mudamos umas 10 vezes.

Em 1945, depois que acabou a guerra, começaram a despachar pessoas para a Hungria. Assim que ficávamos sabendo que chegaria uma caravana, nós partíamos para outro lugar. Não tínhamos um rumo certo, mas não queríamos voltar para Hungria.

Em 1948 começou o comunismo. Até ali era só ocupação. Naquele tempo o comunismo não era tão light. Hoje em dia é um socialismo e até que justificado, mas antes era totalitarismo mesmo. Estávamos aflitos, até que começaram a aparecer as organizações mundiais para ver o que seria feito da gente. Um monte de refugiados e eram eles que alimentavam. Na Alemanha não se podia fazer nada, estava tudo bombardeado, tudo acabado. Nós vivíamos em acampamentos, um tipo de abrigo. Casas de madeira, com quartinhos provisórios. Países como a Austrália, Canadá, Inglaterra, Brasil e Argentina estavam nessa organização mundial. O Canadá falava: eu quero cortador de lenha, e eles levavam todos os jovens bonitos e fortes para cortar a lenha. Chegava a Austrália e levava outro pessoal. No Brasil estavam começando as indústrias e eles precisavam de mão de obra. Meu pai tinha formação em torneiro mecânico e eles se interessaram. Acharam bom e nós também. Não sabíamos nada do Brasil. Falavam que aqui era tanto calor que a gente ia derretendo e hoje em dia a gente quase derrete mesmo.

Nós não tínhamos quase nada, mas o pouco que tínhamos deixamos tudo lá. Pensamos assim: se lá a gente derrete podemos deixar tudo.

Chegamos em junho e quase congelamos e ficamos perguntando cadê o calor?

Viemos para o Brasil de navio. Foram 18 dias de viagem. Era um pequeno navio grego chamado Comninos com bandeira de Panamá. Esse navio fazia passeios entre as ilhas gregas. Eram umas 200 pessoas, o navio estava cheio. Ficávamos assustados com o tamanho do navio que mais parecia um grande barco. Embarcamos em Marselha parando nas ilhas Canárias e em Recife para abastecer o navio pois não tinha autonomia pra atravessar o Atlântico de uma vez. Em Recife deu pra ver como o Brasil era carinhoso. Estudantes da cidade de Recife vieram recepcionar a gente. Trouxeram doces e muito carinho. Não sei porque. Talvez deveria olhar os jornais daquela época, com a facilidade da internet é possível ver o que foi noticiado pra eles chegarem daquele jeito.

Chegamos no Rio de Janeiro, que era o nosso destino. Para o meu pai foi a maior emoção da vida dele. Ele amou o Brasil do primeiro momento até o fim da vida. Não veio pra trapacear, pra ganhar vida fácil, veio trabalhar e trabalhou. Levou uma vida muito humilde mas muito feliz aqui, e muito grato aos país que o acolheu. Logo se tornou um Corintiano fervoroso. Por que Corintiano? Porque no emblema do Coríntias tem uma ÂNCORA e ele era navegador. No Rio de Janeiro, na Ilha das Flores, perguntaram onde queríamos ficar, falamos que era São Paulo. Sabíamos que São Paulo era o centro industrial. Os amigos que vieram antes deixaram recados para nós ficarmos em São Paulo.

Viemos de trem da central, chacoalhando o tempo todo. Era um susto só. Chegamos na Estação da Luz e depois em Campo Limpo Paulista. Fomos alojados num antigo depósito de café. Na época do café os trens entravam lá dentro. Eram plataformas como as nossas estações do metrô. Fizeram uma divisória de madeira e cada família pegava um canto. Era tudo aberto. Fazia muito frio, ventava muito.

Os padres e pastores húngaros ajudavam, muito, davam apoio. Os húngaros antigos tinham fábricas. Um deles tinha uma oficina de fabricar aparelhos de solda. Enquanto estávamos refugiados na Alemanha meu pai comprava livros e estudava eletricidade. Meu pai foi trabalhar com esse húngaro. Meu pai na oficina, minha mãe na cozinha. Rapidinho a gente se aclimatizou no Brasil. Estávamos muito felizes porque tínhamos um país outra vez. Não éramos mais refugiados. Foi uma luta. Depois que meu pai saiu da oficina do húngaro tentou trabalhar sozinho e levou muita cabeçada. Ele falava muito bem o alemão e acabou achando emprego numa firma alemã no ramo de aparelhos de solda. Minha mãe comprou a máquina de costura que ela tanto sonhava depois de 2 anos que estava aqui no Brasil. As condições eram diferentes e a vida foi melhorando. Nunca ficamos ricos, sempre tivemos uma vida difícil, mas deu para comprar um terreninho na Lapa que hoje já valorizou. Depois que casei meus pais fizeram uma casinha e viveram em paz até o fim. Meu pai faleceu com 78 e minha mãe com 76 anos.

