Esse mistério sinestésico que a memória guarda misturando sabor, cheiro e afeto é um negócio doido, fica num compartimento que queremos visitar, reviver não por partes, mas tudo junto. É uma fome diferente, profunda, queremos comer tudo inteiro, uma urgência que não tem remédio.
Jerusa Rotta (*)
O pai de meu pai, vô João, enquanto viveu jogou futebol com os amigos. Religiosamente todos os sábados vinha de São João da Boa Vista para Mococa e nunca nos visitou de mãos abanando, prática cordial desse filho de bergamasco-italiano, gostava de acarinhar com quitutes. Trazia biscoitos, bolachas, canudinhos, pães, roscas…
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Mesmo que não o visse chegar, pelo embrulho em cima de mesa, já sabia que meu avô estava em Mococa. Os meus preferidos eram os bem casados de Vargem Grande do Sul, aqueles bolinhos fofinhos recheados com doce de leite eram de comer rezando, só de lembrar aquecem meu coração. Ave Maria! Que delícia!
Esse gosto, esse mistério sinestésico que a memória guarda misturando sabor, cheiro e afeto é um negócio doido, fica num compartimento que queremos visitar, reviver não por partes, mas tudo junto. É uma fome diferente, profunda, queremos comer tudo inteiro, uma urgência que não tem remédio.
E foi uma vez, quando já adulta, passando por Vargem Grande do Sul, que encasquetei por querer encontrar estes bem casados. Bateu uma vontade de reviver aquela delícia em Pão de Ló, perguntei por toda Vargem onde os tais quitutes eram vendidos.
Cidade pequena – facilmente os encontrei. Trinta anos depois comprei todos, no mesmo embrulho de papel, fofinhos, cheirosos, muito gostosos, mas faltava alguma coisa. Perguntei para vendedora da quitanda do Candinho: “É a mesma receita?” A moça orgulhosa me disse: “Desde 1922”.
Dei outra mordida e confirmei, eram diferentes daqueles da minha infância. Então me lembrei do que disse Sidarta, não se entra duas vezes no mesmo rio. Me perdi entre reflexões, tentei saborear o bolinho atual procurando nas conexões da minha memória matar essa fome mais profunda.
Os que saboreava eram deliciosos, mas não eram os mesmos de minha infância, faltou algum ingrediente. Não sei se por expectativa ou por romantismo, o que sei é que comia aqueles bolinhos procurando também a presença da pele, da carne e osso e do cheiro. Acho que a bem da verdade eu não queria o doce, mas meu avô. Os quitutes eu vou encontrar, mas meu avô com quitutes, não.
Continuei a comer os bem casados, dei um para meu filho mais velho e outro para meu filho mais novo e contei a história para eles, de como meu avô nos presenteava semanalmente com estes doces. Fiquei observando meus filhos comerem os bem casados com a mesma boca que eu havia comido quando com nove anos, tudo passou em câmera lenta, mas de coração acelerado.
Foi num lampejo que o tempo fez uma curvatura pelos vales e cordilheiras cósmicas, tomou forma de espaço e inexistiu na distância. Formou-se uma fissura entre presente e passado, subitamente fundiram-se num só. Num estalo senti o gosto dos bem casados que procurava, bem no buraquinho negro dos olhos de meus filhos vi vivo meu avô… E de alguma forma matei a fome da saudade.
(*) Jerusa Rotta – Advogada atuante na área Previdenciária (aposentadoria e revisões / Regime Geral e Próprio). Site: www.jerusarotta.com.br
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