Pensar em Gabriel Garcia Márquez – escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano – é lembrar de Cem Anos de Solidão, A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, Olhos de cão azul, Crônica de uma morte anunciada e tantas outras histórias que, com certeza, encantaram muitas mentes inquietas e corações rasgados. Tudo sempre foi possível com o escritor, sonhar, devanear, voar, viver e morrer (um pouquinho).
No mês março Gabo, como é chamado carinhosamente, completou 85 anos de “uma vida vivida a cada instante”. Além disso, foram celebrados os 40 anos da primeira edição de Cem Anos de Solidão, os 25 de seu Nobel e os 55 da publicação do primeiro conto. Apesar de tanto apelo, ele tem preferido o sossego da casa, dos filhos, netos e amigos mais amigos, “longe dos ruídos do mundo, longe dos vendavais da vida”.
Nepomuceno, amigo do escritor, em seu artigo “Os 85 anos de Gabo” (ver abaixo) conta que já faz um longo tempo que ele vive uma espécie de vida reclusa, “recebendo pouquíssima gente, navegando nas águas mansas de uma memória sem fundo nem fim”.
“Na última vez que estivemos juntos, faz uns seis meses, lá pelas tantas ele me disse: ‘Eu já não cuido de nada, não me interesso por nada, não me inquieto por nada, não me preocupo por nada’. E, depois de um silêncio fugaz, fulminou: ‘Isso é o que me preocupa’. E riu seu riso de caribenho, prenhe de um humor único. O mesmo riso de sempre, que distribui luz, mas não apaga um lampejo de terna melancolia que não sai de seus olhos”.
Será que Gabo já se encontra entre os dois mundos? Desprende-se das coisas concretas da vida para a imortalidade da alma? A melancolia que escorre dos olhos seria um prenúncio de um fim que se aproxima? Mesmo que todas as respostas sejam positivas, acreditamos que o escritor se tornará o maior e, talvez, melhor contador de histórias do céu, fará com que Deus e seus santos ajudantes enrubesçam com os “causos” picantes e sedutores, como só ele sabe fazer.
Depois de publicado em 2004 o livro “Memória de Minhas Putas Tristes”, Gabo silenciou. Nepomuceno lembra que cinco anos depois, o amigo disse: “Não tenho mais ideias, por isso deixei de escrever”. O jornalista argumenta dizendo que já tinha ouvido, anteriormente a mesma frase e que depois “vieram livros invulneráveis, a começar por O Amor nos Tempos do Cólera. Ele sorriu e não disse nada”.
Que sensação é essa de vazio que invade a alma, principalmente após uma grande produção? Será que a doação é tamanha que nos arranca as vísceras e rouba até a última gota de sanidade, nos restando, com isso, apenas um imenso buraco existencial? Não importa, porque a dose salvadora que nos redime de eventuais pecados se chama desejo, aquele que impulsiona, movimenta e nos torna novamente criativos e belos.
Escavando a memória
O jornalista lembra a importância de Cartagena na vida do Gabriel Garcia Márquez: “Várias passagens de seus livros parecem fervores de uma imaginação febril. Parecem. Na verdade, são reflexos sutis da memória coletiva. (…) uma semana depois do lançamento de Memória de Minhas Putas Tristes, ele entrou, pela primeira vez em seis anos, na casa que tem em Cartagena das Índias, no litoral do Caribe colombiano, fincada nas margens da muralha que delimita a cidade velha e vizinha ao antigo convento de Santa Clara.
Varou em claro a primeira noite esperando, depois de seis anos, a hora de contemplar uma visão única, perseguida sempre: o prolongado e exato momento em que amanhece sobre Cartagena. Em que amanhece sobre sua memória, sobre sua vida. Faz cinco anos que ele não volta a Cartagena, mas Cartagena continua nele”.
E o jornalista finaliza: “É nesse mundo, onde ele está ancorado, um mundo envolto nas neblinas da memória, e onde tudo pode acontecer de novo, que ele amanheceu na terça-feira, o primeiro dia de seus 85 anos de vida”.
Penso que as lembranças poderiam estar relacionadas a um grande colo de mãe, aquele que aconchega nos momentos de fragilidade e incertezas. Também poderiam ser um resgate do que poderia ter sido e não foi. Ou talvez, um reservatório de doces e guloseimas que nos levam aos aromas da infância e da crença de que tudo é possível e que o tempo, está lá, sempre a nossa disposição.
Da realidade a fantasia
Nepomuceno conta que da infância (…) “surgiu não apenas sua escrita, mas sua maneira de compreender a vida, de ver e abraçar a realidade transbordante que é a América Latina. Foi dos primeiros a entender que nessas nossas comarcas a realidade é muito mais delirante que a mais delirante das imaginações. (…) Ele disse e redisse infinitas vezes que não há uma só linha de toda a sua escrita que não tenha como ponto de partida a realidade”.
O jornalista complementa através das obras do escritor: “Várias passagens de seus livros parecem fervores de uma imaginação febril. Parecem. Na verdade, são reflexos sutis e poéticos da memória coletiva, do imaginário das nossas gentes. Ou seja: uma outra forma de relatar a realidade. De explicar o inexplicável. De nos aproximar a outro mundo possível, diferente daquele ao qual parecemos condenados”.
Um mundo possível que mescla realidade e fantasia. Quando imaginamos que estamos em um, nos surpreendemos com um mergulho no outro. E assim, vivemos nossa suposta realidade, oscilando do delírio a sanidade.
As obras
García Márquez em suas entrevistas sempre ressaltou que a base de sua escrita é e sempre foi a “vida cotidiana, a real realidade de quem habita e sobrevive neste continente atormentado de esperanças. Escreveu exatamente como as histórias que ouvia da avó materna. Sua obra tem muito mais de realismo do que se poderia imaginar e, por isso mesmo, parece tão mágica”, explica o jornalista.
Seria possível escrever páginas e páginas sobre a vida vivida de Gabriel Garcia Marques. Mas preferimos terminar aqui, com um gostinho de quero mais, quem sabe correr a imensa estante de livros e buscar “Crônica de uma morte anunciada” e trabalhar na escavação de minhas memórias em busca do que fui e no resgate do que me tornei.
Finalizamos com as belas e últimas palavras do amigo jornalista: “Lembro de seu caminhar de bailarino caribenho, de seu sorriso de fulgores, de sua entrega monástica à escrita. Diz que não escreve mais. Que já não tem ideias. Será? Continua caminhando feito bailarino pela vida. Continua esbanjando luz quando sorri. Continua em sua infinita solidão, rompida apenas pelo afeto dos amigos mais amigos. Continua o mesmo de sempre. Querendo, talvez, ser aquele pianista do fundo de um bar na penumbra de uma tarde perdida em Zurique, aquele que tocava para que os namorados se amassem mais”.
Referências
NEPOMUCENO, E. (2012). Os 85 anos de Gabo. Disponível Aqui. Acesso em 16/03/2012.