São Paulo era calmo, era tudo romântico e o viaduto do Chá na garoa era a coisa mais linda do mundo. Muitas coisas foram derrubadas e construídas outras no lugar. Estamos vendo essa mudança, muita violências, mas isso não é só no Brasil. O planeta todo está mal. O ser humano está mudando muito.

Mas mesmo assim eu acho interessante. Olha que maravilha, eu estou vivendo e vendo tudo isso. Os meus avós viviam anos e anos e não acontecia nada de tão interessante. Quando criança eu fantasiava com grande telescópio que pudesse ver bem de perto as estrelas. Chegava a irritar minha mãe com as minhas fantasias, cresci e este telescópio existe. Viajava em pensamento nas estrelas e hoje tem gente passeando lá em cima. Hoje acontece tudo muito rapidamente. Cada vez que inventam uma coisa nova, eu acho maravilhoso. Agora estou maravilhada com o computador. Apesar de que a tecnologia tem também seu lado ruim. Para mim até hoje o que revigora é o verde. Gosto de ouvir o canto dos pássaros, da natureza, de sentir e ouvir o vento, de mexer na terra.

É boa a Internet porque eu posso conversar com a Hungria. Agora com a Internet eu encontrei um amigo que eu conheci quando eu tinha 12 anos, na época que estava refugiada na Alemanha. Tivemos contato até os nossos 20 anos e depois eu casei, ele também se casou e nunca mais nos encontramos.

Minha filha assina um informativo da colônia Húngara. Um dia um senhor que vive bem longe de São Paulo escreveu pra ela: Esse nome Rath, minha amiga casou com Rath, você conhece, será que é ela?

Minha filha falou: conheço, é meu pai e minha mãe. Ele me mandou uma carta e eu respondi à ele. Depois começamos a nos corresponder pelo Messenger. Ele me perguntava: quem será que tem mais cabelos brancos? Nós dois temos a cabeça bem grisalha. O tempo não poupa ninguém.

O casamento

Casei no dia 08 de maio de 1955, com 21 anos. Eu e meu marido nos conhecemos na igreja presbiteriana da Lapa. Ele é Lutherano, mas eu participava mais da igreja do que ele. O pastor achou que nós éramos predestinados um para o outro.

Eva com o neto Bruno

Tivemos 5 filhos. Quatro são da barriga e um do coração. É o mais novo, hoje ele tem 34 anos. Minha filha mais velha tem 51 anos. Tenho 8 netos. O mais velho tem 22 anos e o mais novo 3 anos.

Lembranças do pai

Aprendi muito com meu pai. Quase no fim da guerra, o trem em que viajávamos sofreu um ataque aéreo.Três aviões americanos mergulharam em cima de nós metralhando diversas vezes. Tivemos 24 mortos e mais de 100 feridos. Meus pais tinham uma maleta (eu guardo até hoje, é aonde eu guardo os enfeites de Natal de ano para ano) onde minha mãe guardava pedaços de panos esterilizados. Ela rasgava pano, esterilizava e deixava na maleta. Meu pai pegou aquela maleta, sentou no meio do mato e fazia curativo nas pessoas feridas até que recebemos socorro das ambulâncias. No meio dos feridos tinha uma mulher que havia levado um tiro no lábio e quando levaram ela para o hospital o médico falou: se você voltar a beijar, você vai lá e agradece ao homem que fez seu curativo de primeiro socorro. Meu pai fazia de tudo, se você precisasse de um fogão ele achava tijolos e construía. Durante quatro anos, moramos em barracões grandes. Tinha todos os tipos de pessoas refugiadas. Os que eram professores davam aulas para as crianças. Não tinha bebida, meu pai fez um alambique no meio daquela miséria toda. Ele usava as latas de leite para fazer penicos para as crianças. E eu sempre atrás dele. Aprendi muito com meu pai. Nós íamos procurar tijolos e pedras nas matas para construir coisas que necessitávamos. Ele era fora de série. O sonho dele era ser engenheiro eletricista, mas meu avô Luis Kertész meteu-se na política e depois teve que fugir. Meu pai o ajudou a fugir. Minha avó ficou com os 6 filhos para criar.

