Foi Golpe!

A velhice havia chegado e corria tranquila, na medida do possível. Mas o destino foi sagaz. Quis mostrar quem é que tem o poder nas mãos. Poder que o faz senhor soberano das vidas humanamente e humildemente sentidas. E sem se importar com o entorno, sem valer dos destroços que poderiam soterrar a existência daquele homem inteligente e sábio, o golpe foi dado e o derrame aconteceu naquele cérebro cheio de sonhos e desejos.

Cristiane T. Pomeranz (*)


Não dá para fazer de conta que nada aconteceu. A rasteira foi grande e com ela uma nova situação foi imposta, mesmo contra a vontade, mesmo contra nossas escolhas. Era preciso encarar os fatos e lutar com coragem para superar o golpe bruto e certeiro que violou as crenças de uma existência pacífica.

Até aqui então, tudo era calmaria. Velejava-se em um oceano de ondas poucas e precária arrebentação. O veleiro seguia a liberdade do vento em meio as borboletas amarelas que surgiam em alto mar, assim do nada, talvez da linha do horizonte, apenas para lembrar que a vida liberta das amarras era breve, mas potente como um suspiro para a alma.

A velhice havia chegado e corria tranquila, na medida do possível. A vida existia em meio ao convívio com a angústia do querer. E aquele não sei bem o que, que tanto desejamos causava uma inquietação.

O fato é que na maioria das vezes, nem bem identificamos aquilo que nos falta. Apenas sentimos o seu vazio faltante, condição e razão das nossas crises existenciais. Crises superáveis em meio ao afeto existente em cada história.

Mas neste caso, até o golpe, a vida seguia seu curso, com seus fluxos e desvios e ele vivia seus dias comuns em meio a uma família maravilhosa e um trabalho que o realizava. Advogar exigia um empenho de pensamento e inteligência que ele, sem dificuldades aprendeu a fazer uso com maestria.

Quando jovem, ao cursar a faculdade no Largo São Francisco, aprendeu a construir e a pensar em um futuro envolto em névoas de sonhos e ideais.

A largos passos, caminhava rumo ao desconhecido sem temer o viver. Com questionamentos, mas sem medo, continuava o caminho sem lhe faltar a coragem de existir. Mas o destino foi sagaz. Quis mostrar quem é que tem o poder nas mãos. Poder que o faz senhor soberano das vidas humanamente e humildemente sentidas.

E sem se importar com o entorno, sem valer dos destroços que poderiam soterrar a existência daquele homem inteligente e sábio, o golpe foi dado e o derrame aconteceu naquele cérebro cheio de sonhos e desejos.

A vida então se modificou em meio à crise homérica que devastava sua história e sua existência. Era preciso se modificar, mesmo sem forças e mesmo sem coragem. Era preciso reagir ao golpe, mesmo sabendo que o estrago influenciaria seus dias futuros.

Se questionarmos o viver, veremos quão ignorantes somos perante os infortúnios. Infelicidades imensuráveis que nos tiram do chão e nos arremessam ao ar com uma velocidade estonteante. Impossível cair em pé.

Ao cair, sentiu-se espatifado. Tratava-se de um golpe e tanto.

Mas a vida teima em existir e pedia continuidade. Sofrida, doída, mas com um sopro de esperança que se transformava em chama e em luz para iluminar o árduo caminho que viria pela frente.

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Mãos foram dadas e ele soube agarrá-las. O impulso era pedido e exigido para que a vida seguisse em frente com a cabeça erguida. Sua esposa, mulher em forma de amor, fez-se mais forte do que nunca. Imagino que devia chorar ao chuveiro para que ninguém notasse sua tristeza e medo.

Perto dele, ela era a certeza de uma luta pautada na vitória. Foi esse amor transformado em impulso de vida, que o reabilitou. É o amor que salva e eu não tenho dúvidas disso. Uma rede foi entrelaçada ainda mais forte e com as tramas ainda mais unidas. A família pode ser a voz que ele precisava ouvir. O tempo todo, a família esteve presente.

E aquele golpe duro e cruel que o derrubou também o modificou. A vontade de viver e seguir em frente continuava a impulsionar seu coração que batia em compasso esperançoso. Nos momentos de fraqueza era o amor e o seu amor que faziam a diferença.

Na Reabilitação ele pode dedicar-se a tudo que era preciso e importante para prepará-lo para essa nova vida. Em um grande centro de reabilitação, pode conhecer a Arteterapia e na reabilitação um mundo novo lhe foi apresentado com cores e formas. Novas e lindas possibilidades de ressignificar a vida e o viver foram sendo percebidas em meio a pinceladas e expressão.

A Arteterapia tem dessas coisas. Em um contexto terapêutico, a arte faz a reconstituição do sujeito, através da percepção vinda de uma estética interior, cheia de significados e simbologia.

Mas o golpe maior ainda estava por vir. A morte súbita de sua companheira deixou clara a nossa impotência perante a vida.

Mas o amor não é algo que morre com o corpo. O amor verdadeiro, imortal em sua plenitude passa a fazer parte da sutileza da alma na sua essência e na sua força. A vida, mais uma vez, teve que prosseguir.

A Arte passou de reabilitação a companheira que dava asas e o tirava da cadeira de rodas. A História foi repleta de processos. Cada instante uma prova de coragem. Uma história superada e contada por ele, que soube fazer do viver um caminhar expressivo, interessante, onde a dureza de existir pode ser ressignificada e transformada em beleza e em caminho.

Sua arte segue nos contando da vida. Da vida que ele constrói a pinceladas.

Uma história que está sempre recomeçando e que eu tenho a honra de acompanhar e aprender que viver na essência pode ser maior que qualquer golpe.

(*)Cristiane T. Pomeranz é arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte e mestranda em Gerontologia Social PUC-SP. E-mail: [email protected]

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