Em Fortaleza, para fortalecer, orientar e continuar o voo precisa-se de muitas letras, infinitas palavras, inúmeras Tios e Tias. Somente assim voarão como médicos, enfermeiros, advogados, engenheiros, jornalistas… Tios e Tias.
Por tudo que não cabe na minha memória, ou voluntariamente, não “obrigo” a permanecer gravado, por longo período, nos meus neurônios. Preservo em escritos e fotografias, preferencialmente. Esta é a fórmula prática que recorro com muita frequência para eternizar tantas histórias. Afinal, alguns dos meus neurônios já foram queimados naturalmente e outros por excessos cometidos. Assim, sem muito esforço e, com baixíssima probabilidade de erros, minhas lembranças atuais e memórias do passado convivem em harmonia e segurança.
Muitas das minhas histórias, aventuras e fatos jornalísticos começaram a ser gravados profissionalmente em fotografias a partir do ano de 1986 quando desisti da graduação em Química Industrial para ser repórter fotográfico. Fui tocado pela energia única de uma redação jornalística. Desde daquela data, sem muitos cálculos ou reações químicas, passei a perceber mais claramente as diferenças, contrastes e as semelhanças da cidade que morava há pouco mais de uma década: Fortaleza.
Por encantamento, paixão e fazer parte da equipe do caderno especializado em cultura – Segundo Caderno -, do jornal O Povo, comecei a fotografar uma Fortaleza que cantava, pintava, esculpia, fazia teatro e também fotografava. Surgia assim, para mim, uma capital que nunca havia percebido no meu cotidiano. Antes percebia a cidade de Fortaleza, como uma cidade que parecia lenta, sem muitas histórias e com pouca criatividade e que mudava para mim, velozmente, a cada dia.
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Miguel Macedo, editor do Segundo Caderno, ensinou-me que havia muito para contar por meio da fotografia. Aprendi neste primeiro período que a fotografia poderia ser poesia, crônica, obra plástica, falar vários idiomas e encantar. Fazer pedido de casamento e ser aceito, arriscar uma aventura voando de asa delta ou em um avião de caça (avião militar). Chorou ao transformar-se em corpo de um adolescente transfixado por balas. Fortaleza agora havia muito para contar. A cada dia, a cada página e filme em preto e branco, nascia uma capital mais culta, inteligente, também polarizada.
A fotografia alterou a geografia ao descobrir que a cidade que nasci não estava mais a 300 km de Fortaleza. Ela estava aqui, de todas as formas, dentro dela. Fotografei cantadores, escritores e repentistas nas feiras livres, cadeiras de balanço nas calçadas, meninos soltando arraias (pipas) e os anônimos que enriqueciam o folclore e perambulavam pelas praças. Percebi que todas as cidades do interior do Ceará e a história da maioria dos seus moradores estava aqui; elas somavam-se para dar alma e fazer Fortaleza a Capital do estado. Precisava ser assim para ser uma capital com várias faces, desejos, sabores e muitas paixões.
Outras fotos motivavam a fé e assombravam com a visão flagelada dos corpos nas romarias, secas e procissões. Fotos que instigavam ao debate, politizavam e denunciavam. Elas “gritavam” alto com os ambulantes. Riam as conversas pelos bares e bodegas, pareciam filiais de cada uma que ficou lá no interior.
A Praça do Ferreira! Esta, mesmo antes da minha primeira fotografia, já se mostrava imponente com sua enorme coluna da hora, que nunca parou de gerar encantamento. A modernidade e a dieta política e democrática dos anos 60 obrigaram a destruição de primeira praça para construírem um exemplo de antiarquitetura. Uma praça sem voz, sem som e sem seu povo. As batidas do relógio ecoavam no vazio de um tempo que nunca passava. O bom senso construiu a terceira Praça do Ferreira para outra vez poder cantar, falar ou só perambular.
O mármore e o bronze polidos do Cineteatro São Luiz, protegido pela cultura, sobrevivem aos excessos. E o fantasma do lanterninha do cinema que flagrava beijos e “excessos” no ano de 1977 ainda passeia, silencioso, de lanterna na mão, entre as cadeiras vermelhas do cinema. A Praia de Iracema: Estoril e o Pirata Bar começavam a anoitecer em filmes coloridos, amanheciam em preto e branco, monocromáticos, tontos, enfumaçados e impregnados de muitas paixões em todos os fotogramas da tolerante Canon F-1.
Sem papel fotográfico e acetato (filme), tornei-me reflexivo sobre o destino e a sorte de ser idoso quando fotografei em pixels (digital), moradores do Abrigo para Idosos. Fui ao futuro para descobrir a distância que nos separa de um abrigo: é curta. Usei a memória escrita para não esquecer que “abrigo da Luz” poderá estar na nossa próxima aventura, a nossa próxima diversão, no dia seguinte quando a festa acabar -, lá, poderão estar todas as nossas companhias do último fotograma, talvez.
Depois de três Redações, agora fotografo sonhos. São letras e palavras coladas em papéis, outras foram desenhadas, lapidadas e, juntas, uma a uma, em salas de aulas harmonizam, formam um nome identidade e, quando lido desce uma lágrima no rosto da “Tia”, de outra tia, de muitas mães. E o abraço apertado da “Tia” é para sentir o pulsar de coraçãozinho ganhando asas para voar alto, ser livre e deliberadamente escolher onde e de que forma e local vai pousar.
Para fortalecer, orientar e continuar o voo precisa-se de muitas letras, infinitas palavras, inúmeras Tios e Tias. Somente assim voarão como médicos, enfermeiros, advogados, engenheiros, jornalistas… Tios e Tias. Fotografar crianças e adolescentes em salas de aula é poder fotografar o nascimento de uma cidade mais justa e coerente no futuro.
Fotos: Alcides Freire Melo