Quando estive na Hungria em 1988 encontrei um velho tio e disse a ele: sou a neta do Luis Kertész e ele falou: Aquele descabeçado? Ele tinha uma barbearia muito chique. E o que ele fez? Colocou o filho de 6 anos no pescoço, botou o chapéu vermelho, a bandeira vermelha na mão do filho e ficou desfilando. E aí ele perdeu tudo. O homem falava como se tivesse acontecido ontem e me visse todos os dias. Mas tudo bem, foi assim que eu fui juntando a passado como uma colcha de retalhos. E pra dizer a verdade, sem entrar no mérito do partidarismo eu senti um pouco de orgulho do meu avô. Acabou com sustento da família dele, mas devia ter convicção pra valer.

Mas o húngaro tem disso, bate contra as coisas com valentia sem pensar muito nas conseqüências.

Esposa e cuidadora

Meu marido, Charles, tem 79 anos. Ele tem Alzheimer e Parkinson. Ele está doente desde 2000, a doença tem piorado com os anos. Isso dá um stress muito grande. Ele anda devagarzinho. Piora dia a dia. Ele gostava de mexer na cozinha, mas agora já não dá mais para fazer nada. Tem muita tontura. Eu o levo para a fisioterapia, ele me chama muitas vezes porque tem tontura. É difícil.

Eu já fui muito estressada, mas melhorei. Minha médica me alertou e alertou minhas filhas para cuidarem de mim. Puseram uma faxineira que é um amor de pessoa. Quando perguntaram o que eu precisava, eu pedi para que eles viessem bastante aqui em casa para conversar com o Charles. Preciso de um suporte para eu desligar um pouco. Eles têm vindo fazer companhia para ele. Quando saímos, eles o seguram. Meu filho também ajuda a fazer a barba dele. Está ficando cada vez mais difícil ele sair, mas ainda o levamos para passear. É difícil descer escadas, entrar e sair do carro. Aqui tem muita ladeira. Ele perde a estabilidade e pode cair, não dá para sair a pé. Um dia ele não viu o degrau e caiu em casa. Colocamos os corrimões para ele poder subir e descer as escadas. Ele ganhou um andador, mas não consegue aprender. Ele levanta o andador para andar. A bengala, ele consegue usar.

Eu não sei o que começou primeiro, se foi a demência ou o Parkinson. Ele tinha muitas dores no corpo, dores na perna. Eu notava diferença de comportamentos nele, mas os médicos falavam que ele estava bem. Os médicos começaram a fazer perguntas e ele lembrava muito pouco. Eu percebi algumas alterações para dirigir o carro. Ele mesmo percebeu que não dava mais para dirigir. Começava a fazer manobra sempre do lado direito. Começou a inverter as coisas e não conseguia se orientar. Se ele tinha uma dor na perna esquerda ele me dava a direita para olhar. Dentro de casa também. Ele vestia a blusa de pijama como se fosse calça. As pessoas me dão muitas dicas. Um jovem médico tinha acabado de perder o pai e ele me deu toques simples e importantes de como lidar com a doença. Foi ele que me falou do andador, porque ele passou por isso há pouco tempo com o pai dele.

Quando vou buscar os remédios de alto custo para ele, tem uma fila enorme de espera. O SUS (Serviço Único de Saúde) que fornece. O médico que faz o pedido. Tem que marcar hora, fazer a triagem e outros processos administrativos. Eles fazem uma carteirinha e a gente pega o remédio no posto de saúde. Todo mês tem que ir buscar. A distribuição é mensal. A primeira vez eu esperei 3 horas para receber o medicamento. Agora o sistema melhorou. O custo do remédio é muito alto. Custa em torno de R$ 300,00 e dura um mês. São remédios controlados. O gasto com remédios é muito alto porque eu também tomo muitos remédios.

Muitas vezes ele não reconhece as pessoas porque não consegue levantar a cabeça. Ele se distrai jogando cartas. O Charles sempre gostou de jogar bridge. Eu tive que aprender quando casei. A condição para entrar na família é aprender bridge. A gente joga com ele. Quando meus sogros eram vivos a gente jogava sempre. À medida que os filhos foram crescendo foram aprendendo também. Ele faz algumas confusões durante o jogo, é difícil de achar as cartas, mas não faz mal, estamos em família e a gente respeita. Uma vez ele estava jogando e falou uma besteira, mas acho que eu estava na correria e não dei o medicamento da hora do almoço e ele alucinou alguma coisa. De resto, ele raciocina bem.

Ele ainda corrige alguns artigos de jornal da colônia húngara. Eu ajudo e faço a digitação. Eu que cuido dele, e a minha filha que mora aqui em casa. Ainda bem que eu dirijo. Deus que me conserve. Gosto de dirigir, ainda faço a viagem pra Ubatuba na base de bate-volta quando tem alguma urgência com os meus netos.

Sempre fui meio aventureira. Eu gosto de dirigir, mas não gosto de pegar trânsito. Numa dessas urgências, às 5h45 da manhã, eu já estava no posto de gasolina calibrando os pneus. Fui e voltei com meus anjos da guarda. Sei lá se foi o Gabriel, ou o Miguel que estavam ao meu lado. Estourou a bomba de água do carro, em Itaquaquecetuba. Cheguei no posto, eles deram um jeitinho. Eles achavam que eu não conseguiria chegar em casa daquele jeito. Me deram um galãozinho com água e eu vim parando nos postos e colocando água aos poucos, até chegar aqui. Quando cheguei, parei na oficina e larguei o carro lá.

Eu poderia ter chamado o seguro, mas eu queria vir embora. Minha filha fica brava quando faço as coisas desse jeito, mas eu gosto de desafios. A mola da vida são os desafios. Eu não gosto de monotonia.

De volta às origens

Eu tinha uma saudade imensa da Hungria. Uma saudade de matar. Era um sonho, voltar lá. Vivi até 10 anos de idade na Hungria, depois como refugiada fiquei 4 anos com meus pais na Alemanha.Vim para o Brasil em 1948 e nunca mais tive oportunidade de voltar para a Hungria.

Em 1988 fui para Europa. A cortina de ferro já foi aliviada, fui para a Hungria! Fui sozinha. Queria rever a terra onde nasci.

Minha mãe era da planície e meu pai era das montanhas. Quando vim para o Brasil eu me senti estrangeira. Sempre me sentia estrangeira. Quando voltei para Hungria, me sentia mais estrangeira ainda na minha própria terra. Os lugares têm seus códigos próprios. Eu perdi meus códigos que tinha aprendido até os dez anos, perdi os códigos que tinha juntado aos 14 anos e quando cheguei no Brasil não tinha código nenhum.

Fizemos um código de colônia, nunca consegui me misturar com o povo brasileiro. Só no serviço, mas serviço é uma coisa e amizade de freqüentar tua casa é outra coisa. Quando voltei para a Hungria, o pouquinho que eu tinha da colônia, não serviu para nada.

Eles diziam que largamos a Hungria e eles que reconstruíram, por isso éramos mal vistos. Um dia, lá na Hungria, eu não conhecia bem a moeda deles e fiz uma pequena confusão com o dinheiro numa loja. A moça ficou brava e disse que fazia bastante tempo que tinha chegado essa moeda lá. Eu respondi que para mim era novidade porque eu tinha acabado de chegar do Brasil.

Aí ela se espantou e falou: Brasil?, você foi para o Brasil?

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Eu não tenho sotaque de estrangeira e ninguém percebia que eu era do Brasil. Eu me sentia sem rumo. Pensei, meu Deus! Eu não tenho Pátria. Ao mesmo tempo, eu pensava: depende da forma de olhar. Posso olhar com jeito otimista ou pessimista. Eu vivo deste jeito: ou dou Graças a Deus porque tenho mais de uma Pátria ou lamento que não tenho nenhuma.

Queria muito visitar a Transilvânia, meu pai viveu lá até os 6 anos de idade. Minha avó e meu pai me contavam muitas histórias de lá. Quase todos meus parentes já haviam falecido. Tem uma época da vida que você quer saber quem você é. Não quer ouvir falar, quer ver! Quando pensei em fazer a viagem a Transilvânia as pessoas diziam que eu era louca, que era perigoso porque o Ceausescu[1] ainda era forte nessa época.

Quando viajo, pego uma mochila e coloco poucas coisas. Não gosto de carregar peso. Se carregarmos muita coisa, não aproveitamos a viagem. Não faço questão de parecer elegante mesmo porque eu não sou elegante.

A vontade de ir era maior que o medo. E fui. Tomei o trem em Budapeste. Viajei o leste da Hungria, atravessei os Karpatos. A partir da divisa da Hungria o ambiente pesou com a subida dos securitas no trem, revistaram minha mochila, por sorte o livro húngaro que eu havia levado não viram, nem olharam porque o cigarro que passei na mão de um deles fez um bom efeito.

A Igreja me incumbiu de levar algumas comidas e café para algumas pessoas necessitadas. Para mim, levei um pedaço de salame e um pedaço grande de pão. O resto da minha mochila era troca de roupas para 2 ou 3 dias e outras pequenas coisas.

Cheguei de madrugada na capital Kolozsvár (Kului). De manhã aluguei um carro e fui dirigindo naquela terra que eu não conhecia, mas vivia dentro de mim.

De tarde cheguei na casa de uma família onde levei uma lembrança de um amigo comum, foram muito gentis, mas não podiam me abrigar de noite porque eu era estrangeira e era comprometedor perante as autoridades. Tudo bem. Peguei a estrada para as montanhas e dormi numa pousada para caminhoneiros ou coisa parecida. Aquela noite foi uma absoluta solidão. Uma terra atávica onde falavam um idioma que eu não entendia (o Rumeno era obrigatório). Fiquei eu, comigo mesmo. Mergulhei ou voei, não sei, mas era o meu ser primitivo e Deus.

Chegando na aldeia da minha avó e do meu pai achei a rua deles. Logo, reconheci tudo que a minha avó contava. As montanhas que rodeiam a aldeia, o rio que corre no fim da rua, até a prima do meu pai que tem traços parecidos comigo. Eu vi a cama onde meu pai dormia com o relógio que ele queria desmontar quando criança. O que me causou estranheza nessa viagem foi a dureza na minha prima. Quando cheguei, abracei-a e comecei a chorar. Ela disse: não chore, na nossa idade não se chora mais.

Em seguida ela foi até um barracão onde tinha umas ovelhas e quando olhei para ela, eu a vi, com aquele avental grande, enxugando os olhos. Ela estava chorando. Não pode chorar na frente dos outros, escondido pode. Eu não sou de chorar. Tenho um pouco de dureza também. Não sou de chorar e ela me fala aquilo. Mas ali, eu estava derretida.

Eu observava aquele jeito deles, meio seco, meio explosivo e eu me via um pouco neles. Na volta também, foi muita emoção. Conforme eu descia as montanhas com o carro, na beira de um precipício, eu pensava: se eu soltar o carro acabou e eu morro nesta terra a qual tanto eu quis conhecer. Macabro? Não, era a vontade de conservar para a eternidade aquela viagem.

Desci em lágrimas. Chorava de emoção. Eu tinha vontade de ficar mais tempo. Nada me chamava à voltar. Era uma busca, talvez um encontro, mas não encontrei. Não sei. É muito estranho. Não sei se todas as pessoas sentem assim. Dentro de mim existe um vazio que eu não sei o que é. Assim como uma planta que fica fora de seu ambiente.

Na minha cidade, na Hungria uma vez desci sozinha em direção ao Danúbio e parei num terreno que era da minha avó. Quando cheguei perto da cerca de arame me veio aquele cheiro conhecido; um cheiro que estava há muito gravado em mim, mas eu não sabia o que era. De repente eu identifiquei. Era a urtiga. Quando pisei na urtiga, veio o cheiro da minha infância, o cheiro da minha terra. A urtiga sempre esteve lá. Foi muito lindo, você não sabe o que é, e de repente você vai lá, pisa e descobre! É daqui.

Não cheguei a ir até a Planície, nas terras da minha mãe. Tenho o biótipo da minha mãe, mas a natureza é do meu pai, tenho uma personalidade parecida com a dele.

Em 1989 executaram Ceausescu.

Religião

Minha mãe e meu pai eram de fé. Não eram de muita conversa, mas a sustentação deles era a fé. Minha mãe freqüentava a igreja presbiteriana em Budapeste. Era uma coisa pacífica. Eu também tenho minhas crenças.

Para mim, a religião é uma força meiga, não é aquela que eu tinha antes. Tinha que testemunhar, que falar. Tenho certeza que é uma força, um conforto. Hoje a igreja é secundária para mim. Eu acho que a igreja é uma escolinha quando a pessoa começa a andar. Eu já ensinei crianças na escola dominical, mas acho que o caminho para a fé é individual, nós fazemos o nosso caminho. Do jeito que te ensinam os dogmas, você nunca atinge. As cobranças são exageradas. Por exemplo: se duas pessoas são infelizes por que têm que viverem juntas a vida toda, só porque a igreja acha que é certo? Eu questiono o dizem que Deus espera da gente. As igrejas gostam de pregar o sofrimento. Eu acho que a gente tem que ser feliz. Eu já vi pastores com a bíblia na mão e com a outra quase dando um soco na cara do outro.

Os padres, os pastores são pessoas que interpretam do jeito deles. Eles também são humanos, também são fracos. Eu falo que não acredito em livre arbítrio, não sei ainda, estou em fase de discussão Aconteceu tanta coisa na minha vida e eu não queria absolutamente nada daquilo. Eu não queria a guerra e as suas conseqüências Eu nunca pensei com 10 anos de idade que viria parar no Brasil. E estamos aqui. Às vezes você acorda de manhã programa seu dia todo e de repente acontece alguma coisa e, pronto, muda tudo. Cadê o livre arbítrio?

Eu creio num Deus Pai todo poderoso e misericordioso que me ama e me protege, com quem eu posso conversar e me conhece. Creio nos ensinamento de Jesus Cristo e creio na força do amor que uniu os céus com a terra e vence todas as dificuldades.

O trabalho

Quando eu era meninota trabalhei em fábrica de tapetes, fábrica de meias, e me formei cabeleireira. Depois de casada fiz cursos de auxiliar de enfermagem, baby sitter, costura e tapeçaria. Os afazeres da casa não permitiram um trabalho muito prolongado. Minha filha começou a fazer macas para vender, eram encomendas de pessoas que faziam massagem. Minha filha parou e eu peguei gosto e continuei a fazer as macas. Fiz isso durante uns 10 anos.

Comprava alumínio, madeira, cortava, fazia os estofados e vendia. Era só sob encomenda. Fui aprender fazendo, não tem curso para isso. Eu era filha única e aprendi muito com o meu pai. Para eu pegar uma furadeira era fácil. Um amigo uma vez falou para mim: você é a única mulher que eu conheço que gira o parafuso para o lado certo. Cortadeira, lixadeira, eu adoro mexer com essas coisas. A última maca que fiz, estiquei o vinco, e me deu uma dor no ombro que quase desmaiei, aí eu vi que não dava mais. Eu puxava e o rapaz que me ajudava grampeava. Para puxar precisa força.

Nunca tive problemas com meus clientes, eram pessoas que fazem a diferença na vida, querendo ajudar as pessoas.

Hoje eu preciso de uma maca, mas não deixei nenhuma para mim. Eu aplico Reik. Uma época eu estava ruim da vista e uma pessoa me aplicou o Reik. Veio aquele calor, veio a lágrima e minha vista sarou. Fiz o curso em 2004. Hoje eu aplico Reik à distancia junto com oração. É um modo de amar as pessoas.

Informática

Comecei a usar um computador que herdei do meu neto e peguei gosto. Fui aprendendo aos poucos, meu genro me ajudou. O namorado da minha filha também me ajudou. Se eu travava ele me ajudava. Tem um amigo de juventude que tem a minha idade e também gosta de informática. Eu pegava o telefone e ele ia me instruindo como mandar e-mail, instalar programas. No meu aniversário, em agosto do ano passado, minha filha me deu de presente um XP. Agora cabe bastante coisa. Tenho Skype e Messenger. Agora posso falar com a Hungria, falar com os amigos. É uma delícia poder conversar com as pessoas dessa forma. Para ir à casa das pessoas você gasta dinheiro, gasta tempo, gasta gasolina e gasta energia.

Eu me correspondo via e-mail com as minhas filhas. Mando cartas para a Hungria. Escrevo no Word e mando para os Estados Unidos e para a Hungria. Também escrevo para o jornal da colônia. Os artigos chegam, o Charles corrige, depois faço digitação e mando para o redator. É só como colaboração, não é nada remunerado, mas eu me divirto bastante e os meus neurônios talvez gostem também de novidades.

Aprender sempre

Em todo lugar você aprende, o mundo está aí, é um banquete, cada um pega o que quer. Um gosta de melancia, outro de melão, outro quer o pernil, e vai pegando… e se você for legal, pega aquilo que te faz bem, o que te interessa. O que você quer? Alimento para sua alma ou alimento para o seu corpo?

Já encontrei muita gente legal nas horas que eu mais precisei. Anjos existem, mas a gente não vê. E não é porque são transparentes ou luminosos, é porque a gente não percebe.

Quando eu fui fazer a exumação do corpo do meu pai, fiz questão de ir sozinha. Eu não queria que ninguém visse os ossos dele. Quando os coveiros estavam trabalhando, eu sentei num degrau ali perto e fiquei olhando. Um coveiro chefe sentou-se perto de mim e ficamos conversando. Na nossa conversinha, acho que ele foi um anjo, não porque ele me confortou, mas pelo teor da conversa, pela qualidade, foi fantástico. Nem fiquei sabendo o nome dele, nem me lembro direito o que foi, mas naquele momento foi importante. Isso já me aconteceu várias vezes. Em consultórios médicos as pessoas gostam de conversar. Não gosto daquelas frutiqueiras chatas que ficam perguntando tudo para saberem o lado mórbido das coisas. Mas às vezes surgem conversas interessantes. As pessoas me passam dicas e eu me sinto mais forte.

No começo da doença do meu marido eu estava muito perdida, desesperada, não sabia como fazer. Aqui em casa era meu marido que cuidava de tudo. Eu não podia mexer numa conta de banco, era tudo ele, e de repente começa a ficar assim doente e muda tudo.

A saúde

Tenho diabetes, pressão alta, a coluna ruim, mas eu estou vivendo. Acho que faz parte da vida. Quem tem saúde tem problemas também. Estou tomando medicação, mas tenho também minha sem-vergonhice. Às vezes, como uns docinhos que não posso comer. Refrigerantes eu não bebo. Diet não uso. Tive um tipo de câncer e esses produtos diet são contra indicados, eles fazem mal para a saúde. Sacarina, ciclamato eu não uso. O diabético tem que usar sacarina, ciclamato ou aspartame em tudo, então deixo amargo mesmo. Quando tenho vontade de comer um doce eu como e pronto. De vez em quando uso stévia que não faz mal a saúde. Já aconteceu de eu quase dormir na direção do carro. Acho que é por causa da diabete. Tomo muito remédio porque preciso, não que eu goste. É remédio para o coração, diabetes e pressão alta. Durante muito tempo só tomava homeopatia. Criei os filhos com homeopatia. Não entrava remédios na minha casa.

Quando tive uma úlcera no tornozelo demorei 9 anos para curar. Há 3 anos tive um câncer de bexiga. Começou com um sangramento, operei e sarei. Tenho feito os exames e estou bem. Em 2005 tive trombose e descobriram um problema genético de coagulação sanguínea. Tinha muitas dores. Eu sabia, estava com trombose de veia profunda. Peguei o carro, minha mochila e fui para o hospital pra me internar. Cheguei lá e telefonei para minha filha e disse: quando você sair do serviço, passe aqui no hospital e pegue o carro. Ela me deu uma bronca. Não gosto de incomodar. Vou mexer a família toda por causa disso?

O envelhecimento

Detesto envelhecer, então não me olho no espelho. Não gosto de gente velha. Acho a velhice muito feia. O tempo é muito cruel com as pessoas. Não gosto de olhar minhas fotos antigas. Nunca gostei de olhar minhas fotos velhas. Como estou no presente não me acho legal, e quando olho para trás, era melhor e não soube aproveitar, e agora estou pior. Sempre foi assim, desde que era solteira. Depois de velha é que eu fico sabendo que as pessoas me achavam bonita. Eu me achava horrorosa. Nunca sabia o que fazer com o meu corpo. Eu praticava esportes, ia à igreja, jogava ping-pong, trabalhava, mas minha mãe falava: não pode flertar com os rapazes porque você pode machucar eles. É muito feio as moças fazerem os outros de bobo. Gostou, casou, não tem nada que descartar as pessoas.

O Charles foi meu primeiro namorado sério. Mesmo que gostasse de outra pessoa não poderia falar. Não acho que fui reprimida, não me parece que foi uma educação rígida. Eu podia sair, mas tinha horário para chegar. Minha mãe me colocava muitas regras, o que podia e o que não podia.

Eu pergunto a um amigo que me conhece desde criança: por que eu nunca me sinto feliz? Ele diz que eu é que tenho que saber e quando eu descobrir, lutar por ela. Eu digo: agora, com essa idade? Nem sei direito o que é, mas sinto que tem alguma coisa faltando. Quando fui para a Europa, fui tentar me descobrir. Mas tem uma coisa: o que faço na hora que eu descobrir isso?

Você acha que a gente tem que aprender a morrer bem? Envelhecimento para mim significa morrer. A velhice traz muitas limitações. O ano passado queria arrumar meu terreno, deixar tudo limpo por causa da dengue. Peguei a enxada e comecei a sentir uma dor nas costas, na coluna, e fiquei travada. A enxada é ruim para a coluna. Eu comecei a pintar a sala e não dei conta. Não tive coragem de pegar a escada e fazer esta pintura.

Eva me mostra um pedaço da parede onde ela testou a cor da tinta e brinca comigo dizendo que me sentou estrategicamente de costas para aquela parede que ela não acabou de pintar.

Minha sala estava horrível, precisava pintar as paredes. Não tive coragem de pegar a escada e pintar. Eu pensei, antes da Marisa chegar vou fazer essa parede. Então eu me sentei neste lugar e pus você aí de costas para essa parede, assim você não vê a parede feia. Estou te contando isso porque a gente sente, ainda vive, ainda tem vontades, tem imaginação e o corpo não obedece. Eu chamo alguém para fazer, ele faz tudo errado. Fizeram a calha, começou a vazar. Tudo fica mais difícil para a gente. Quando você é jovem, tem forças para fazer. Se alguém não faz, eu faço. Depois a coisa muda. Se estiver feio me deprime. Eu acho que não tem como pedir para alguém fazer, então eu tenho que arrumar.

Se a pessoa não tem a força física ele tem que montar outro esquema. O dinheiro da aposentadoria é sempre pouco. Os filhos sempre ajudam, mas eu tenho dó, não gosto de pedir, não acho que é obrigação deles. Cada um tem sua casa para cuidar. Meu filho me ajudou a amaciar as paredes. Eu pintei uma parede do quarto, pintei um lado da cama e o outro ficou. Então não tem beleza nenhuma na velhice. As pessoas falam ai que beleza, todos esses anos.

Acho importante ter atividades. Sei fazer bastante coisa. Eu sei bordar, sei pintar, fazer tricô e tapeçaria.

Tem gente que fala que é bonitinho ser velho… Bonitinho uma ova! Bonitinho enquanto saudável. Doente, nem jovem nem velho, não tem graça nenhuma. Minha mãe não ficou feia. Era uma velhinha enxuta, tinha uma pele bonita, ela morreu de diabetes.

Meu pai também não chegou a ficar feio. Também depende de muitas coisas, se tem um enfermeiro que arruma, que deixa limpinho, arrumadinho, é diferente, não fica feioso. Tem pessoas que ficam ranzinzas, feias por fora e por dentro não podem comer direito, é muito complicado. Se chegar lá e piorar, vamos ver como vou enfrentar.

Dona Eva faz uma observação final: Quando eu falo Kolozsvár (kolui), na verdade é Cluj-Napoca. Nós, húngaros da Transilvânia, temos bronca dos nomes romenos, porque Transilvânia foi tirada de nós com uma política estúpida. Kolozsvár era a capital da Transilvânia, hoje é Romênia, e a capital da Romênia é Bucarest. Mas, para nós, húngaros,sempre será capital da Transilvánia.

[1] Nicolae Ceauşescu (Scorniceşti, 26 de Janeiro de 1918 — Târgovişte, 25 de Dezembro de 1989) foi o líder da Romênia comunista de 1965 até à sua execução em 1989.

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